Finalizada em: Set/2023

Princípio

“Um fogo devora outro fogo. Uma dor de angústia cura-se com outra.”
William Shakespeare


Ela ouviu o grito primeiro.
O estardalhaço tomou o corredor antes que a porta da enfermaria fosse escancarada pelo atual herói número 1, que estampava ferimentos graves por toda a extensão do corpo e ofegava pela corrida, carregando um corpo mole e quase destruído nos braços.
Seu filho, Shoto.
— Ajuda! Recovery Girl! — Ele gritou, com desespero evidente. não soube o que fazer. Toda a imagem do sangue e olhos raivosos que cintilavam no rosto do homem a deixou paralisada — Você! Por que está parada aí? Chame a Recovery Girl!
O berro desesperado do herói a fez acordar. Ele correu até a primeira maca, depositando o corpo ensanguentado do garoto com o maior cuidado que pode. O sangue escorria de sua testa, camuflando-se com a queimadura vermelha de seu olho esquerdo. Não moveu um músculo, nem sequer um grunhido. Parecia morto.
Ela olhou para a porta, sabendo o que deveria fazer, mesmo sem coragem alguma para tal.
— O que está fazendo?! Não vê que ele precisa de ajuda? Onde está...
— Preciso que o senhor se afaste! — ela conseguiu dizer, mesmo com a voz trêmula e não muito coerente. Não pretendia gritar com um super herói, mas esperava que ele pudesse entender.
— Do que está falando...
— Para trás! — ela gritou novamente, finalmente mexendo os pés até o paciente, puxando os estalos de conhecimento que havia adquirido em todo o estágio com a enfermeira da UA.
Ela chegou perto do rosto do garoto desmaiado — foi tomada de alívio ao perceber que só estava realmente desmaiado — e vasculhou o local de maior incidência dos ferimentos. A carne viva da lateral da cabeça parecia ter jorrado a maior parte do sangue, que descia até o queixo, demonstrando a parte que mais sofreu. Um braço estava quebrado e uma perfuração na região do rim esquerdo poderia vir a se tornar um grande problema. Ela olhou para a porta novamente, mas tinha certeza de não ter muita escolha.
Pousou as mãos na lasca triangular do vidro, preparando-se para puxar e começar de algum lugar. Ela não pode ir muito longe — mãos enormes, apesar de agora mais fracas, puxaram-na com mais força, afastando-a do corpo.
— Quem é você?! O que pensa que está fazendo com o meu filho? Não pense que não consigo te derrotar... — uma tosse violenta acompanhada de sangue o interrompeu, afrouxando ainda mais o aperto de suas mãos.
É claro, devia ser a primeira vez que o grande Endeavor pisava na enfermaria da UA depois de muito tempo. Ele não a conheceria.
— Acho que o senhor tem um órgão danificado. Por favor, espere na outra maca e me deixe salvar o seu filho! — ela adicionou mais firmeza na voz. Endeavor a olhou com confusão latente, mas ela não o daria mais atenção. Soltou suas mãos definitivamente e as levou de novo para o caco gigante, puxando-o de uma vez só.
Finalmente, o garoto pareceu despertar por alguns instantes. Um grito sufocado escapou de sua garganta e ele se mexeu, mas por pouco tempo – até sentir a dor lancinante que atravessou seu corpo inteiro enquanto o sangue jorrava da ferida. Ele abriu os olhos, enxergando nada além de um borrão, tentando identificar os últimos vestígios da batalha.
— Pai... — murmurou ele para a sombra acima de seu rosto. Não se parecia em nada com seu pai; ele nem acreditava que tinha proferido essa palavra. Ele realmente deveria estar morrendo.
Apesar de assustada, conseguiu se lembrar das orientações de primeiros socorros. Sua individualidade era aplicada de forma diferente de sua mentora, a Recovery Girl, que costuma dar beijos nada confortáveis em seus pacientes, estimulando assim a cura. emitia uma luz da ponta dos dedos que lançavam um impulso forte à ferida adentro, agindo como uma grande rede que acelerava a reconstituição de tecido em questão de poucos segundos, perfeita para emergências. Diferente dos extensos tratamentos da Recovery Girl, seu poder era rápido e eficiente, porém doloroso. O garoto Shoto berrou enquanto sentia a luz ardilosa regenerando o buraco feito em sua barriga, de dentro para fora. mordeu o lábio inferior, concentrando a mente o máximo possível para controlar o gasto de sua energia, que já sentia o tremor pela atividade extensa.
Ela finalizou a cura do que julgou ser o ponto mais perigoso, que causaria sérias feridas internas. Apoiou uma das mãos na cama, vendo Todoroki tremer mais um pouco antes de desmaiar pela dor. Endeavor assistia a tudo com olhos saltados de choque.
— Quem é você? — ele perguntou em um fio de voz. Mais uma tosse violenta o fez quase perder a força nas pernas.
Ela pensou em lhe responder, mas Shoto não podia perder mais tempo. Ela já sentia um fio de suor descer por sua testa, e reunia forças para transferir sua habilidade para o outro ponto seriamente danificado do rapaz. Isso a fez congelar; jamais tinha feito curas em lugares tão sensíveis quanto a cabeça. Ela ainda não havia dominado os recentes estudos das substâncias anestésicas e a dor poderia matá-lo. Seu cérebro poderia se partir pela intensidade da luz invasora. Ela não sabia o que fazer.
Olhou para a porta novamente. Quando ela chegaria?!
— Ei, garota! — ouviu o rugir de Endeavor atrás de si, pegando em seu braço novamente — Não me faça dizer novamente, quem é...
— Solta ela, Endeavor! — finalmente a voz de Chiyo surgiu na sala, acompanhada em uma corrida por Nao Yoshikawa, a secretária que convenientemente estava acompanhando a heroína em uma ida rápida à sala do diretor. O herói bufou e soltou-a novamente, tendo consciência de que não tinha forças para ameaçar mais ninguém naquele dia.
— Senhorita Shuzenji, eu... Tentei... — começou, sentindo as mãos começarem a tremer.
A enfermeira ergueu uma das mãos para que se calasse.
— Você fez um ótimo trabalho, . Vou fazer questão de pontuá-la muito bem — a Recovery Girl disse sem olhar para a pupila. Avaliava os estragos no estudante à sua frente, juntando as sobrancelhas enquanto definia uma estratégia na área delicada — Agora saia e vá trocar essas roupas ensanguentadas enquanto eu cuido desses dois. Já está uma confusão suficiente lá fora por causa dessa entrada súbita.
concordou com a cabeça enquanto sentia os braços de Yoshikawa atravessando seus ombros, conduzindo-a para fora da sala. Girou a cabeça para trás uma última vez a tempo de ver a cabeça pendida do veterano para o lado, e pode jurar por um momento que seus olhos se abriram em uma linha fina em sua direção.


Parte 1 – Passado da consequência

Eles foram cercados por todos os lados.
O noticiário foi ocupado por fotos e vídeos da grande batalha na Togoshi Ginza, regida por Endeavor e seu filho Shoto, dotado de uma individualidade incrível, contra uma quadrilha de vilões que, mais uma vez, tentavam destruir o número 1. Vários danos a propriedades e também a civis foram registrados, deixando claro o nível de ameaça e poder do confronto. E saber que se tratou de um ataque surpresa e de cunho pessoal, tornava tudo ainda mais intrigante e perigoso.
Só havia interrompido mais uma tentativa de reconciliação de pai e filho.
viu o momento exato quando o corpo de Shoto voou pelos ares até o impacto estrondoso no prédio envidraçado pelos arredores, causando-lhe a perfuração perigosa com a qual chegou. Não foi o suficiente para pará-lo, mas a dor o deixou mais lento, aberto a um novo ataque extraordinário frontal, onde o garoto se viu preso pelo inimigo enquanto sua cabeça era lançada contra o concreto repetidas vezes. Shoto conseguiu reunir suas últimas reservas e usar seu lado direito para criar uma enorme estalactite de gelo, perfurando o oponente na região do ombro, afastando-o de si. Por mais que tenha ficado surpreendido, Shoto já havia atingido seu limite, caindo logo em seguida.
E agora estava dormindo profundamente na maca da enfermaria.
— Você está melhor? — A voz surgiu de trás de si, tirando a atenção da garota nos borrões que eram os movimentos e golpes de Endeavor.
— Senhorita Chi... Recovery Girl — ela se corrigiu a tempo de lhe dar uma breve reverência.
A pequena mulher se aproximou, tirando as balas em formato de ursinho do bolso e estendendo-as para a garota.
— Aqui. Deve ter sugado quase toda sua energia no garoto meio a meio lá dentro. Recupere-se.
quis abrir a boca e dizer que ela não precisava se preocupar, mas desistiu ao ver o tom de seriedade da mentora. Sentiu as energias se renovarem instantaneamente com o doce especial.
— Então já sabe o que aconteceu — disse Recovery Girl, ajeitando-se em uma poltrona especialmente de seu tamanho na sala de espera.
olhou para as imagens da TV.
— Acho que todo mundo sabe.
— Ninguém nunca sabe o que realmente acontece. Os motivos que movem um vilão podem ser muito complexos ou muito simples. Acho que Endeavor entende isso muito bem.
— Eles podem ter sido motivados por vingança — murmurou consigo mesma — Faz muito tempo que ninguém ataca o número 1 em uma ofensiva tão direta. E se por acaso...
— Então, afinal, você entendeu — Chiyo interrompeu os pensamentos da garota, que olhou surpresa enquanto percebia que havia pensado alto de novo — Foi pelos ferimentos de Todoroki?
— Ele estava mais ferido que o pai, disso tenho certeza.
— É, aquele garoto não se controla ao demonstrar heroísmo, por mais frio que pareça ser. Aposto meu estoque de seringas que os vilões estavam dispostos a deixá-lo de lado e pegar apenas o Endeavor, mas ele não podia ignorar isso. Mesmo que fosse seu próprio pai.
baixou os olhos, lembrando-se da história já conhecida da atribulada família Todoroki, administrada por um pai e marido abusivo, que forçou seu filho mais novo, Shoto, a um treinamento extenuante ainda criança a fim de se tornar o super herói mais forte para ultrapassar o número 1 da época, All Might, e concomitantemente enfiou a pobre esposa em uma clínica quando esta se descontrolou ao queimar o próprio filho, que renegou todo o seu lado esquerdo a partir de então. Apesar do desprezo de Shoto não ser nenhum segredo, ninguém ousava falar sobre tais coisas, ainda mais porque o garoto estava crescido e diligentemente trabalhando na agência do próprio Endeavor.
— Ele está bem? — ela perguntou depois de um tempo — Quer dizer, os dois. Os dois vão ficar bem?
— Eles vão ficar. Ambos têm grande resistência física, dignos de super heróis.
suspirou, aliviada. A imagem de Shoto ainda pairava em sua mente.
— Foi sua primeira vez, não é, ? — perguntou a Recovery Girl. a encarou confusa — Sinto que deveria me desculpar por deixá-la sozinha em uma emergência como essa, mas não farei isso. Acredito que foi um ótimo teste surpresa para as suas habilidades.
— Não se desculpe, senhora. Confesso que fiquei assustada no início, mas me lembrei das suas instruções na hora mais propícia. Espero ter ajudado, nem que seja um pouco.
— Ah, não foi apenas um pouco, minha querida. Se você não estivesse lá para prestar os primeiros socorros, eu não faço ideia do que teria sido do jovem Shoto. O ferimento na cabeça foi um tanto inusitado, precisei ter muito cuidado para trabalhar naquela parte. E como o grande Endeavor decidiu ignorar todos os demais hospitais da cidade e insistiu em trazer o filho para uma enfermaria de escola, só posso concluir que ele queira manter o caso em total discrição. Você entende isso?
— Claro, claro. Seguirei suas ordens, senhora.
Chiyo acenou com a cabeça, tentando dispersar o sentimento de pena ao imaginar a reação da aprendiz ao ver a invasão em sua sala de forma tão alarmante. Por mais que demonstrasse calma, o motivo do porque não estava presente na hora do ocorrido voltou à sua mente: a ligação de Gran Torino e o aviso de que Rush poderia estar de volta. Uma informação privilegiada, doada apenas a ela e All Might por enquanto, os únicos remanescentes com memórias o suficiente para se lembrar dos perigos.
Agora, no entanto, parecia que Endeavor havia ficado sabendo, da pior maneira possível. Afinal, se tratava de um velho amigo seu.
— Sei que vai fazer tudo que eu mandar, . Inclusive o que direi agora — ela se levantou e se aproximou da garota de pé, olhando para cima a fim de afiar seu olhar — Você recebeu uma proposta. E não tem a opção de dizer não.

🔥❄


Shoto atravessou calmamente os corredores estreitos e vazios do edifício cinza. O elevador o deixou rápido demais ao andar indesejado. Ele havia cumprimentado educadamente os funcionários da entrada, que o receberam com ovação e uma admiração nos olhos como se o conhecessem de perto. Ele nunca os havia visto na vida, e só depois percebeu o quanto o número de homens de preto havia aumentado ao redor da porta giratória e nos pontos estratégicos da construção. Ele revirou os olhos. É claro que ele faria aquilo.
Fez uma breve reverência à secretária oficial do CEO, que não fez nada além de apontá-lo à porta, demonstrando assim que sua chegada já era esperada.
Ele entrou e se deparou com o homem sentado atrás da mesa gigante, ardendo em chamas como de costume.
— Mandou me chamar? — ele fechou a porta atrás de si, caminhando até a metade da sala. A atitude indicava que ele não pretendia ficar por muito tempo.
— Soube que fez uma patrulha em Shibuya ontem — o homem respondeu, sem tirar os olhos da papelada — Achei que tivesse deixado claro sua necessidade de repouso.
— Não sigo suas ordens fora do trabalho, Endeavor. E não sou nenhum inválido que não pode ajudar.
Endeavor ergueu os olhos o suficiente para encarar o garoto com certo cansaço.
— Imaginei que diria isso — ele bufou — Não conversamos desde o incidente. Você não tem nenhuma dúvida?
— Na verdade, tenho. Para um amante dos holofotes como você decidir abafar uma boa briga, alguma coisa grave está escondida.
O herói por trás da mesa se levantou e caminhou até as grandes janelas de vidro que cediam uma vista privilegiada da cidade logo abaixo.
— Peço desculpas se meus problemas particulares o atingiram de novo.
Shoto nada disse. Não achou que Endeavor merecia saber que seu filho teria interferido de qualquer maneira, por puro instinto.
— Você já ouviu falar do Rush, o antigo herói que se revoltou contra o sistema e fez várias vítimas em nome de sua própria paz?
— Claro que sim — o garoto respondeu — Ele desapareceu há muitos anos.
— Desapareceu mesmo, e claramente tive algo a ver com isso — Endeavor suspirou, encarando o horizonte à frente como se voltasse aos dias passados — Eu era só um terceiranista quando tudo aconteceu. Quase fui morto, mas deixei-o sem a possibilidade de retaliar por bastante tempo. O ataque daquele dia pode ser facilmente interpretado como uma volta triunfal do antigo vilão, mas algo me diz que não. Há algo a mais por trás disso, talvez sempre houve, mesmo naquela época.
Shoto encarou o perfil do pai enquanto as chamas desapareciam. Não era de sua intenção demonstrar algum interesse, mas sentia que a responsabilidade recairia sobre suas costas mais cedo ou mais tarde.
— Não é tão difícil adivinhar que um de seus inimigos voltaria para cobrar o preço — ele ergueu uma das sobrancelhas — Não sei quem você costumava irritar no passado, mas esse Rush pareceu ter se fortalecido bastante nos últimos anos. Não vai ser nada fácil acabar com ele.
— Eu sei...
— Por isso mesmo você não deve andar desacompanhado. Apesar de incômodo, é melhor transportar seus soldados da entrada para sua casa também. E não saia de lá até que ele seja pego.
Endeavor se virou para o filho com a expressão confusa.
— Você não está dizendo que...
— Esse é um trabalho para quem não é um alvo. Acha mesmo que ele já não espera que você vá atrás dele?
— Ele me atacou daquele jeito e quase te matou! É claro que preciso pegá-lo!
Shoto revirou os olhos, com certa expressão tediosa.
— Então eu vou cuidar disso.
— De jeito nenhum!
— Sou o melhor herói da sua agência, não pense em descartar a ideia tão cedo assim.
— E quem disse que estou fazendo isso? — Endeavor riu — Estou dizendo que vamos fazer isso juntos.
Shoto franziu os lábios, endurecendo os olhos para o que ele considerava a pior combinação possível.
— Não acho que...
Ele foi interrompido em mais uma argumentação com a entrada explosiva de uma garota na sala, carregando uma bolsa atravessada em diagonal e um rosto estranhamente familiar.
— Senhor Todoroki! Perdão pelo atraso! — ela ofegou, olhando para Endeavor na janela, fazendo uma breve reverência com as costas. Olhou para o outro Todoroki na sala e pareceu bastante surpresa — Senhor Todoroki, está aqui também... — ela se preparou para mais uma reverência, que Shoto fez questão de desviar os olhos para o pai.
— Quem é essa? — perguntou ele. Endeavor deu um sorriso.
— Sua salvadora — ele se virou para Shoto — e nossa parceira de missão.


Parte 2 – Dúvidas e seus precedentes

Shoto não parecia nada feliz com a nova presença.
Não que o garoto esboçasse sorrisos por aí normalmente. Mas a atitude indiferente agora beirava a um incômodo, e nem ele mesmo sabia explicar.
Só sabia que era estranhamente familiar, e não tinha nada a ver com o fato de ela ter consertado seu rim.
No entanto, algo incomodava muito mais naquela região de Togoshi Ginza, e o cheiro forte de urina era apenas o menor dos detalhes.
— Tá legal, existe uma pergunta que não quer calar — a voz veio de ninguém mais, ninguém menos do que o herói número 2, Hawkes, que aparentemente gostava bastante de situações que envolviam Endeavor, não importava o quão perigosas e desagradáveis fossem — De tantos lugares que podiam escolher pra destruir, decidiram fazer isso logo onde os delinquentes mijam?
Ele fez uma careta de asco ao arrastar o sapato no chão úmido e duvidoso no subsolo do edifício principal onde aconteceu a tentativa número 2937 de um almoço de pai e filho. Obviamente, os resultados foram mais do que inesperados.
, parada a alguns metros, ajoelhada sobre um montante de massa escura e fétida, usando um pequeno aparato de coleta de substâncias, olhou para ele por sobre o ombro.
— Na verdade, senhor, o mau cheiro também vem de bactérias, acúmulo de fungos, fluidos corporais, falta de luz…
— Minha nossa, é a nova Yaoyorozu? — Hawks soltou uma risada debochada, e abriu a boca para responder, mas foi interrompida rapidamente — Tá tudo bem, coisinha fofa, eu sempre confio no grandão ali pra vandalizar lugares como esse em cinco minutos. Faz parte do charme do número 1 — com uma piscadinha, ele se virou para as paredes a tempo de abrir as asas em sua majestosa extensão que deixou completamente hipnotizada e soltar algumas penas pelo ar, que voaram pelos ares como projéteis até se embrenharem nos cantos mais escuros do subterrâneo.
— Vandalizar? — Endeavor cruzou os grandes braços, encarando o colega com uma sobrancelha erguida — Você só diz coisas inapropriadas, Keigo. Senhorita , o que temos?
levou alguns segundos para desviar a atenção das penas móveis do herói e se virar para o homem em chamas, que marcava o território com a iluminação necessária para que deixassem as lanternas no carro.
— Bom… Coletei algumas amostras com alta taxa de radiação, outras com cargas desconhecidas de energia, e qualquer coisa que parecesse minimamente anormal em um ambiente desses.
— O que seria considerado anormal em um ambiente desses, doutora? — A voz de Shoto era baixa e vazia, vinda de outra extremidade do espaço. Ele nem a encarou quando disse, mas seu tom era revestido do clássico deboche tedioso, que parecia ainda mais reforçado ao se referir a ela.
engoliu em seco, virando-se na direção do herói. Shoto era dono de mais habilidades comunicativas do que seu pai, apesar dessa quantidade ser menor do que a esperada. Mesmo assim, toda a resistência em ser plenamente simpático — ou indiferente — com não vinha do fato de que ela era uma completa estranha, mesmo que tivesse salvo sua vida; mas o porquê isso era um motivo para envolvê-la em uma missão tão hostil.
Ela não sabia o quanto os vilões eram perigosos? Não tinha pesquisado sobre Rush, o grande responsável por toda aquela destruição?
— Não acontecem muitas mudanças bruscas nesse lugar inóspito, senhor Todoroki. Quando algo perturba a inércia, deixa rastros em algum lugar — ela respondeu placidamente, ignorando a frustração por falar com um cara de costas, que passava os dedos pela parede cheia de lodo — Por exemplo, a alta taxa de gás carbônico indica que houve a reação química com o ar oxigênio, o que me leva a pensar que alguém esteve aqui, e um líquido alaranjado…
— Então está dizendo que o Rush esteve aqui?
— Provavelmente. Pensando bem, é possível. Podemos correlacionar as amostras e encontrar uma forma de rastreá-lo.
— Isso é excelente, senhorita bonitinha — Hawks lhe lançou um sorrisinho por debaixo dos óculos amarelos, mantendo os olhos aéreos e concentrados nas penas que ainda giravam — Se aquele maluco foi o responsável por todo esse cheiro que tá impregnando na minha roupa, vou ser capaz de dar uma surra nele por nunca ter usado uma privada.
— Hawks, menos — Endeavor revirou os olhos. O herói número 1 se preparou para falar com a pupila, mas Shoto disse primeiro, virando-se para a garota.
— Como pode ter tanta certeza de que ele deixou algo a ser rastreado? — disse, com a sobrancelha levantada. franziu o cenho.
— Eu não disse…
— Mas está pensando nisso, não é?
— É sempre bom considerar todas as possibilidades — e ela levantou os ombros, demonstrando uma confiança hesitante diante daqueles olhos sérios e ácidos que recebia do Todoroki mais jovem.
Algo inexplicável pairou no ar, pesando-o como uma bigorna. Endeavor encarou de um a outro, assim como Hawks, que viu a oportunidade perfeita para soltar uma risada engraçada e agarrar uma pena que voltava para suas mãos.
— Pois bem, isso tudo parece muito masculino e muito político para uma garotinha como a , certo? Que tal irmos olhar mais evidências naquele túnel? Vai saber se aquele doido não criou umas passagens secretas… — ele chamou, apontando para o outro canto do lugar, fazendo rapidamente tirar sua atenção dos outros dois e andar na direção do herói de asas.
Porque de uma coisa tinha que concordar: essa coisa de tratar heróis profissionais como amigos e fazer piadas sobre hábitos urinários públicos realmente era… Masculino demais para ela. E qualquer coisa parecia melhor do que ficar e ser observada daquele jeito por Shoto.
— Por que ela está aqui? — o garoto meio a meio se virou para o pai na mesma hora, cerrando os dentes para falar mais baixo. Endeavor franziu o cenho, como se não tivesse entendido a pergunta.
— Qual é o problema?
— Quero entender porque chamou uma estudante para esse trabalho. O que é? Ficou emocionado com as habilidades dela? Ou só estava sem tempo de encontrar alguém mais experiente?
— Salvar a sua vida me pareceu uma experiência e tanto — o herói comentou, e a primeira reação de Shoto foi revirar os olhos. É claro. Parecia que aquilo ia seguir por um bom tempo, e ninguém merece isso… — Mas ela é uma garota talentosa. Fiz várias perguntas à Chiyo antes de fazer a proposta e parece que ela é muito inteligente, com grandes habilidades para criar e conduzir coisas. Vai ser de grande ajuda pra acharmos o Rush nos mínimos detalhes. E também…
— Vou repetir: existiam pessoas mais experientes — Shoto interrompeu, encarando as costas de se abaixarem de novo enquanto puxava alguma coisa mole e gosmenta com uma pinça — Ela pode se machucar.
— Nós estamos aqui, como ela poderia se machucar?
— Como todas as pessoas se machucam quando se envolvem com heróis profissionais.
Endeavor abriu a boca para responder, mas Shoto não lhe deu chance, voltando a atenção para qualquer ponto das paredes misteriosas. Queria mudar o assunto de volta para Rush, ou para o fato de que Endeavor era um péssimo CEO que deixava a agência sozinha quando mais pessoas podiam cuidar do problema, ou até mesmo sobre se recusar a ficar de repouso, mas decidiu se manter calado, tentando ignorar a sensação estranha que o causava, uma estranha sensação de reconhecimento, e uma estranha sensação de que ela com certeza não devia estar ali.

🔥❄


Há 22 anos atrás, Rush era conhecido como Yuma Nakasato.
Sua individualidade sempre foi um tanto desconhecida. Até os 12 anos, achou que nem tivesse uma. E tudo que fazia era zanzar por aí, sem família, amigos ou um lar decente para uma criança que não era útil para ninguém.
Isso até o acidente na usina.
Muitos acreditam que a habilidade de Rush foi criada ali. Naquela noite de verão, enquanto seguia uma pista doada nas ruas de que os detritos da fábrica davam um bom dinheiro entre os mercadores recorrentes no Porto, ele se colocou no lugar errado na hora errada. Uma grande tempestade destruiu o depósito, as salas de máquinas e as grandes engrenagens do lugar, causando uma destruição a nível municipal chocante na área distante de Osaka, jogando dejetos aos montes no mar e causando grande comoção e revolta na comunidade internacional.
O corpo de Yuma ficou desaparecido por um tempo desconhecido, já que não havia ninguém procurando por ele. Quando reapareceu, já estava por aí exibindo habilidades mortais e incríveis, envolvendo lasers de aço que brotavam da pele, um rosto nada desfigurado que exalava uma beleza imortal e um sorriso confiante de quem sabia que dominaria o mundo.
Essa era a história que corria pelos becos. E ninguém fazia ideia se era verdade ou não.
tinha muito pouco conhecimento sobre o vilão. Quando Rush desapareceu, ela estava prestes a nascer. Seu nome virou um rito proibido nas ruas, e as escolas certamente não ensinavam sobre ele. Foi um dos piores inimigos que o Japão pensou em ter, espalhando terror e medo pelas avenidas sem pudor, calejando até o mais poderoso dos super heróis.
Endeavor foi um dos que tentaram. E um dos que quase morreram por isso.
A dúvida o envolvia vez ou outra. A lembrança da batalha mortal contra o maior vilão da época, onde tinha conseguido deixá-lo debilitado a um ponto inacreditável e que o fizera desaparecer até então. Desaparecer apenas. Não matá-lo. Não destruí-lo completamente. Por mais que toda a sociedade acreditasse fielmente nisso, ou queriam acreditar, para não se entregarem a um pânico de que Rush poderia um dia voltar e causar novamente toda a destruição de antes.
Nos 2 anos posteriores, Endeavor tentou procurá-lo, indo contra todos os conselhos dos maiorais. Mas alguém — ou algo — teve todo um trabalho extenuante para esconder o corpo do vilão. A possibilidade de que ele poderia estar se reerguendo por aí era intolerável. Onde estava Rush?
Depois de 10 anos, não importava mais. As pessoas não se lembravam mais dele. Não queriam mais se lembrar, era a palavra certa. Tanta dor e sofrimento não mereciam ocupar espaço em nenhuma mente saudável.
Até o grande ataque na Togoshi Ginza. E a agitação posterior disse tudo o que ninguém tinha coragem de externar: as pessoas se lembravam. E foram inundadas por puro pânico e pela terrível possibilidade de ver tudo se repetir.
Shoto não tinha certeza se estava sendo capaz de lidar com isso.
Pela segunda noite seguida, ele se encontrava andando em círculos, pensando se deveria fazer o bem à própria consciência e ir buscar os resultados que tanto queria averiguar ou esperar para que fossem colocados à sua mesa como foram induzidos a fazer.
Em qualquer outra situação, a opção 2 seria a mais aceitável. A única que ele aceitaria e consideraria como qualquer profissional. Afinal, com a volta de um super vilão antigo, os demais crimes corriam risco de serem abafados e negligenciados.
Mesmo assim, depois de desistir de lutar contra toda aquela hesitação, ele deixou o apartamento há duas quadras da agência de seu pai e dirigiu até o edifício espelhado, com os olhos atentos em cada esquina, entrando por conta própria pelos fundos e encontrando a meia escuridão e os guardas bem pagos que não se moveram ao ver o filho do chefe aparecendo de repente às 2 da manhã.
Shoto não perguntou nada. Apenas os cumprimentou com a cabeça e seguiu adiante para o laboratório, sentindo seriamente que encontraria o que tinha ido procurar, mesmo sem saber exatamente o que era.
A porta do gabinete estava entreaberta. A luz que vinha de dentro era azulada e pálida, e o barulho aumentava à medida que se chegava mais perto. Dedos batucando no teclado, vidrarias movendo-se pelo tampo e uma confusão silenciosa demais para ser notada por ouvidos comuns.
Quando Shoto deslizou a madeira com os ombros, a garota não moveu nenhum centímetro. Estava concentrada demais nos plásticos, nos beckers, nos rabiscos do papel e em uma substância borbulhante específica em cima da mesa.
— O que está fazendo aqui? — Shoto perguntou imediatamente, agora sim vendo-a pular em seu lugar com o susto.
— Senhor Todoroki… — arfou , genuinamente surpresa com a presença.
Olhando dela para a superfície bagunçada, Shoto rapidamente entrou na sala, fechando a porta atrás de si e lançando-lhe um olhar duro como só ele era capaz de fazer.
— O que você encontrou?


Parte 3 – Adiar não é uma opção

Sentada ali, encarando-o de baixo, ela parecia mais preguiçosa.
Também pudera, não era a intenção ser flagrada entre dois delitos diferentes: invasão de propriedade e furtos de informações secretas. O único comportamento óbvio para era ficar em silêncio.
Com Shoto à frente, a atitude de ficar muda pareceu ainda mais necessária. Os pés dele se mexiam de um lado para o outro com tanta força que ela temeu uma estalactite de gelo brotando direto daquelas solas.
— Vou perguntar mais uma vez, — o tom dele vinha com um tremendo alerta — O que acha que está fazendo?
— Eu já disse, não é nada disso…
— Melhor não tentar bancar a espertinha pra cima de mim. É claro que você estava vendo alguma coisa — ele foi incisivo. Não tinha aborrecimento em seus olhos, diferente dos pés e das mãos, que gesticulavam minimamente. O herói não era conhecido pelo descontrole – muito diferente do pai.
se sentiu mais tranquila ao notar os detalhes. Ele não encarou a mesa bagunçada cheia de provas de sua bisbilhotagem em nenhum momento. Só olhava para ela, esperando uma explicação, para só depois avaliar a veracidade da informação.
— Tá legal, eu estava… Eu só queria ver se encontrava algo naquela amostra que coletamos do subsolo. Aquela específica dos túneis.
Shoto levantou uma sobrancelha, sem surpresa.
— Às duas da manhã?
— Tinha uma intuição — respondeu prontamente — Mas não tinha certeza de nada e não queria atrasar a investigação com um achismo. Era só um palpite, um pensamento…
— E eles lhe disseram alguma coisa? — ele se aproximou a um passo, agora demonstrando uma pontada ínfima de impaciência — Sua intuição lhe mostrou alguma coisa ou te fez enfrentar esse outono gelado à toa?
Ele não parecia desconfiado. Parecia estar desafiando-a, pedindo daquele jeito Shoto Todoroki de ser que ela mostrasse o que encontrou porque sabia que ela tinha encontrado alguma coisa.
E, por mais intimidador que aquele olhar pudesse ser, engoliu em seco e confiou neles imediatamente.
— Acho que Rush não está sozinho — ela respondeu em um fio de voz, sem desviar o olhar — E acho que todos seguiram pela água entre as árvores na extremidade final do túnel. Creio que é por ali que se locomovem, e onde fica o seu esconderijo.
Imediatamente, Shoto ficou tenso. A garota permaneceu impassível, como se esperasse que ele a questionasse de forma descrente, mas, ao mesmo tempo, que ele simplesmente abrisse a porta e fosse embora.
E nesse breve momento de silêncio, a temperatura caiu vários graus, e um vapor de gelo seco escapava timidamente do garoto meio-a-meio, que fazia esse tipo de coisa quando estava pensativo.
— Encontrei a mesma amostra de sangue que retiraram do dia do incidente, o sangue de Yuma Nakasato. Estava espalhado por aquela parede, parece que ele se machucou bastante — ela quebrou o silêncio diante dos olhos vagos de Shoto. ainda não havia percebido o enorme ruído do ar condicionado no laboratório até que ele fosse substituído pelo ocasional gás gelado que escapava do próprio herói — Mas então, encontrei pedaços de DNA misturados com elementos que não fazem sentido. Pele de cobra, fios de cabelo, dentes… Todos distantes da fonte principal, mas pertencentes à mesma pessoa. E, claro, outros tipos sanguíneos de rostos que não existem na base de dados.
O olhar do rapaz não mudou em nada. O único movimento que Shoto fez, o que ajudou a confirmar que ele não tinha congelado a si mesmo, foi puxar uma outra cadeira disposta ao lado, sentando-se de frente para .
— O Rush possui várias individualidades. É difícil saber o que essa carga de poder causa no corpo humano normal, mas ele já deixou de ter um corpo natural há muito tempo. Provavelmente, quando escolhe misturar duas individualidades, seja tremendamente difícil não desabar. Por isso, ele definha… — Shoto suspirou, curvando as costas para apoiar os cotovelos no joelho. Ele olhou diretamente para , e foi a primeira vez em que ela observou a cicatriz tão de perto. A grande queimadura ocular estigmatizada no rapaz, mas que já tinha se tornado tão parte de si que os leigos diriam certamente ser de nascença. Aquela marca era linda, de certa forma. Mostrava a própria força de Todoroki, nascida antes mesmo de suas habilidades — Quanto aos outros tipos sanguíneos, eu não…
— São de outras pessoas, tenho certeza — ela argumentou antes que ele a refutasse — Sei que Rush possui muito poder e um genoma totalmente mutante, mas seu sangue continua o mesmo. Aquele sangue estava tão fresco quanto o dele e seguiam pelo mesmo caminho, pela antiga bifurcação.
Todoroki a encarou por mais um momento, avaliando toda a segurança de suas palavras. Estava na cara que não conhecia o caminho que estava indicando. Não fazia ideia do que tinha além daquelas árvores. Nem mesmo Shoto sabia direito o que se escondia naquele bosque de carvalhos enormes e freixos, que encontravam espaço em meio a grandes lajes de rocha partida. Uma bagunça. Era difícil imaginar qualquer pessoa viva sobrevivendo ali.
Mas ele viu claramente: ela dizia a verdade. Não sabia o que significava, mas sabia de sua intuição, e confiava nela mais do que nos fatos apresentados.
— Acha que a Liga dos Vilões está metida nisso? — perguntou tão rápido e baixo que não pareceu sua voz. Shoto arqueou as costas, afastando aqueles olhos heterocrômicos da garota.
— Eu não gostaria que estivessem.
concordou com a cabeça. Ninguém gostaria.
Ficaram em silêncio por mais um momento, até que ele finalmente se virasse para encarar a mesa. Folhas rabiscadas ao lado de um microscópio demonstravam toda a confusão mental de . Sua intuição se parecia muito com samambaias que brotavam de pedras e só cresciam e cresciam e cresciam.
Shoto não gostava dessa expressão – intuição –, e nem de nada que antecipasse algum momento real, mas precisava admitir que agora tinha se preocupado com as suposições. Pensamentos ruins subiam por seu tronco, e não se sentia assim desde que era um primeiranista.
— Por que está aqui? — Ele perguntou com os olhos nos beckers fervendo. Não tinha nenhum aroma naquela sala.
— Já disse, eu vim…
— Eu digo da missão. Por que está participando disso?
— Porque seu pai me convidou.
— Ele não te convidou, ele a obrigou. E mesmo assim, você ainda podia ter dito não.
— Eu não queria dizer não — cortou, em tom pujante. Fez Shoto se manter estável, mas com a atenção aguçada — Quer dizer, fui pega de surpresa, mas a oportunidade seria ideal. Pretendia fazer toda a minha residência com a Recovery Girl, mas então vocês…
— Isso não é uma residência, senhorita . Todos nós podemos morrer.
— Tenho plena consciência disso, senhor Todoroki. Ainda assim, fico honrada em ajudar.
Ele encarou novamente a solução aquosa borbulhando na mesa, tentando conter a irritação.
— Você está no último ano. Poderia estar fazendo muito mais, ajudando a salvar pessoas, resolvendo os crimes…
— Por que tanta resistência em me ter no time? — Ela o interrompeu imediatamente. A luz era completamente apagada através daqueles olhos bicolores. Shoto torceu os lábios em uma clara resistência também a respondê-la, e isso não fazia sentido — Não quero acreditar que o senhor duvida das minhas habilidades. Afinal, não faz muito tempo que salvei sua vida.
— Eu não iria morrer…
— Ah, pois ia sim. Se me permite dizer, você estava por um fio. Não iria ficar vivo por mais 3 horas — ela quis levantar os ombros, mas preocupou-se de parecer arrogante demais. Já bastava ter deixado seu cérebro de escanteio e usar apenas a boca — E foi muito legal deixá-lo vivo de novo, mas não quero me formar e passar o dia todo em uma enfermaria. Quero salvar pessoas que não vão chegar em uma a tempo.
Shoto abriu a boca para responder. Uma parte dele não esperava que pudesse falar tanto; ou, ainda, que pudesse falar daquele jeito escancarado. Seus olhos exalavam tanta confiança que era difícil perder tempo tentando convencê-la do contrário.
Então, o garoto se colocou de pé novamente, colocando a cadeira de volta no lugar.
— Espero que se lembre bem do treinamento que recebeu na UA por três anos. Vamos precisar — e começa a sair pela porta, quando para e se vira para ela novamente, levemente sussurrando: — A propósito… Não vou deixar que salve minha vida de novo.

🔥❄️


— Isso é lindo. Obrigada, papai!
passou os braços pelo pescoço do homem alguns centímetros mais alto. Antigamente, sua maior preocupação era em amassar aquele terno. Hoje, o famoso CEO da cooperativa de advocacia Akemi, Hisashi , dispensava qualquer comentário a mais que pudesse afastar sua filha.
Mesmo que ela continuasse com ideias de ir cada vez mais alto, e cada vez mais longe.
— Você gostou mesmo? Achei que tivesse dito na cor azul para aquela senhora com penas nas mãos — ele fez uma careta ao apontar para o colar em ametista brilhando no tórax de . Não era sua cor favorita, mas era a cor favorita dela - o que já demonstrava uma das grandes mudanças no comportamento do advogado: as pessoas podem ser quem são e eu não vou interferir nisso. Mesmo que seja a minha filha.
Pelo menos, era o que vinha notando nos últimos meses.
— Está perfeito, pai. Sabe que a intenção é melhor do que o presente em si — com um sorriso, ela se voltou para a mesa da enfermaria, juntando a embalagem em um canto. Hisashi olhou de relance por cima do ombro na direção da porta, encontrando-a fechada.
— E então, lembra da viagem que combinamos de fazer quando o recesso começasse? Posso finalmente dizer que ela vai se realizar.
parou e se virou para o homem. Ao lado dele, ela parecia tão mais baixa e indefesa como quando estava ao lado de Endeavor, mas os ombros rígidos e a apreensão eram novos; diferentes. Daquela vez, elas adiantavam uma tentativa de começar um assunto chato.
— É… Sinto muito, não vou poder viajar agora, papai.
Hisashi franziu o cenho.
— Por que não?
permaneceu curiosamente calada nos primeiros minutos. Ele não sabia de nada. Não tinha como saber. Estava ocupado demais com seus negócios em Abu Dhabi, Singapura ou qualquer outro país não tão longe e nem tão perto ao mesmo tempo.
Algo a respeito de sua postura era defensiva, mas, no fim, decidiu que o homem à frente era seu pai, e que merecia uma explicação, mesmo que não fosse na íntegra.
— Preciso trabalhar.
— Trabalhar? Você é uma estudante, — Hisashi deu um passo à frente, ainda com a mesma expressão confusa, mas agora com uma pitada de deboche. Ele procurou a mesma menção de um sorriso no rosto da filha, mas não encontrou — Arrumou um emprego sem me consultar?
cruzou os braços e desviou os olhos. Confidencialidade total. Driblar as perguntas curiosas. Proteção das informações.
Endeavor tinha sido bastante afiado em seu primeiro discurso da missão.
— Mais ou menos isso… Quer dizer, não é um trabalho. É um estágio, uma última residência antecipada.
— Pelo que eu saiba, você já completou todas as suas residências. E, se for esse o caso, posso conversar com a Recovery Girl, ela vai te liberar…
— A residência não é com a Recovery Girl.
— Então com quem é?
— Com o Endeavor.
A expressão de Hisashi beirou ao puro choque. imaginou essa reação, mas a palidez que tomou o rosto do homem foi algo essencialmente novo. Em tese, ela esperava que o pai apenas soubesse o nome de Endeavor pela TV e jornais. O mundo dos heróis profissionais nunca lhe pareceu muito cativante. Hisashi era um cão de caça guiado por contratos e reuniões multimilionárias que caíam como uma luva em sua individualidade fortuita que envolvia números: não existia nenhuma junção deles que o grande homem não pudesse resolver.
Mas ali, encarando-o naquela posição, parecia genuinamente que ele sabia mais sobre Endeavor do que imaginou.
— Não é o máximo? — Ela continuou para apaziguar aquele retorno do pai — O próprio Endeavor me chamou para um estágio na agência dele. O herói número 1!
— Como isso aconteceu, ?
Ela mordeu os lábios. As verdades que não podia contar já tinham se tornado largas demais, e as mentiras que as substituíram eram ridículas para um cérebro brilhante. Como escolha, a garota decidiu colocar um pé em cada margem e contar a história do que realmente havia acontecido — o acidente dos dois Todoroki —, e como sua participação brilhante tinha levado-a aonde estava.
A feição de Hisashi mudou de chocado para estupefato, e agora com um toque de indignação entre as sobrancelhas. A informação corria por sua cabeça, enquanto tentava simular o cenário terrível.
— Ele te chamou para a agência só porque salvou a vida do filho dele? É isso mesmo?
— Ele acha que tenho muita coisa a agregar na equipe — pontuou, buscando manter sua história dentro dos fragmentos permitidos — E, claro, também tenho muito a aprender. Na área médica. A equipe de primeiros socorros do Time Endeavor é uma das melhores do país.
De maneira bastante estranha, Hisashi repuxou os lábios, encarando a garota com dureza, sufocando uma série de argumentos. Ele parecia com raiva. Extremamente incomodado. Mais zangado do que quando perdeu um contrato de venda de conchas de ostras. Era como se estivesse a ponto de explodir.
E então, ele já estava de volta ao normal, abrindo seu sorriso político de sempre e colocando as duas mãos nos ombros de . Se ela não estivesse de jaleco, teria sentido como estavam geladas.
— Meus parabéns, princesa. Você está sempre procurando boas conquistas. Mas ainda assim, tenho certeza que pode continuar esse estágio em outro momento. Faça as malas.
Hisashi avisou, já começando a andar para a porta. se manteve boquiaberta nos primeiros dois segundos antes de dizer:
— O quê? Como assim, pai? — Seus pés se aproximaram rápido do homem, que parou imediatamente — Eu estou aprendendo mais com o Todoroki do que em 3 anos na UA. É algo diferente, algo prático, a experiência real que eu…
— Você não viu a última que esse Todoroki aprontou? — ele trincou os dentes ao fazer a pergunta retórica — O ataque de Togoshi Ginza. Todo aquele sangue, destruição e caos. Acha mesmo que ele não vai ser atacado de novo?
— Talvez seja. E por isso mesmo preciso estar lá pra ajudar.
— Não se atreva,
— Por que o senhor nunca confia em mim?! — ela gesticula com um passo para trás. Os olhos se abriram exponencialmente pela retranca — Por que não acredita que eu possa ser útil como uma profissional que se arrisca, e não aquela que fica esperando o perigo chegar? Inclusive, ficar parada também pode me matar, assim como tropeçar em um garfo na cozinha.
— Porque você é minha única filha e não precisa se expor a esse tipo de perigo inútil. Sua individualidade foi feita pra te manter em segurança em um hospital, e não no meio daquela anarquia.
— Mas o senhor mesmo vive me dizendo que sou especial, que posso fazer coisas que nem imagino. Bem, até agora, não fiz nada que realmente me mostrou isso — suspirou, levantando os ombros em cansaço. Não era sua intenção deixar seu pai bravo; era inimaginável que ele soubesse tanto sobre os perigos que rondavam Endeavor e o mundo dos heróis, mesmo que tais coisas sejam mostradas na TV e na internet todos os dias — Quero ser útil, pai. Para muitas pessoas. Quero preservar vidas lá fora, não só correr o risco de perdê-las entre quatro paredes. Quero fazer alguma coisa significativa, ou todo esse tempo que passei para me formar será completamente em vão.
Quando ela disse, Hisashi pareceu mais do que irado; parecia agoniado e perdido. entendia aquele olhar: o medo dele era resultado da grande tragédia que acometeu a família a anos atrás. Sua mãe. Um sofrimento do tamanho do mundo.
Mas o passado não podia ter mais força sobre o futuro de . Grandes coisas estavam à sua espera, e adiá-las não era uma opção.
Antes que começasse mais uma sessão de contestações, um barulho de celular surgiu entre os dois, e Hisashi voou com os dedos até o bolso automaticamente.
Como sempre, o trabalho era mais urgente do que uma conversa familiar.
— Isso não vai ficar assim, — ele cerrou os dentes como uma ameaça. engoliu em seco com aquele olhar subitamente autoritário — Vou convencê-la do contrário e você vai largar esse estágio. Agora eu preciso ir. Mais tarde nos falamos — e ele prontamente deixou a sala.
Seria difícil se falarem, já que ele não se dava muito ao trabalho de ligar, mas não se importou com isso. Apenas suspirou, contendo a frustração, e voltou a se concentrar nos registros escondidos embaixo de folhas de papel.


Parte 4 – Pretérito radioativo

O vento ficou subitamente frio.
As árvores sacudiram com certo desespero, e as folhas recém caídas dançavam em um pequeno redemoinho por cima do concreto. Nuvens carregadas aconselhavam incisivamente que as pessoas procurassem um abrigo. As primeiras gotas vieram devagar, caindo ao longo do estacionamento vazio.
Shoto olhou para a entrada mais uma vez. Ela provavelmente achou que ele estivesse brincando. Ou achou que estava sendo chamada para receber mais uma repreensão e, assim, estivesse adiando o encontro o máximo possível. Ele não poderia culpá-la nessa parte – Endeavor tinha lhe dito um milhão de vezes que seu rosto nada simpático poderia ser o motivo para que perdessem a grande aquisição de seu grupo da missão.
Bem, de um jeito bizarro, Shoto estava tentando mudar isso aos poucos.
Quando um ronco atravessou o céu, passou pelo portão da Academia, levando uma palma da mão à testa em uma tentativa inútil de se proteger das gotículas e correu em direção à picape preta do outro lado da rua, ocupado por um Shoto e seus ombros longos e preguiçosos esticados pelo banco, assoprando a fumaça de um cigarro pela janela afora.
Ao se aproximar do carro, ela se perguntou pela última vez se aquilo era sério. Se tinha mesmo lido a mensagem certa e o remetente certo. Com o barulho da porta sendo destrancada, não houve muitas dúvidas. A garota se apressou em escorregar para o banco do carona, balançando o cabelo para se livrar dos resquícios da água.
— Todoroki — ela cumprimentou com uma leve inclinação da nuca em sinal de respeito, mas nem isso impediu que franzisse o nariz em uma careta logo em seguida — Você está fumando?
— Você que tem 18 anos aqui, não eu — respondeu Shoto, erguendo as costas para ajustar a postura — Devo te oferecer um?
— Não, obrigada. Isso mata.
Shoto soltou uma risada imediata. Pensou em retorquir a afirmação com uma piada autodepreciativa – coisas como: Olá, eu sou um super-herói, posso morrer comprando 1 kg de alface –, mas já tinha assustado a menina o suficiente para o dia de hoje. Com uma última tragada, o garoto lançou o restante da bituca para fora e fechou a janela.
— Tudo bem, sem cigarros. Trouxe o que eu falei?
se empertigou no banco, hesitante, mas assentiu.
— Trouxe. Vamos mesmo para lá?
— Tá com medo?
— Não — mentiu. Shoto a olhou brevemente pelo canto do olho. Viu a pele arrepiada de pela trama aberta do cardigã de crochê que ela vestia. Ele estendeu a mão e apertou com um punhado mais de força no botão do aquecedor, colocando um pouco do seu lado direito em ação e fazendo jorrar um vento quente sobre todo o carro.
Aquilo era o máximo que Shoto Todoroki se permitia usar de seu lado direito no dia-a-dia: pequenas quantidades de energia quente calculadas, contidas e discretas. Sua especialidade era o gelo e nada mudaria isso.
Agradecida, sorriu um pouco em sua direção, mesmo que seu recente arrepio não tenha sido apenas por causa do frio.
— O seu pai vai nos encontrar lá? — perguntou ela quando o viu puxar o cinto de segurança e colocar os pés na embreagem.
— Não. Mas deixei o número do Hawks de emergência. Ele vai nos dar cobertura.
A testa de se enrugou em confusão. Shoto suspirou, tendo certeza de que, talvez, não tivesse sido tão claro na mensagem.
— Meu pai não pode saber que vamos à antiga usina do acidente do Rush. Ele diria que é perigoso e tentaria fazer isso sozinho. Mas não estamos indo em busca de briga — ele deu de ombros e virou o rosto para — Se você está mesmo disposta a fazer parte de uma missão secreta, precisa entender que precisamos guardar alguns segredos. Até mesmo entre a equipe.
Ele esperou que ela caísse fora. Sinceramente esperou. Seu senso moral não aguentaria uma proposta daquelas.
A ideia de chamá-la para aquela inspeção nasceu de uma necessidade de Shoto em fazer um último teste à sua verdadeira disposição. Tudo que o herói queria era que a situação ficasse clara o quanto antes – os perigos, ameaças e possibilidades mortais.
Sustentando o olhar, esperou dois segundos para concordar com a cabeça, e puxar o cinto.
— Tudo bem. Segredos — disse com o olhar fixo para a frente — E eu tenho 19 anos.
— Mas na sua ficha…
— É. Até ontem — interrompeu ela, agora com uma breve encarada ao herói no banco do motorista — Hoje é meu aniversário.

🔥❄


Era sempre frio na periferia de Minami.
A falta de iluminação acentuava o cheiro fétido de abandono e morte ao redor. A brisa marinha soava de longe e perto ao mesmo tempo, passeando pelo local como a única substância viva que ousava pisar nos escombros históricos. Até hoje.
não disse nada quando Shoto abriu a porta do carro e começou a se deslocar em direção ao portão de ferro batido que guardava os limites do esqueleto da propriedade. Placas triangulares e de cores diversas amontoavam-se nas barras, gritando em letras garrafais: “Perigo! Ambiente radioativo!
Caiam fora daqui!
Todos estão mortos!
Ela engoliu em seco quando o herói colocou uma das mãos na ferrugem, sentindo-a tão gelada quanto seu próprio lado esquerdo.
Ele ficou parado naquela posição por longos e longos segundos até que ela murmurasse:
— Acho que nós podemos…
E então, com um pequeno estrondo, o portão estava aberto, e uma pequena fumaça de gelo seco escapava das barras congeladas e derretidas que despencaram ao chão.
— Eu sei — ele respondeu, lançando-lhe um breve olhar de esguelha enquanto retomava sua caminhada.
Nos arredores da antiga usina elétrica, o ar pesava de forma sufocante. Mesmo com os vários testes já feitos e publicados sobre a averiguação da qualidade do ar na região, que eram repetidos a cada 2 anos, sentiu que algo estranho e medonho penetrava sua pele à medida que avançava ao lado do garoto meio-a-meio. Estranho, medonho e triste. Tudo ali parecia definhar e se entristecer. Até mesmo as árvores que circundavam o terreno possuíam uma aparência equivalente a um pedido de socorro.
Ela não estava certa sobre o que vinha primeiro naquele plano. Shoto permanecia quieto como de costume, mas parecia firme e confiante sobre o que pretendia fazer. Com cascalhos e folhas mortas quebrando sob seus pés, os dois chegaram à grande porta dupla de madeira, igualmente revestida de poeira e placas de aviso.
— Pega o frequencímetro — sussurrou ele, com um olhar cauteloso para os lados.
assentiu rapidamente, puxando o aparelho retangular e amarelo de dentro da bolsa.
Antes de avançarem para o interior assustador além do batente daquela porta com um forte cheiro de enxofre, o antebraço de roçou brevemente em uma das mãos de Shoto.
De todas as coisas estranhas e potencialmente perigosas que aconteceram naquela noite, esse seria um dos momentos em que ela mais se lembraria.
Não teve a ver com o fato de tocá-lo. Teve a ver com o choque térmico que isso causou. Não de uma forma levemente empírica, mas literal. Uma fagulha elétrica que escapou do espaço entre o lado esquerdo de Shoto e o corpo de , um estalo de milissegundos, como se duas rochas fossem esfregadas para fazer fogo. Uma pequena explosão vinda da epiderme de seu lado gelado.
Todoroki se retraiu instantaneamente, afastando-se para o lado. Piscou os olhos repetidamente, recuperando-se do abalo. Não achou que isso merecia atenção – ou mais atenção do que estava disposto a dar naquela hora. Seu objetivo era gelificar outra porção de ferro batido até que se partisse por conta própria e, assim, se livrar de mais um obstáculo do trajeto.
e seus olhos esbugalhados pela centelha repentina teriam que esperar.
A porta rangeu estrondosamente quando foi aberta, e o silêncio enclausurado em cada metro quadrado do breu arrepiou cada poro da nuca de .
Com passos lentos e cuidadosos, Shoto entrou na frente, prosseguindo com todos os sentidos em alerta em direção ao hall sombrio. trabalhou rápido com as mãos; ligou o frequencímetro, onde o palito se mexeu como louco antes de estabilizar no centro, pendendo de um lado a outro como se também tivesse recebido um choque súbito, e puxou uma lanterna de dentro da bolsa, estendendo-a para o garoto, tomando o cuidado de não tocá-lo outra vez.
— Aqui — ela soprou, e ele rapidamente tomou o objeto, acendendo-o adiante em seguida.
O foco de luz mostrou uma recepção deserta e tomada por mofo. Algumas folhas de papel, amareladas pelo tempo, estavam espalhadas sobre todo o piso, algumas unidas pela umidade do chão e das paredes. Pedaços do teto pendiam em um canto ou outro, e algumas lâmpadas fluorescentes ainda piscavam fracamente, mesmo sem emitir luz, agarrando-se ao último fiapo de energia elétrica dos fios desencapados do disjuntor.
O cheiro era muito mais forte ali, abafados por aquelas paredes de metal oxidado, e a sensação de olhos nas costas ficava cada vez mais real.
Shoto limpou a garganta e olhou para . Ela estava parada, encarando todos os pontos em que a luz pegava com o semblante chocado e atento. O medidor de energia em suas mãos não sabia para qual lado seguir, mas ele não se preocupou. De repente, sentiu com toda a certeza do mundo que perceberia coisas melhor do que aquela máquina de laboratório.
Esse era um dos principais motivos de tê-la convocado naquele dia: precisava daqueles olhos; precisava de sua curiosidade e precisava da sua destreza. Eram motivos plausíveis para que pensasse que ela poderia muito bem se virar sozinha sem ele ali, mesmo que estivesse apavorada por dentro, porém isso trouxe outra preocupação: a bisbilhotice de somada aos seus impulsos, e em como essas duas coisas poderiam fazê-la sair por aí sozinha sem perceber.
Pensando nisso agora, Shoto se perguntou sinceramente porque teve a ideia de merda de chamá-la pra . Era o aniversário dela! E agora não conseguiria ter nenhuma capacidade de deixá-la ali, desacompanhada, para poder explorar o lugar.
Era só o que faltava: se preocupar com essa garota. Tratá-la como amiga. Ou se tornar amigo dela.
Bom, aquela ideia tinha sido dele, para começo de conversa. E até agora, não tinha pescado nenhum sinal de que ela poderia sair correndo a qualquer momento.
— Vamos por aqui — disse ele, fazendo-a virar a cabeça em um jato. assentiu, atordoada por todos os estímulos ao redor e Shoto estendeu a lanterna de volta para ela. se recusou na mesma hora.
— Não, ela precisa ficar com você, já que vai na frente…
Ele balançou a cabeça em negação apenas para mostrar, um segundo depois, a bola de fogo nascendo da mão direita, aumentando cada vez mais de acordo com as intenções de seu manipulador, iluminando uma extensão considerável do lugar que aquela lanterna jamais seria capaz.
— Não preciso disso — ele murmurou com um leve sorriso de escárnio. lentamente pegou a lanterna, com os olhos cravados nas chamas — Pronta?
Sem muita opção, ela deu uma última olhada no cenário pútrido ao redor e assentiu positivamente devagar.
— Ótimo — Shoto virou-se para o outro corredor vazio, aparentando facilmente ser a parte mais escura do edifício — Fica atrás de mim. E não sai de perto.

🔥❄


Hawks soltou um gemido quando teve o corpo jogado contra a parede.
A mulher de cabelos loiros e pele levemente rosada voou em direção ao seu pescoço de forma voraz. Não parecia ser apenas um beijo; parecia um contato desesperado, uma fome por cada parte exposta do herói, que tentava falar ou argumentar para que pudesse respirar um pouco de ar, mas tudo que conseguiu dizer foi um som sufocado parecido com:
— Calma aí, gata. Sem judiar das asas, são instrumentos de trabalho.
Ela não deu muita importância. Hawks nem sabia o seu nome, mas isso era o menor dos problemas. Entrando no jogo, o rapaz conseguiu driblar aqueles braços ferozes e trocou as posições usando sua incrível velocidade, passando-a para o outro lado, onde as costas dela foram imprensadas. Ele apertou os dedos em volta de sua cintura fina, desfilando um sorriso perverso que era famoso por derreter corações por aí – e outras coisas também.
— Eu disse que não tenho muito tempo — ele sussurrou antes de ter a boca atacada de novo. Meia dúzia de penas vermelhas saltaram das costas do herói em plena excitação inconsciente. A mulher era linda, gostosa e pervertida na medida certa. O sexo memorável estava garantido, e isso animava muito o herói.
— Mas eu tenho — ela rebateu com a voz banhada em tesão e, quando falou, suas mãos deslizaram pelo peito de Hawks, livrando-se de sua jaqueta alaranjada em um piscar de olhos. Depois, as mesmas mãos o empurravam para a cama king size do hotel, e a forma como umedeceu os lábios com a língua sapeca enquanto desfilava até ele, terminou de acender todas as partes do homem.
Puta merda, é agora que eu desejo paz na Terra, pensou ele. Paz na Terra pelas próximas duas horas. Só duas horas!
De repente, as pernas da mulher estavam prostradas uma de cada lado de seu quadril, e as mesmas unhas que arrancaram sua jaqueta agora deslizavam por seu abdômen em direção ao cós da calça, onde uma protuberância urgente gritava aos quatro cantos o quanto ele já estava maluco.
Aquela situação era o resquício menos pessoal da vida de Keigo Takami. Além de carregar um par poderoso e invencível de asas escarlate, gerir sua própria agência, arcar com o nome e status de herói número 2 e ajudar e aconselhar vários estudantes da Academia de Heróis, ele também tirava um tempo para flertar e se envolver com mulheres aleatórias em diversas relações soltas de sexo casual. Não era algo tão ruim assim. Hawks achava que essa maneira de construir relações exigia uma boa dose de autoconfiança para ser levada adiante – com vários benefícios –, e isso aquele cara tinha de sobra.
No entanto, naquela noite, sua farra seria interrompida cedo demais.
Antes que a loira terminasse de abrir todos os botões da calça cáqui, o toque inconfundível do telefone pessoal de Hawks soou ainda de seus bolsos. Era uma vibração intensa, acompanhada de uma paródia de cornetas, daquelas que tocam em passeatas militares.
Ele nem precisou olhar o nome no visor para saber quem estava ligando.
— Péssima hora, Endeavor — sua voz saiu inevitavelmente mais abafada. Tanto pela libido ativa quanto pela garota que, sem se importar com a interrupção, desceu os beijos para a sua barriga.
— Onde você está?! — um rugido. Endeavor parecia nervoso. Um tom estranho naquela voz fez parecer que ele estava segurando um grito por muito tempo.
Hawks soltou um riso sem humor quando a boca dela se aproximou do zíper.
— Acho que essa informação é um pouco desnecessária — respondeu. Uma de suas mãos pressionou o ombro da garota, coberto por um casaco de crochê, que já estava se ajoelhando para uma performance magnífica.
O som de asco vindo do outro lado da linha trouxe Keigo de volta à ligação.
— Então você não está com o Shoto?
— Não. Deus me livre. Aqui não — Hawks se inclinou para a frente apenas para ajudá-la a se livrar de suas calças.
— Então, onde diabos esse garoto se meteu?
— Eu lá vou saber, Endeavor! O Shoto… — e de repente sua fala se perdeu por dois motivos. O primeiro foi que a garota se colocou de pé repentinamente apenas para se livrar das peças superiores e exibir os aparatos dianteiros que eram de cair o queixo. Hawks sentiu a garganta secar instantaneamente.
E o segundo motivo foi porque se lembrou exatamente da onde Shoto estava. E que só ele deveria saber.
— Ele deve tá passeando por aí. Sabe como é, seu filho é um cara solteiro, um herói de primeira, independente, mora em uma cobertura, deixa o garoto! Agora, se não se importa…
— Não é isso, Hawks! Aconteceu uma emergência por aqui e preciso muito da presença do Shoto.
O herói de asas trincou os dentes quando o nariz dela passeou pelo seu quadril. O volume entre suas pernas agora gritava desesperado. Aquela chamada precisava se encerrar imediatamente.
Não pergunte, não pergunte, só dê um fora no velho…
— Que emergência?
Do outro lado, Endeavor emitiu um longo suspiro. Daquele tipo que deixava qualquer lugar em superaquecimento – de um jeito literal.
— O pai de está nesse momento dentro da minha sala procurando a filha dele, que desapareceu em pleno aniversário de 19 anos.
A primeira reação de Hawks foi franzir as sobrancelhas, ainda com a mente semi concentrada 50% na conversa com Endeavor e 50% nas mãos nervosas da loira, que agora as enfiava por dentro de sua peça íntima.
— Hoje é aniversário da ? — perguntou, um tanto desnorteado, tentando ligar as informações com o máximo que podia.
— Você só ouviu essa parte?! — Todoroki pai grunhiu com a resposta. A divagação de Hawks estava começando a irritá-lo — Tentei contatar ela de todas as formas possíveis, acionei minha secretária e agentes de comunicação e nada! O pai disse que tentou a UA, a Recovery Girl, a Yoshikawa e aproveitou para falar um monte sobre o emprego sem permissão que demos à filha dele. Ameaçou envolver advogados, você tem noção disso?!
A próxima conduta de Hawks pareceu mais real: todos os seus músculos se enrijeceram com a declaração e um sentimento enorme de “merda merda merda merda” começou a dar as caras. Em um movimento súbito, ele se colocou de pé, praguejando sem parar justo no momento em que provavelmente receberia uma carícia sensacional, mas algo mais urgente do que suas necessidades fisiológicas estava acontecendo.
— Ele disse a palavra advogado?! — perguntou ele, inclinando-se para puxar as calças de forma agitada. Tentou não olhar para a expressão confusa e frustrada da garota ainda de joelhos, esperando que aquela interrupção fosse brincadeira.
Endeavor apenas murmurou uma concordância.
— Disse. Por isso eu preciso do Shoto aqui pra me ajudar a procurá-la e, de quebra, acalmar aquele homem com uma propaganda muito boa da filha. E claro, seria ótimo se você caísse fora de qualquer buraco que esteja para vir aqui fazer o mesmo, mas o Shoto também decidiu sumir e não atende o telefone.
Merda de novo. As palavras Shoto e sumir na mesma frase não podiam acontecer naquele dia. Merda!
Quando aquele moleque pediu para que Hawks o desse cobertura, ele não achou que tivesse que fazer isso de verdade.
— O Shoto, aquele garoto — uma risada engasgada foi tudo que Hawks conseguiu emitir para disfarçar o nervosismo — Ele deve ter desligado o telefone porque… Porque… Ah, sei lá, deve estar fazendo yoga ou bebendo cerveja como todo cara de 22 anos. Vou ligar pra ele em um instante pra resolver isso. Tchauzinho!
E não esperou o timbre explosivo de Endeavor para desligar a chamada. De repente, Keigo sentia tanto frio que seus dentes eram capazes de bater, mesmo o clima não estando muito gelado. Ele identificou um frio de dentro, algo peculiar e nada normal. Antes de se mover para qualquer lado novamente, lábios molhados atacaram sua pele do pescoço, e braços finos o agarraram pelas costas.
A tensão quase o fez se esquecer de que continuava em um quarto qualquer do Shinagawa Prince, com uma garota que ainda não tinha nome.
— Só um minuto, gata, preciso resolver uma coisa e a gente já começa a se divertir.
Hawks se afastou até a janela enquanto discava o número de Shoto. Com a mente menos ansiosa pela informação inicial, ele se sentiu burro por se preocupar porque era óbvio que o garoto não atenderia o pai. Estava fugindo dele, oras! Fazendo coisas às escondidas que o trariam problemas com o herói número 1, que o ordenaria a deixar aquela missão em dois tempos. É lógico.
No entanto, essa linha de raciocínio começou a declinar quando o toque soou uma, duas, cinco, sete vezes até cair na caixa postal. E em todas as quatro tentativas depois dessa. Com o coração começando a acelerar, Hawks tentou o celular de , obtendo o mesmo resultado, porém pior: não chamava. A voz eletrônica era a única coisa a soar do outro lado.
Um desespero silencioso brotou do estômago como um projétil. Hawks jamais admitiria que realmente ficou desesperado, mas parecia que alguma coisa estava pisando fundo em sua garganta, obrigando-o a refletir sobre as coisas que permitiu que acontecessem naquele dia: ouvir a proposta de Shoto, ficar calmo com aquilo, ouvir o nome de Rush, ouvir seu plano sobre ir até propriedade fantasma com , ouvir a si próprio repetindo ao garoto que aquilo com certeza daria merda e ouvi-lo garantir que não. E, por fim, acreditar nele, é claro. Afinal, era Shoto Todoroki, um dos melhores heróis do mundo.
E um dos melhores heróis do mundo estava pisando no possível território de um dos piores vilões do mundo.
Fodeu. Fodeu muito.
Hawks grunhiu quando pressionou a tecla de chamada para baixo, enfiando o telefone em um dos bolsos da calça recém colocada e seguiu em direção a porta.
— É, gracinha… O papai aqui vai ter que ir. E digo isso com muito sofrimento — disse ele, descendo os olhos descaradamente sobre os seios expostos da loira enquanto abaixava-se para pegar a jaqueta. A palma dela foi parar em seus joelhos, travando o herói no mesmo lugar.
— Como assim, Hawks? Ah não, fica… — os olhos pedintes dela adiantaram um possível gemido alto de clemência. Ele contraiu a própria mandíbula para abrir um sorriso amarelo.
— Eu adoraria, meu bem, acredite em mim, até pedi aos céus por 2 horinhas de paz, mas acho que meu pedido foi pro final da fila de novo — quando terminou de colocar os sapatos, ele se aproximou dela, abaixando-se para acariciar sua bochecha — Da próxima vez, me lembra de nunca aceitar ser o cara que dá cobertura, tudo bem? Eu te ligo.
— Você nem pegou o meu número.
— Ah, é. Então… a gente se vê por aí.
E sem mais delongas, arrastou os pés rapidamente para a saída, sem ter a chance de ouvir o resmungo seco da mulher largada ao pé da cama.
Enquanto cruzava o corredor, Keigo tentou contato novamente com qualquer um daqueles dois, mas sem sucesso. As piores possibilidades, aquelas em que ele nunca pensava porque um herói nunca devia poluir a mente antes de entrar em ação, estavam aparecendo como trepadeiras, fazendo seu coração disparar por uma junção de coisas: medo, arrependimento e mais medo. Coisas que heróis não deviam sentir.
Lá fora, ele abriu as longas asas e se preparou para alçar voo, mas o som estrondoso do aparelho o fez atendê-lo sem olhar.
— Eles estão juntos, não é? — Endeavor agora rosnava no ouvido de Hawks. Ele quase podia ver as chamas escapando do homem — Meu Deus, como sou idiota! Os dois estão juntos, não estão?
Um momento de silêncio. Hawks sentiu o coração bater nos braços.
— Responda, Keigo!
— O quê? Que ideia é essa? — mais uma risada forçada. Daquele jeito, não poderia mais esconder o quanto estava nervoso — Eu já disse que vou achar o Shoto, eu prome…
— Corta essa, seu desgraçado! Os dois estão juntos ou não?!
Sem saber o que responder, Hawks abriu e fechou a boca várias vezes, odiando em como seu cérebro não acompanhava a velocidade do resto do corpo e o fornecia uma resposta imediata. Se não achasse uma, seria obrigado a falar a verdade. Porque só a verdade explicaria o fato bizarro de Shoto Todoroki e estarem juntos na presença de… ninguém.
Ou melhor: na presença de um super vilão muito, muito perigoso.
— Keigo… — continuou Endeavor, ainda mais irritado.
— É, é… Tá legal, eles estão juntos — o herói respondeu rápido, bagunçando um pouco dos cabelos cor de areia enquanto suspirava — E quer saber, eles podem estar numa furada agora mesmo.
— Como assim numa furada? — Endeavor diminuiu a voz bruscamente.
Hawks respirou fundo. Não tinha uma saída alternativa. Aquele não era o combinado que firmou com Shoto, mas a partir do momento em que seu pai o estava procurando e ele não atendia o telefone porque provavelmente estava ocupado demais lutando contra quem quase o matou há algumas semanas, as regras automaticamente mudam de percurso.
— Não tenho certeza do que foram fazer, mas… Eles foram pra usina Takamaki. Aquela onde o Rush desapareceu.


Parte 5 – Monstro na neblina

Shoto não disse nada à medida que se aproximavam da grande clareira central da usina.
Tudo era silencioso demais. lutava contra o anseio sufocante de se agarrar na jaqueta jeans do garoto, ou em toda a parte de trás de suas costas para se certificar de que não estava sozinha entre aquelas quatro paredes, abarcando sombras brutais e um ar pesado, circundando-os como milhões de olhos predatórios. O aparelho de frequencímetro não indicava nenhuma presença significativa, ou tinha parado completamente diante de todo aquele vazio negro, com tanto medo quanto a garota .
Ela podia sentir seus próprios dedos tremendo. Os ruídos inconsistentes que soavam de algumas partes do lugar eram silenciosos, lentos e imprevisíveis, como se estivessem sendo feitos de propósito para assustá-la. O brilho da lanterna não chegava a tempo para que verificasse o barulho; a luz parecia estar diminuindo gradativamente. Vez ou outra, enxergava uma pequena chama alaranjada partindo de algum ponto aleatório do ambiente, uma chama que parecia ser feita por Shoto, a mesma que usou para iluminar o local mais cedo, mas elas vinham de longe, muito longe… provavelmente, nasciam da palma de sua mão, prontas para qualquer adversidade, mas ela não as sentia. O ar quente se afastava tanto quanto a luz. Mesmo assim, não escutava a respiração dele, não percebia o gelo característico escapando de sua pele, dando a entender que o companheiro não estava nada assustado. Não tinha um pingo de medo. Às vezes, parecia que Shoto nem mesmo estava ali
! — A voz atravessou a névoa como um sussurro furioso. A garota sentiu dedos longos se fecharem em seu pulso, e precisou sorver uma grande quantidade daquele ar contaminado para não gritar. Agora, a chama avermelhada brilhava dos olhos dele, e Todoroki emanava um calor familiar quando se posicionou a centímetros do seu nariz.
O susto repentino roubou o resto das palavras de . Ele chegou muito perto, e muito do nada.
— Eu disse pra você não ficar longe de mim — disse ele, mais assustado do que realmente zangado. franziu o cenho, sussurrando de volta:
— Eu não saí de perto de você.
— Você se afastou por quase dez metros, . Estava andando direto para os fundos daquele corredor — disse Todoroki, ainda com os dentes trincados, e os olhos girando furtivamente para os lados — Não percebeu nada disso?
Ela se manteve parada, esperando que ele estivesse zombando ou algo do tipo, mas a expressão do garoto se manteve irredutível. E então, absorvendo a informação, ficou assustada, assustada de verdade.
Os pés dela estavam se movendo em linha reta, tinha certeza disso. Ainda não tinha decidido se agarraria na jaqueta de Todoroki para não se perder ou amarraria seu casaco nos calcanhares dele para a mesma finalidade, mas com certeza não tinha se movido por nenhum centímetro a mais, tanto para a esquerda quanto para a direita. Isso era loucura. Ela ficaria magoada com uma acusação daquelas em dias normais.
No entanto, estava ciente das possíveis obscuridades que a usina Takamaki escondia assim que entrou no carro de Todoroki mais cedo. A neblina esverdeada rodeando a propriedade adiantava experiências alucinantes e macabras, e talvez ela estivesse sentindo agora mesmo o quanto isso era real.
— Não… — sussurrou, com a voz claramente trêmula — Não percebi…
Shoto imediatamente apertou seu pulso com mais força. Ele tinha secretamente conversado com várias pessoas antes de decidir ir àquele lugar, e a montanha de estudos e relatos que escutou revelavam a natureza medonha dos resquícios da radiação misteriosa e o que essas coisas poderiam fazer com quem estivesse com o mínimo de guarda baixa. Pessoas com mentes voláteis e curiosas. Ele era um herói profissional. Um dos grandes feitos da 4º geração da sociedade super-humana, dotado de duas individualidades. Estava mais do que acostumado a zanzar por aí esperando um ataque. Já
E de repente, pareceu uma bela ideia de gente louca se enfiar no meio de um ambiente com tantas coisas mortais e desconhecidas, até mesmo para ele. Trazer uma garota sem experiência nenhuma para dentro disso beirou a mais irresponsabilidade do que ele já teve na vida, ainda que estivesse esperando que ela abrisse o berreiro desde que chegaram na esquina do terreno.
Mirando os olhos apavorados de , Shoto se sentiu o maior canalha do planeta por tê-la envolvido nisso tudo. No fundo, queria sim que ela tivesse um choque de realidade, que provasse que estava disposta a enfrentar tudo naquela missão perigosa – porque Rush certamente era um milhão de vezes pior do que aquele estabelecimento assombrado –, mas essa ideia não parecia tão legal assim agora. Provavelmente, ela abandonaria tudo quando conseguissem sair daquela caixa terrível, o deduraria para Endeavor e finalmente choraria aos quatro ventos como uma garota deveria fazer, e tinha todo o direito de se sentir assim.
Com um suspiro, ele endireitou a postura e assentiu.
— Tudo bem. Acho que já vimos o bastante, podemos ir…
Ele não conseguia enxergar direito o rosto dela, mas achou ter visto sua boca se mexer, provavelmente para negar a proposta, mas em vez de palavras, emitiu um grito apavorante quando teve o corpo puxado para longe.
! — Shoto gritou quando sentiu o pulso dela quebrar a barreira de seus dedos. A neblina ao redor ficou repentinamente mais densa e lúgubre, cegando-o por completo. “Shoto!”, a voz dela soou ao longe e ele imediatamente estendeu a mão esquerda para lançar um projétil de gelo na direção do som, mas parou antes que o fizesse. Seguindo a razão, notou que não sabia onde ela estava com exatidão, e consequentemente não tinha garantias de que ela não fosse atingida caso atirasse aquela arma sem mais nem menos.
Merda!, ele grunhiu, movendo-se pela bruma com passos desnorteados, tentando enxergar qualquer resquício da garota que desapareceu na fumaça. Seu peito queimava, as duas mãos estavam em prontidão enquanto ouvia barulhos desconexos vindos da escuridão, voltando e retornando, balançando e se concentrando ao mesmo tempo em que o timbre de passeava pelas paredes, sem um norte certo, pertencente à todos os metros quadrados.
A situação se tornou desesperadora. Imprevisível. Cruel. Se algo acontecesse com
Foi quando uma brisa quente e fétida atravessou a centímetros de sua bochecha, a uma velocidade semelhante à de uma bala voando a milissegundos. Com reflexos excelentes, Shoto levantou um dos braços a tempo de erguer uma parede de gelo na direção do sonido – nada pontiagudo para quem não tinha certeza absoluta do que estava atingindo. Com isso, o grito de se intensificou, causando-lhe ainda mais nervosismo. Grunhindo, ele correu a toda velocidade na orientação do berro, expulsando pensamentos apavorados que atrapalhavam a ação de um super-herói.
, onde você está? — uma nova chama nasceu da palma de sua mão, desta vez maior e mais furiosa. Ele não obteve resposta imediata; apenas um resmungo longínquo, pertencente à outra metade do lugar, ou à outra metade da cidade. A bola de fogo aumentou ainda mais conforme seu sangue nas veias queimava. A luz dissipava um pouco da neblina e abria espaço para que enxergasse a poeira e os metais retorcidos como monstros nas sombras — Diga alguma coisa, , qualquer coisa. Basta dizer! Estou avisando, seu desgraçado, se você ousar tocar...
Um golpe certeiro no ombro o fez calar a boca. Foi tão simples quanto um empurrão, sem força o suficiente para derrubá-lo no chão, mas Shoto ainda sentiu a pele quente quando se virou com a bola de fogo e lançou-a na direção da investida. Sua raiva cresceu quando não viu ninguém. E o fato de não fazer a mínima ideia do que estava acontecendo com o fez querer apressar as coisas.
— Tá legal, seu babaca. Você quer brincar? Então vamos brincar.
E então, ambos os olhos bicolores de Todoroki brilharam em labaredas quentes e geladas.
Com um rosnado, sua mão esquerda incinerou até os ombros. A parte direita gelada se transformou em uma parede de gelo sólida e inatingível. Com essa mesma mão, o garoto virou-se na direção que se lembrava da porta de entrada e travou a passagem. Ouviu novamente o grito de ao mesmo tempo em que sentia mais um golpe na costela, atiçando o fogo da mão esquerda, tentando raciocinar ao lutar contra um inimigo invisível e silencioso.
Mas depois de intensos golpes simultâneos, ele não era mais tão mudo assim. O ar fedorento invadiu suas narinas de novo quando se aprontou com a garra afiada de gelo novamente para o lado, atingindo alguma parte do monstro a ponto de fazê-lo grasnir como um cachorro, e o som de um impacto no piso acompanhou mais um grito de . Desta vez, o baque estava próximo, e Todoroki não perdeu tempo para correr até ele, encontrando os cabelos dela espalhados pelo chão e a lanterna com a lente quebrada.
! — Abaixando-se, ele inflamou o restante daquela fumaça para afastá-la o bastante para virar o corpo dela para olhá-lo — , fala comigo. Você tá bem?
abriu os olhos devagar. Um alívio do tamanho da galáxia invadiu Shoto. Ele sabia, por uma questão um pouco intuitiva – e com um pouco de pesquisa também –, que a garota não se machucava tão fácil assim. Sua individualidade de cura tinha uma origem bem estabelecida no seu próprio corpo; seus ossos eram mais resistentes do que a maioria dos humanos, e seus ligamentos eram mais fortes em todas as partes do corpo. Não era nada comparável ao endurecimento de Kirishima, mas ainda era excepcional.
Seus olhos piscando mostraram que estava tentando voltar à realidade, mais do que realmente sentindo dor. Alívio, era tudo que Shoto sentia. Pouco importava o que acontecesse com ele, mas ainda era uma adolescente e adolescentes moram com os pais e ficam de castigo por voltarem para casa tarde da noite com machucados sem contexto.
Bem, pelo menos ele ainda a enxergava desse jeito. Como uma adolescente.
— Todoroki… — ela sussurrou, levantando-se para ficar sentada — Seu ombro…
Ele levou um tempo para entender o que ela dizia. Quando olhou na mesma direção que ela, reparou no grande corte profundo que perpassava da clavícula até a parte de trás das costas, e o sangue descia por seu braço direito até o pulso.
A sensação quente de antes agora tinha explicação. A adrenalina do momento não o deixou perceber que tinha ganhado um ferimento de uns oitenta pontos que agora ardia como nunca.
— Tá tudo bem — respondeu, sem nem ao menos fazer uma careta — Como você está? O que aconteceu? Quem te pegou?
Ela o encarou daquele mesmo jeito de antes, quando ouviu que tinha se afastado dele: confusa. Perplexa. Sem qualquer chance de dar uma resposta porque não tinha uma.
Eram olhos sem vida de alguém que sofreu um apagão momentâneo.
— Eu não sei… — ela sussurrou, sentindo-se ainda pior do que antes — Não sei o que houve. Sabia que não estava perto de você, mas era tudo escuro, estranho e depois… Ele…
Ele?
— Sim. A voz. Uma voz me disse que… Eu estava em perigo. Que o homem das chamas estava tentando me matar — seus olhos voaram imediatamente para a palma esquerda de Shoto, agora sem nenhuma fogueira — Disse que iria ficar muito bravo se ele me machucasse e que o castigaria…
Shoto a encarou por um minuto inteiro. Pareceram mais longos do que isso, mas foi tão silencioso quanto estava aquela caldeira agora; silenciosa e assustadora. pareceu ainda mais tensa.
— Você… Você não o ouviu?
Shoto balançou a cabeça em negação. esboçou uma pequena careta de choro.
— Então por que… Por que só eu? — seus olhos estavam muito abertos. Uma ânsia nascia do profundo mais obscuro de seu estômago. Uma ânsia que surgia do medo e do pavor — Por que…
— Não sei. Não vamos descobrir isso agora, . Precisamos sair daqui…
“E quem disse que você vai sair daqui?”
Antes que se mexesse, Todoroki já estava sendo lançado para a barra de metais mais próxima, sentindo a perfuração no seu ferimento novo e aberto e o sangue jorrando diante de seus olhos.
Tudo aconteceu muito rápido. gritou, a cabeça de Shoto girou, e seus reflexos estavam ainda mais lentos. Tinha batido a cabeça com força, e mais uma queimada invadia outras partes de seu corpo, queimadas que não tinham nada a ver com o fogo dentro de si. Grogue, ele abriu os olhos sabe-se lá depois de quanto tempo para ver se levantando para correr até ele e sendo impedida por uma sombra escondida na neblina esverdeada.
Uma sombra grande. Imensa. Uma sombra com a forma de um homem.
E essa sombra agarrava em de uma forma totalmente estranha, deixando-a paralisada com a boca aberta em um grito surdo.
Todoroki sentiu o peito apertar. Rush? O arqui-inimigo de seu pai?
— Ei… otário… — ainda vacilante, ele colocou uma mão no chão empoeirado, forçando o corpo a se levantar — Larga ela… agora mesmo…
Nenhum dos dois se mexeu. continuava parada, e por mais que seu corpo estivesse congelado, os olhos exalavam seu pavor. Aquele não era um cenário familiar para Shoto, mas ele era um herói e precisava lidar com coisas novas em situações inéditas.
— Você me ouviu, idiota? Larga ela…
Mais um golpe do nada o tornou ao chão. Desta vez, ele previu um segundo golpe simultâneo e retrucou, formando uma estalactite enorme de gelo em um segundo a tempo de gritar e o atacar. Ouviu mais um gemido de dor, desta vez como um rosnado de incômodo vindo de algum animal, e achou ter visto a sombra tremular à medida que avançava com seu gelo, como se as duas coisas estivessem ligadas. Em uma tentativa ousada, o garoto adentrou na fumaça que escondia o bicho invisível e criou uma katana sólida, investindo-a com precisão na direção do meio, onde devia estar a cabeça, e ouviu o rugido forte e alto de dor do outro lado, ao mesmo tempo em que a fumaça se dispersou.
O que se revelou foi algo parecido com um lobo gigante, porém com calda de serpente e cabeça de dragão. Um híbrido louco que agora tinha a lança de gelo em seu tórax, e que soltava um líquido arroxeado da ferida que fumegava e corroía a parte de contato do piso. O animal guinchava, movia as patas tolas em busca de ajuda, respirava com dificuldade e rangia de raiva. Shoto nunca tinha visto um desses na vida. Nunca tinha visto uma coisa dessas. Mas…
— Shoto, cuidado!
Ele acordou a tempo de se defender com um escudo de gelo, que não durou muito diante daquele mesmo líquido corrosivo que jorrava do animal. Desviou para o lado na mesma hora em que previu mais um, e viu correr em sua direção desordenadamente.
— Não! ! Ele vai…
Tarde demais. Por trás da neblina, onde antes havia o homem misterioso, mais uma fina camada de líquido pegajoso foi jogado na direção da garota que corria até ele. Mas então, antes que a atingisse, que pegasse em qualquer parte de seu corpo, algo estranho e extraordinário aconteceu. Algo que faria Todoroki refletir por muito e muito tempo até descobrir a verdade.
O ácido simplesmente se desviou do corpo dela, tomando a rota alternativa pela retaguarda até o corpo de Todoroki.
Aquela coisa realmente queria matá-lo.
Aconteceu rápido de novo. A manobra foi tão repentina que apagou sua mente por um momento. Ele não estava preparado para o que vinha. Quando aquela coisa fumegante foi se aproximando dele – que também era fumegante por dentro, mas tinha certeza que aquela coisa o mataria sem mais nem menos –, uma chama vermelha e intensa, tão intensa quanto tudo que imaginam que o inferno seja, surgiu ao lado de seu rosto, queimando a gosma venenosa antes que chegasse em Shoto.
— Saiam daqui! — a voz inconfundível de Endeavor surgiu bem da entrada, onde Shoto tinha feito a parede de gelo e onde seu pai tinha facilmente conseguido derretê-la. O homem de chamas entrou correndo, iluminando todo o ambiente mais claramente do que Shoto e sua pequena chama na mão conseguiram fazer — Seu merda… — e ele lançou outra bola de fogo, e outra, e mais outra conforme os tiros do inimigo iam aparecendo. Não dava pra saber com quem ele estava falando e balbuciando; poderia muito bem ser para o seu filho, que tinha se rebelado mais uma vez e fugido para uma missão como um adolescente que foge do quarto numa corda de lençóis; ou poderia ser para o adversário nas sombras, que mesmo diante do herói das chamas, parecia se esconder ainda melhor.
— Puta merda! Cacete! — agora outro brilho escarlate se materializou rápido como Hawks e suas asas imensas, aproximando-se dos dois com os dentes trincados — Não foi pra isso que eu fiquei de dar cobertura, seus delinquentes!
E sem esperar nenhuma resposta, agarrou nos antebraços dos dois meninos e alçou voo diretamente para o topo do teto, onde uma claraboia quebrada estava inteiramente tomada pela luz do luar que não alcançava o lado de dentro.


Parte 6 – Medidas desesperadas

Shoto esfregou uma mão sobre o rosto, aparentemente para retirar a poeira, mas seus dentes estavam discretamente cerrados para disfarçar a dor na sutura sem anestesia que os dedos de faziam.
Toda aquela ira que sentiu lá dentro tinha desaparecido completamente. Agora, enquanto estava sentado na caçamba de sua picape, sendo observado de perto pelo par de olhos julgadores do motorista de seu pai – um homem que não parava de repetir o quanto Shoto ainda mataria o patriarca do coração –, ele aproveitou a luz fraca da rua estreita para olhar o rosto de , que estava muito envolvida na cura de seus ferimentos, sem nem desviar o olhar.
Ela parecia bem. Não tinha mais aqueles olhos perdidos e vazios, como se não enxergasse um palmo à frente. Agora, só tinha voltado a ser a garota de 19 anos que devia ter um belo histórico nerd em evidência na U.A.
Mas, observando bem de perto, ou observando por tanto tempo quanto ele ficou, dava pra notar os lábios puxados e o brilho diferente no rosto de quem está segurando uma crise de choro.
Bem, iria chorar, afinal. Assim que tivesse oportunidade. Ela era uma garota, não é? É isso é o que garotinhas fazem.
Quanto tempo levaria para ir até Endeavor e abandonar a missão? Chegariam até a próxima esquina sem ouvir seus soluços?
Endeavor, por sua vez, ainda estava lá dentro da usina. Não se ouvia um ruído sequer que não viesse das cigarras e dos corvos nos postes apagados, e um pouco do barulho das asas de Hawks batendo no céu enquanto fazia a vistoria de fora. Não demorou muito para que o herói número 2 pousasse ao lado do carro, ainda com a expressão raivosa de antes.
— Não achei nada. Esse lugar medonho só guarda ratos e histórias de terror — ele disse com asco, batendo no próprio braço para tirar a poeira — Mas vocês já sabiam disso, não sabiam? Claro que sabiam! E mesmo assim tiveram essa ideia de merda.
— Eu te contei da ideia desde o início — Todoroki retrucou, com a voz ainda fraca. Hawks estalou a língua.
— A ideia não parecia significar que você ia voltar todo fodido assim. Aliás, pensando bem era muito óbvio, já que quando você não pretendia encontrá-lo, ele ainda conseguiu te quebrar inteiro. Você se lembra bem, não é, ? — ele se virou para a garota, agora com a expressão cansada — Não sabia que você tinha preferências bizarras para comemorar aniversário. Tem ideia do que não estar presente no grande Hominiri essa noite nos causou?
— Sinto muito, senhor Hawks. Eu…
— Você sente muito, é? — Endeavor surgiu majestosamente em sua nuvem de fogo num piscar de olhos. interrompeu o trabalho em Shoto. Já estava praticamente pronto, sobrando apenas o sangue manchado nos braços e na camiseta, e uma área bastante avermelhada na área do corte, onde ainda doeria por mais algumas horas, mas não existia mais perigo — Fico feliz por isso. Pelo menos alguém vai se desculpar por toda essa zona.
Ele prontamente lançou um olhar afiado para o filho, que não sentia tensão alguma com as palavras do herói, mas que ainda ficava incomodado com aquele famoso tom que parecia dizer: a partir de hoje, vou te proibir de ver seus amigos, e nem pense em me desobedecer.
Bom, ele tinha tentado fazer algo parecido quando Shoto estava no primeiro ano, mas percebeu rápido que suas ordens não valiam de nada para quem já não tinha respeito algum por ele.
Por outro lado, parecia nervosa. Talvez ela nem esperasse entrar no carro para chorar; poderia fazer isso ali mesmo.
E isso irritaria Shoto, porque lidar com lágrimas não era muito a sua praia.
— Eu sei o que parece… — ele sugeriu na frente, colocando-se de pé devagar — Sei que…
— Você sabe que invadiu um lugar onde ninguém entra porque não tem nada de bom pra se ver ali. Está vazio, Shoto! Vazio como é há 20 anos.
— Então como explica o ataque?
— Porque lugares vazios são abrigo para todo tipo de monstro andando por aí sem um lar. Quer encontrar pessoas perigosas com individualidades surreais? Vá aos esgotos, debaixo de pontes ou usinas abandonadas que vai encontrar um banquete. A maioria dos moradores de rua são pessoas deserdadas por serem diferentes demais, você já deve saber disso — as palavras de Endeavor saíram massacradas por seus próprios dentes, contendo a fúria caraterística de sua individualidade. Não se ganhava nada discutindo com o homem nesse estado, mas ainda assim, Shoto sustentou o olhar repreensivo do pai sem nenhum temor — E ainda trouxe a garota…
— Eu estou bem, senhor Todoroki — interrompeu a troca feroz de olhares. Do jeito que as coisas estavam, era muito provável que uma conversa se transformasse em uma briga e ninguém queria ver uma briga entre os dois Todoroki. Por mais que Shoto Todoroki aparentasse ser um cara pacífico e até entediado com a maioria das coisas, ele era filho de Endeavor, e, bem… O DNA daquele cara tinha que carregar algo peculiar no quesito raiva — Por favor, me perdoe e não desconte no Shoto. A ideia foi minha também…
— Para com isso — disse Shoto para ela.
— Eu também quis vir. Ele não me obrigou a nada, nós só estávamos…
E então, ela não disse mais nada. Porque, apesar de serem totalmente pegos no flagra, não tinha coragem de quebrar a promessa que tinha feito à Shoto. Precisamos guardar segredo. Endeavor a tiraria da missão em um segundo se soubesse o que realmente tinha ido fazer ali.
O herói das chamas estava virado para ela, aguardando uma resposta.
— Estavam o quê? O que vocês vieram fazer aqui, afinal?
A boca de se abriu e fechou 3 vezes antes de Shoto suspirar e tomar as rédeas da situação.
— O que você acha? Nós viemos…
— … Em um encontro!
e Shoto arregalaram os olhos na direção de Hawks.
— O quê?! — a pergunta saiu ao mesmo tempo. Os dois paralisaram. Do outro lado, o herói de asas abria um enorme sorriso.
— Ufa. Graças a deus soltei o segredo. Qual é, gente, não posso guardar essas coisas por tanto tempo, sou muito idiota pra isso. Sei que fui uma má cobertura, mas poderiam tirar esse fardo de mim?
A expressão de Shoto era impagável. parecia mais paralisada do que qualquer outra coisa. Endeavor, no meio do assunto, olhou para os dois garotos e para Hawks com as sobrancelhas franzidas.
— Do que você tá falando? — disse ele, totalmente confuso.
— Estou dizendo que seu filho tem um parafuso a menos por querer comemorar o aniversário da namorada dele num lugar tão bizarro quanto esse.
Namorada?! — Shoto arfou. Endeavor crispou ainda mais os lábios?
— O quê?
— É, pois é, sempre achei que ele fosse inteligente, só que até gente inteligente comete burrice às vezes.
— Que história é essa de namorada? — Endeavor resmungou. A falação de Hawks nunca era muito eficiente com ele.
— Qual é, Endeavor, por que tá surpreso? A queria fugir da rotina entediante do trabalho burocrático da missão e fez um pedido inusitado pro Shoto, que achou que dar só uma espiadinha não faria mal a ninguém. Eles não faziam ideia de que encontrariam essas anomalias hostis ainda no lugar onde o Rush sumiu. Não é mesmo, meninos? Vocês não se arriscariam à toa desse jeito, correndo um risco desnecessário desses, né?
Shoto olhou brevemente para , que fez a mesma coisa, incapaz de dizer uma palavra. A situação tinha tomado um ângulo de 360 graus rápido demais, mas não era certo, logicamente não era nada certo mentir para o número 1.
— Senhor Hawks… — começou ela, sem jeito. Antes que continuasse, Endeavor abriu bem os olhos em sua direção, respirando fundo, como se começasse a ponderar que aquilo estava mesmo acontecendo.
— Espera aí, que história é essa? Ele está falando a verdade? Vocês estão mesmo namorando?
— Nós não…
— É isso mesmo que você ouviu, velhote — Shoto interrompeu, levando o grupo a se calar imediatamente. Não apenas pela informação, mas pela tranquilidade pacata de sua voz. se virou para ele com ainda mais perplexidade — A gente tá… no começo. É muito recente. Não deu tempo de te contar.
O mundo estava ruindo.
Era como se ela ainda estivesse naquele transe bizarro lá dentro, quando foi perseguida pelo inimigo desconhecido e depois não se lembrava de nada.
O que ele estava fazendo?!
— Shoto…
— Tá tudo bem, , ele tinha que saber alguma hora.
Saber do quê? Em que hora? Do que você está falando?!
Ela estava prestes a se descontrolar e negar toda aquela loucura, mas quando Shoto a olhou de novo e furtivamente se aproximou a alguns centímetros, ela conseguiu ler em cada um de seus olhos que aquela história era melhor do que a verdade. Porque a verdade os afastaria da ação, irritaria o número 1 e atrasaria um assunto que, no fundo, só eles poderiam resolver. Os dois sabiam disso. E sempre foi uma pessoa verdadeira, mas naquela hora, estava lendo naqueles olhos pedintes para não ser uma delas nesse momento.
— Desculpe, senhor Todoroki… — ela desviou os olhos para o grandalhão, engolindo em seco — Planejávamos te contar. Depois. É… muito recente.
Endeavor os encarou com a mesma surpresa de antes, absorvendo a informação com estranheza. Esperava sinceramente que eles dissessem que era uma brincadeira. Enquanto os dois esperavam, junto com Hawks, que o herói não perguntasse mais nada.
Com um grunhido no fundo da garganta, ele apontou para a frente e disse para Shoto:
— Entra no carro.
O garoto revirou os olhos.
— Qual é, Endeavor…
— Você vai entrar no carro e levar sua namorada para o pai furioso dela que está esperando no escritório nesse exato momento, pronto pra ligar pra todos os advogados possíveis — rugiu ele, completando com uma voz pequena e dura: — E vai explicar essa história direitinho.


Parte 7 – Desprezo à reminiscência

estava a uma distância de pelo menos 5 metros do pai e, mesmo dali, era capaz de sentir toda a sua irritação emanando das narinas.
Ele já estava daquele jeito quando chegaram à agência de Endeavor, mas ficou ainda pior quando olhou para o carro. Certamente, o homem estava se preparando para dizer à filha mais tarde que não considerava aquilo um carro. Estava mais para algumas milhares de partes mecânicas voando em uma formação agitada, e que isso era bem pronunciado apenas pelo barulho perturbador que a máquina fazia. Coisas assim tinham um enorme poder de irritá-lo.
Afinal, um super-herói profissional que ocupava o top 10 do ranking ganhava dinheiro o suficiente para dirigir algo melhor. já conseguia escutar o discurso.
Hisashi tinha toda a sua atenção no garoto meio a meio, instalado confortavelmente ao lado da filha na grande sala presidencial do herói número 1, vendo que o garoto não hesitou nem por um segundo em encará-lo de volta. Shoto sabia no que ele estava reparando — no conjunto de todas as coisas. A camiseta suja de sangue, os cabelos oleosos do suor do conflito, os sapatos caros sujos de poeira e, é claro, na cicatriz.
Talvez tenha olhado para ela cinco vezes mais do que os outros detalhes.
As sobrancelhas do homem estavam congeladas no meio da testa já fazia 6 minutos. Tinha escutado toda a história do ocorrido assim que o grupo retornou; uma história confusa, contada por mais de 3 pessoas simultaneamente, umas mais desesperadas do que outras, mas o baque da grande informação foi o mesmo.
— Então é verdade? — finalmente perguntou, com a voz grave e severa, sem tirar os olhos de Shoto — Você e ele? Juntos?
Ela engoliu em seco e abaixou a cabeça por um instante antes de responder calmamente:
— É sim.
Como isso era estranho.
não se deu ao trabalho de virar para verificar a resposta de Shoto, mas sabia que ele assentiu com a cabeça pelo ranger de dentes audível do pai.
— E desde quando isso está acontecendo?
— É… — tentou começar uma explicação, mas percebeu logo que seu estoque de mentiras tinha acabado. Olhou brevemente para Shoto, e depois para a janela larga, esperando encontrar traços das asas vermelhas de Hawks, antes recostado no parapeito como um pássaro empoleirado, exibindo um sorriso falso. Mas é claro que agora, no momento oportuno, ele tinha sumido, livrando-se de toda a culpa naquela empreitada que tinha criado — Não sei bem…
— É muito recente, senhor — Shoto interferiu na conversa, e seu timbre era algo assustadoramente tranquilo — Considerando que eu e sua filha nos conhecemos há pouco mais de 1 mês.
O empresário acabou fitando-o com ainda mais irritação, zangado com a ousadia de Shoto em abrir a boca. Hisashi parecia um homem bem ameaçador quando queria, mas se esquecia do fato de que seu aparente genro era um herói profissional. E não um dos comuns; Shoto fazia parte do grupo seleto de pessoas que lutaram contra a Liga dos Vilões e lendas como Tomura Shigaraki, conseguindo sair vivo no final para contar a história.
Esse episódio deixava o homem com ainda mais raiva.
Ele bufou e se levantou da cadeira. Sua frustração queimava nas veias como pólvora. percebeu seus ombros subirem e descerem em grandes lufadas de ar, e sentiu uma preocupação espontânea com a idade não muito avançada do pai. Novamente, ele estava mostrando um lado que ela nunca vira antes.
— Papai… — ela disse com sua voz sussurrada.
— Eu devia ter te colocado na linha, — a voz grosseira se virou para ela como um urso raivoso. Uma veia dilatou na têmpora. levou um susto com aquela expressão — Devia ter punido Hiroto por acatar sua ideia de ir e voltar da escola sozinha, mandado mais seguranças ficarem ao seu lado, Deus do céu! Devia até ter usado meus contatos na UA para me informarem dos seus passos irresponsáveis, e quem sabe assim você não cometeria uma loucura estúpida como essa de trabalhar para essa gente…
— Papai! — arfou e se levantou, os olhos crescendo exponencialmente de tamanho com o choque — Como pode dizer essas coisas? Eu já expliquei, o meu trabalho...
— O seu trabalho é na enfermaria da U.A, e futuramente no Hospital Geral de Tokyo, junto com a doutora Hizuru, como fazia parte do plano. Você ainda está na escola, , não pode...
— A escola só vai durar mais 2 meses, e o Hospital faz parte do seu plano. Eu não decidi nada. Pelo menos não antes... Não é como se eu nunca fosse querer nada na vida.
— Eu deixaria você querer qualquer coisa, ! Poderia te dar qualquer coisa. Mas não trabalhar com super heróis, muito menos se envolver com qualquer membro da família Todoroki, esses problemát…
— Pai! — gritou novamente e avançou, mas não chegou muito longe antes de a mão de Shoto a travar no lugar.
Envergonhada, a garota abaixou os olhos para os próprios pés, incapaz de encarar Shoto naquele instante. Sabia a opinião do pai sobre a família de seu recente namorado de mentira. Sabia a opinião da cidade inteira. Mas ainda assim, não esperava que fosse dizê-lo em voz alta.
Em contrapartida, Shoto tinha se levantado e estava mais perto agora, olhando para o homem com o mesmo semblante de quando entrou na sala, aquela coisa séria e pacífica, demonstrando que não temia nada e ninguém. O que quer que ela significasse de verdade, não agradava em nada o patriarca da família .
— Eu entendo sua preocupação, senhor — disse, com seu tom estritamente profissional — Acredite, entendo mesmo. Fui contra a entrada de nesse estágio desde o início porque sei de todos os detalhes perigosos que fazem parte do trabalho de campo. Mas ela salvou a minha vida, caso ainda não saiba. E isso impressionou muito o meu velho, que não quis abrir mão dos talentos dela, e hoje posso dizer que ele fez a escolha certa. Sua filha é inteligente e determinada, possui uma individualidade fascinante e essas são apenas as primeiras características que me chamaram a atenção nela.
A cabeça de se virou tão rápido quanto um projétil na direção de Shoto. Ele logo sorriu e lançou-lhe um olhar de esguelha rapidamente, para reforçar o que disse.
— As coisas são realmente muito perigosas na minha profissão, mas os frutos dela são extremamente significativos. Nós salvamos vidas, senhor , e se encaixa muito bem nesse papel. Agora, quanto à minha família… — e de repente, ele puxou os dedos ainda sujos de poeira da garota, tomando-os nos seus — Espero que ela não seja um empecilho para a sua aprovação. Pode pensar que não sou bom o suficiente para a sua filha, mas eu quero ser. E vou fazer o meu melhor.
Ele nem hesitou para falar. Não parecia nem pensar enquanto falava. Já , com as bochechas queimando sob a luz fluorescente, precisou deixar a boca entreaberta para colocar a cabeça de volta no lugar e não pensar nos motivos bizarros que faziam seu coração palpitar.
Era o nervosismo, é isso. O choque de estar frente a frente com seu pai enquanto apresentava seu namorado, um namorado que não era de verdade e jamais seria, no dia do seu aniversário de 19 anos era uma situação que só existia no mais profundo de seus sonhos, porque nunca teve um namorado.
Ela só tinha beijado uns três caras a vida toda! Como de repente estava namorando com Shoto Todoroki?! Parecia uma sensação angustiante de estar entrando na casa de alguém sem permissão.
Os ombros de Hisashi cederam um pouco, e parte dos vincos na testa finalmente se desfizeram. Agora ele parecia somente irritado, e não mais furioso.
— Hoje é o seu aniversário — disse ele, virando-se para — Tínhamos marcado…
Nós não marcamos. Você estava ocupado em reuniões na Nova Zelândia, disse que me mandaria um cartão postal. Como em todos os anos...
— Mas eu estou aqui hoje. Reservei o seu restaurante favorito, convidei Komori e Satomi, e mais alguns dos seus amigos da escola. E você estava com… — um leve tom de desprezo escapou da boca de Hisashi enquanto ele tentava não olhar para as roupas arruinadas dela e do rapaz mais alto. Ele se sentiria melhor a respeito dela como pai se fingisse que ela não estava se metendo naquele tipo de coisa cotidianamente.
A resposta de estava na ponta da língua, mas Shoto intervém mais uma vez:
— A culpa foi minha, senhor. Totalmente minha. Pensei que a usina fosse um bom lugar para a pesquisa de , mas…
— Exatamente, a culpa é sua. Quantas vezes vou escutar isso de você? — o homem se aproxima de Shoto, enfurecido de novo — Talvez quando aquele vilão vier atrás de você e do seu pai de novo? E estiver junto? O que vai me dizer da próxima vez? Porque é exatamente assim que as coisas se parecem para mim: que sempre vou escutar desculpas esfarrapadas quando ela aparecer machucada — e apontou para a filha como apontava para os seus subordinados quando estes faziam um comentário que ele reprovava.
— Papai, chega — soltou a mão de Shoto, sem perceber que isso aconteceria de qualquer jeito, porque o aperto dele se afrouxou significativamente diante das palavras do homem. Ela se aproximou do pai, colocando a mão em torno de seu cotovelo — Vamos parar com essa conversa. Já tá tarde e estamos fazendo muito barulho. Melhor a gente ir, sim?
Na realidade, a última coisa que queria era ir embora. Ouvir broncas por 3 km não parecia nada tentador, mas se ficasse mais um minuto ali com aqueles dois, o constrangimento seria capaz de matá-la.
Bufando como um touro, Hisashi mirou Shoto no fundo dos olhos de forma ameaçadora e se dirigiu para a porta, batendo os pés no chão com violência. pensou em ir imediatamente atrás dele para evitar que socasse alguma parede, mas notou que estava sozinha com Shoto pela primeira vez em muitas horas, confusas e malucas horas, e sentiu que não poderia ir ainda.
— Bem… Eu…
— Você precisa ir — ele cortou, com os olhos na direção que o homem percorreu — Não deixe seu pai mais nervoso do que já está.
— Ele não é assim — ela balançou as mãos na frente do corpo — Digo, não é assim sempre. Eu peço desculpas por tudo...
— Não esquenta. Ele não está errado em se preocupar com você.
— Mas ele julga as pessoas de um jeito desrespeitoso — disse ela com desgosto. Foi a vez de suas sobrancelhas se juntarem no meio da testa, o mais perto que já chegou de uma expressão zangada — E ele é humano, um ser pensante, racional, um profissional incrível, então não devia fazer essas coisas. Não do jeito que fez. Por isso eu peço desculpas.
— Ele não é o primeiro que diz essas coisas — Shoto tocou levemente a cicatriz em uma fração de segundos. Se ela pudesse falar, contaria histórias espantosas — E comparado aos outros, ele até que foi bastante respeitoso. Posso lidar com essas coisas, . Agora você precisa ir.
Ele não carregava mais o tom grosseiro e sarcástico que vestia como uma segunda pele desde que o conhecera. Pelo contrário: havia uma pequena, porém verdadeira preocupação faiscando nos olhos bicolores.
— Tudo bem — respondeu, pronta para seguir seu caminho, mas sendo guiada pela dúvida cruel no último segundo — Então nós… Nós estamos mesmo...
Ele desviou o rosto ligeiramente para a janela, fingindo olhar as horas.
— Não posso desmentir tudo agora ou Endeavor vai fazer perguntas. E nossa ida à Takamaki vai perder todo o sentido.
— E ainda não sabemos o que aconteceu lá.
— Exatamente — Shoto completa, como se conhecesse o suficiente para saber o que ela diria — Mas vamos descobrir.
Assentindo, ela foi tomada por um mínimo sorriso determinado.
— Sim. Certo. Vamos.
— A gente se encontra depois. Eu te ligo.
Ela quase questionou: "O que isso significa?", mas preferiu engolir suas dúvidas e se virar para a porta.
— Claro. Então já vou.
— Boa noite, .
— Boa noite, Shoto.


Parte 8 – Paezoa

passou a ver a escola como uma prisão.
Não que o sentimento fosse novidade. A escola sempre tinha sido sinônimo de atraso e superficialidade quando se olhava para o jornal e escutava relatos de heróis profissionais todos os dias fazendo alguma coisa. No fim do curso de heróis, era normal que os estudantes passassem mais tempo do lado de fora, exercendo um contato mais direto com a comunidade em suas devidas funções do que dentro de uma sala de aula.
Mas, de vez em quando, ela ainda tinha que vestir o uniforme da UA e aguentar 3 horas de teoria sobre geografia política.
Porque os super-heróis também precisam aprender sobre diplomacia, dizia o professor Ishiyama com sua voz lenta e monótona de sempre. Era um verdadeiro saco.
Ouvir sobre relações com países alheios não era o suficiente para fazer com que não puxasse o celular de vez em quando e olhasse as notificações, no automático. A voz de Shoto ainda estava ecoando em sua cabeça, mesmo 3 dias depois:
"Eu te ligo."
Ela bufou e voltou a guardá-lo, se sentindo extremamente ridícula. Por que ele ligaria? Do que falariam? Não precisavam continuar com aquela farsa em lugares que ninguém os veria, certo?
A farsa ainda existia? Já se passaram 3 dias, qual é o tempo mínimo aceitável para que um namoro recente terminasse?
Porque iria terminar. Lógico. Bem logo, inclusive. Daqui a pouco.
O sinal estridente a tirou das preocupações, para seu total alívio. Sua cabeça estava achando formas e mais formas de viajar para outro patamar em plena luz do dia, pensando em duas coisas simultaneamente: Shoto. A farsa com Shoto. A usina Takamaki. A maluquice de suas memórias. As conversas que precisava ter com Shoto.
No fim, eram sempre mais de duas ou três coisas. Os pensamentos se transformavam em ramos, expandindo-se em todas as direções.
Ela saiu da sala com uma despedida rápida para Satomi, que teria um dia cheio pela frente nas patrulhas ao lado da heroína Ryukyu, que dissera estar pegando ainda mais pesado do que no ano passado. não falava muito sobre o seu estágio, ou pelo menos do seu estágio secundário, deixando para conhecimento público apenas suas várias e várias horas entediantes porém necessárias na enfermaria da U.A., junto com a brilhante Recovery Girl.
Quando chegou do lado de fora, olhou para o celular de novo, desta vez para verificar o tempo. Ainda faltava uma hora para ir à enfermaria. E não havia ligações perdidas de suas possíveis demandas, vindas de Endeavor ou Shoto, o que era ligeiramente preocupante e desagradável, ainda mais quando pensava que seu pai e toda a situação anormal fossem o motivo disso.
Se o herói número 1 repensasse sua participação naquela missão por causa daquilo, sentia que poderia ficar brava com o pai de uma forma que jamais havia ficado.
Apressando-se pela faixa de pedestres, ela agradeceu por Hisashi não ter tomado providências com Hiroto como havia dito – de mandar uma escolta, como se ela fosse uma criminosa – e seguiu o caminho por 5 quadras pela rua Yanaka, chegando rapidamente às escadarias da biblioteca municipal e adentrando no ambiente escuro e abafado, 24 horas por dia.
— Bom dia, senhor Fukushima — ela cumprimentou o homem de 3 olhos ao pé do balcão, que lia dois livros ao mesmo tempo. Ele levantou o rosto e lhe lançou um sorriso.
— Ora, bom dia, . Quase tarde. Veio almoçar aqui de novo?
— Talvez. É, na verdade, sim — ela deu de ombros. O homem olhou para ela, mas não parecia estar realmente fazendo isso. Havia algo nas paredes de trás, ou nas outras mesas além de para onde ele mirava.
Tsc, tsc. Já disse que você precisa fazer amigos, garota.
— Eu tenho amigos.
— Então por que não almoça com eles? É pra isso que servem os amigos.
— Eu… — ela tentou buscar uma explicação, mas não havia nenhuma. tinha amigos, mas eles não entendiam exatamente seus hobbys ou vontades, como gostar muito de livros ou de ciências, e de comer em sua própria companhia — Eles estão muito ocupados no momento, senhor Fukushima. Enfim, eu preciso pegar um…
— Mocinha — o homem ergueu um dedo longo para apontar para , mas sua orientação estava cabulosamente problemática. O dedo virou-se junto com o corpo para a esquerda, enquanto estava do lado oposto — Sabe que me preocupo com você, não sabe? Já falei ao seu pai que você precisa de uma vida social badalada como os jovens da sua idade e que pare de se perder tanto no mundo dos livros. Acredite, eles são legais, mas não são o bastante. E você precisa de um namorado, você é tão bonita, como…
— Senhor Fukushima — ela o interrompeu, com um sorriso de canto — Está sem as lentes de contato, não está?
Só quando ela disse que o homem pareceu perceber que sua voz estava soando de mais longe que o habitual, e tudo se devia ao fato de que ele estava virado para o lado contrário à ela, falando com um corredor vazio.
— Oh, meu deus — agora ele se curvou novamente, tentando achar a garota — Eu fiz de novo, não fiz? Me perdoe, senhorita , eles ainda não me entregaram as lentes novas. Parece que 3 é um número anormal na indústria e aí usam qualquer desculpinha pra atrasar. Passei dezoito meses com as últimas e ainda não enxergava a linha da minha agulha. Como pode essa gente…
— Preciso ver os registros antigos, senhor Fukushima. Por favor.
— Registros antigos? Por que?
— Para uma pesquisa. Estou quase me formando na escola — ela suspirou — O senhor se lembra?
Ele parou por um momento até arquear as sobrancelhas.
— Ah, claro que me lembro, garota! Como poderia esquecer? Aqui, vai lá — ele tateou a mesa até puxar uma chave identificada como corredor 3 e entregou-a a . Não foi tão difícil para ele e sua semi cegueira temporária, já que o mínimo que se esperava numa biblioteca eram pessoas procurando livros — Aproveite o seu almoço.
— Obrigada!
deixou o homem resmungando coisas sobre atrasos e garotas bonitas e solteiras para trás e seguiu no corredor já conhecido por ela mesma. A biblioteca municipal era como sua segunda casa, sempre servindo bem no quesito distração da correria da fase escolar e de sua vida pacata de poucos amigos acontecendo no plano de fundo. Nos dias normais, certamente abriria aquela porta principal e se perderia no meio daqueles livros até que precisasse emergir ao mundo real de novo. Porém, daquela vez, ela deixaria o mundo dos sonhos de lado para ler mais sobre o real. Sobre o passado.
não sabia bem o que esperava encontrar com isso.
Quando chegou ao final do corredor, achou a fileira de computadores antigos que eram usados apenas para registro e permanência de documentos mais antigos ainda. Ela logo digitou com rapidez: usina Takamaki. Uma pilha de artigos se abriu à sua frente. anotou a numeração das prateleiras e se levantou.
Depois de meia hora, o que encontrou foram dezenas e dezenas de documentos variados falando sobre a mesma coisa: a fundação da usina no final do século 19, muito antes do aparecimento das individualidades, sua ascensão lenta, porém promissora. O sucesso progressivo no meio do século 20, quando foi a pioneira na aplicação e fabricação de gases pressurizados para a instalação dos primeiros ar-condicionados. Depois, a razão do sucesso definitivo: petróleo. Grandes negociações com a Tailândia e Abu Dhabi, o ouro negro chegando em fila nos portos de Osaka, fabricações noite e dia para atender a uma demanda que ainda não existia na sociedade, mas que a usina obrigaria a existir. O Japão estava em extrema mudança com o pós guerra, e já tinha lido tudo sobre os efeitos dessa grande industrialização acelerada, até mesmo quando ela não aguentou a pressão e explodiu. Literalmente.
O acidente tinha acontecido há mais de 20 anos, mas continuava a vagar pelos pontos da cidade como um fantasma. Vagava assim como aquele ar contaminado vagou por um tempo, o mesmo que se recusava a se desgarrar do entorno do lugar, e nunca pensou que aquele horror fosse ficar mais claro em sua cabeça quando pisou lá com Shoto. Mas ficou. Relendo agora sobre todas as vítimas daquele dia, ficou ainda mais. Ela sentiu um arrepio com uma lembrança imaginária. Um arrepio que se estendeu para a próxima linha da reportagem antiga.
A explosão aterradora causou efeitos mais do que adversos não somente na população, mas dentro do próprio trabalho já em andamento da usina. Produtos químicos de alto teor de toxicidade foram misturados a níveis desconhecidos de profundidade. Não se sabe quanto podem ser perigosos, e não se sabe o que pode ter sido roubado logo depois da explosão, mas as autoridades afirmam que conseguiram se apossar do mais perigoso que existe: um líquido de aparência arroxeada, com alta capacidade corrosiva, que destruiu grande parte das barras de metal dos fundos com apenas poucas gotas…
apertou os olhos. Desta vez, o arrepio estava novamente ali, um arrepio tão… real. O mesmo que sentiu antes mesmo de entrar naquele lugar. O mesmo que sentiu só de olhar para as árvores ao seu redor. O mesmo que sentiu quando abriu os olhos depois do transe e não se lembrava de absolutamente nada.
Aquele líquido foi o que atacou Shoto. O que quase o matou! Aconteceu tudo tão rápido, mas ela se lembrava dessa parte, se lembrava perfeitamente de correr para salvá-lo e o fogo de Endeavor invadir sua visão e o lugar.
Ela fechou o livro e o guardou na prateleira. Voltou para os computadores e digitou palavras chave: líquido arroxeado, usina, acidente, entre outras. Surpreendentemente, achou várias pesquisas sobre o assunto. Pelo visto, mais pessoas não quiseram esperar para conseguirem uma pista por mês e também foram em busca do produto estranho.
Paezoa. A coisa tinha um nome.
anotou a denominação, sentindo outro frio na barriga. Não era uma lembrança perfeita, mas uma imagem estava muito clara em sua mente agora: a hora em que aquela coisa tinha simplesmente desviado dela para atacar Shoto. Um líquido perigoso, venenoso, que destruía tudo que tocava e ainda por cima parecia vivo. Vivo e com sede de matar Todoroki, e não a ela.
alcançou a prateleira indicada, e pegou o livro que dera um nome àquela arma. Ela passou os olhos rápidos pelas palavras introdutórias, depois pulou páginas, até que finalmente parasse em uma palavra que com certeza a pegou de surpresa. Relacionar Paezoa àquilo com certeza era ir contra todas as possibilidades.
Mas precisava checar.
“... E Paezoa, como a comunidade científica anda chamando, realmente teve participação nessa grande desgraça que aconteceu em Camino. Vocês se lembram de Camino? Aposto que sim. O grande responsável pela aposentadoria do ex herói número 1, All Might, como não se lembrariam? Também se lembram da estreia dos grandes inimigos daquela época, que voltariam a assolar nossa comunidade depois, indo e vindo várias vezes, não lembram? Isso mesmo, os Nomus! Como acha que eles foram feitos? Por que eram tão perigosos e indestrutíveis daquele jeito? Como conseguiam destruir tudo em volta? Não, isso as pessoas não sabem, mas quem quer saber? Foi uma época tão negra… E depois eles surgiram maiores e mais fortes, não é mesmo? Trabalhando ao lado do All For One e tudo mais. História louca e complicada. Quando olho para o passado, fico chocado em como as pessoas não conseguiam relacionar os outros horrores mais passados ainda para explicar o que estavam vivendo. É lógico que alguém estava mexendo com Paezoa em um grande caldeirão escondido, fazendo pausas sazonais e criando monstros com aquilo com um largo e generoso sorriso no rosto. Como faziam isso é um mistério, mas quando a genialidade é usada para o mal, as coisas podem…
— Tá um pouco frio aqui, você não acha?
soltou um grito seco quando se virou para trás em um pulo, enxergando Shoto através de seus olhos arregalados de susto.
— Shoto — disse ela, com uma mão à boca. Ele piscou duas vezes, preocupado em receber advertências naquele espaço nada propício — O que tá fazendo aqui?
— Precisava falar com você.
— Não ia me ligar? — Há três dias, ela quis completar, mas seria insano. Pareceria uma cobrança. Uma cobrança sem sentido, já que eles não tinham absolutamente nada.
Isso é tudo culpa sua, namoro de mentira.
Ele permaneceu indiferente.
— Não gosto de falar por telefone.
Então por que disse que ia ligar? Ela quis perguntar novamente, e tinha certeza de estar fazendo isso pelos olhos, mas decidiu permanecer quieta. Vai saber porque Todoroki agia como agia. Devia ser adepto a várias convenções sociais mais do que imaginava, como dizer “eu te ligo” quando não pretendia ligar de verdade.
Finalmente, encontrou a linha de volta do raciocínio lógico e apenas assentiu, limpando a garganta rapidamente.
— Tudo bem, então… como me achou?
Essa era fácil.
— Fui à enfermaria. Uma secretária muito simpática me disse que você costuma almoçar aqui.
— Ah, claro — ela automaticamente abaixou a cabeça, um pouco constrangida. Yoshikawa também deve ter dito que ela estava sempre fazendo isso sozinha.
— Você não parece estar comendo — comentou ele, espichando os olhos para o livro-revista amarelado pelo tempo em suas mãos.
— Não estou com fome. Vim aqui pra pesquisar sobre… aquilo — ela baixou o tom de voz, olhando discretamente para os lados. Aproximou-se de Shoto ligeiramente — Sobre o que vimos na usina. Aquela coisa…
— Eu sei. Paezoa — disse ele, no mesmo tom abafado — Vim falar sobre isso. A coisa que nos atacou naquela noite. Ela parecia estar sendo lançada por alguém, talvez por aquele monstro bizarro, mas era só uma forma de pegar impulso. Parecia viva, mas não pensante, tinha apenas um objetivo, mesmo que não tivesse forma. Parece que já vi isso antes, em algum lugar, mas eu não…
— Nomus — disse . Shoto travou no mesmo lugar, com a expressão completamente estupefata.
— O que disse?
apontou com o dedo na parte específica da entrevista que lia. Os olhos de Shoto acompanharam as linhas com uma rapidez extraordinária. Ele precisou aproximar bastante o rosto para não deixar o documento à vista. Estava tão próximo que poderia beijá-lo.
Quê?! Beijá-lo?! A mente dela estava obviamente brincando.
Quando terminou, ele se afastou para o lado, olhando-a com certo espanto.
— Nossa, isso… eu não esperava por isso. Faz um bom tempo que não escuto esse nome.
— Pois é, eu também não.
— Como você sabe dos Nomus? — Shoto perguntou, encostando um ombro na prateleira.
— Como eu não saberia dos Nomus? Eles foram inimigos conhecidos. Mataram e destruíram coisas demais para não estarem na história, mesmo que eu fosse nova demais pra lembrar em detalhes.
— Não achei que essa história tinha chegado até a Alemanha — disse Shoto, fazendo arquear uma sobrancelha para ele. — É, o Endeavor me disse. Você e seu pai vieram pra cá há menos tempo do que achei. Hisashi fez questão de dizer isso à ele naquele dia, incluindo o motivo — Shoto desviou os olhos por um segundo até dizer: — Sinto muito pelo motivo.
baixou os olhos, engolindo em seco o que já tinha engolido demais com o passar dos anos: a dor. Ela sempre aparecia vez ou outra quando se lembrava do assunto, mas tinha aprendido a não fazer com que isso fosse mais um problema.
— É… Imagino bem como deve ter sido esse discurso do meu pai — ela fez uma careta. Shoto cruzou os braços na altura do diafragma e a encarou.
— Se lembrar daqueles monstros não deveria ser nenhum motivo de vitória, mas… fico mais aliviado por não ter que contar os horrores pra você.
— Ninguém deveria ter isso marcado na memória como você. Muito menos na pele.
Shoto a encarou profundamente por um momento, com o olhar emanando tudo e nada ao mesmo tempo, e pode ver uma mínima faísca brilhar de seu olho direito, tão rápida que pareceu uma alucinação.
— Precisamos investigar isso — disse ele, ajeitando a postura — Precisamos saber porque essa coisa te pegou.
— Precisamos saber porque ela estava doida pra te matar.
— Ela queria me matar ou queria te proteger? — perguntou ele, retoricamente. sentiu um frio na espinha, porque pensar que aquele monstro tinha qualquer interesse nela era absurdo e desconcertante — Enfim. Não importa, vamos descobrir. Sinto que vamos.
— Você acredita em destino?
Ele deu de ombros.
— Só se eu puder mudá-lo.
assentiu. Foi uma boa resposta.
— Então sinto que vamos ter sucesso.
Ela viu outra pequena fagulha em seu rosto, desta vez de um sorriso, mas aquela sim só poderia ser uma alucinação.
— Você pode pegar esses documentos como pega livros? — ele apontou para a revista em suas mãos. balançou a cabeça que sim — Então reúna os que achou interessante e vamos.
— Vamos? Pra onde?
Shoto franziu o cenho para ela.
— Comer. Você parece ter usado seu tempo pra outra coisa.
parou por um instante, absorvendo o convite. Aliás, não parecia um convite oficial, e sim um aviso. Um aviso casual demais. Era pelo namoro de mentira? Pela missão? Por pura amizade, ou uma tentativa dela?
Não fui muito bem educada para lidar com garotos, Todoroki, então pode me dar sinais mais claros, por favor? Somos amigos agora, é isso?
? — ele a tirou de seus devaneios, e logo se empertigou, procurando os demais materiais que havia separado.
— Hum, claro, ok — ela limpou a garganta, tentando não parecer tão patética. Isso não quer dizer nada, por favor, pare de pensar — Na verdade, acho que vamos ter que deixar pra depois. O meu horário na enfermaria começa em…
— Tá tudo bem, pedi pra secretária avisar à Chiyo. Ela vai entender, já que foi uma das responsáveis por te jogar nessa missão — ele lembrou, levantando ligeiramente os ombros — Creio eu que ela não vai se importar com um dia de folga.
Dia de folga?
preferiu não perguntar. Com as coisas organizadas, ela e Shoto seguiram para fora da biblioteca, e antes que chegassem à porta principal da frente, uma voz soou em suas costas:
— Achou o que precisava, senhorita ? — Fukushima perguntou com um sorriso imenso no rosto. Um sorriso insinuante.
tentou seguir seu olhar cegueta para saber o motivo de sua felicidade, mas não era necessário. Com certeza o velho deve ter ouvido dois pares de passos. E com certeza ouviu a voz masculina de Shoto, pronto para alegar coisas que não existiam.
— Peguei sim, senhor Fukushima, obrigada pelas informações. Vou me divertir muito com meus novos empréstimos.
— Ah, acredito que sim, como sempre! E quem é o cavalheiro?
Ele perguntou com a trinca de olhos para o teto. Shoto ergueu o pescoço, procurando o cavalheiro em alguma viga do pé direito, mas apenas balançou a cabeça e suspirou.
— À direita, senhor Fukushima — disse ela, e o homem prontamente abaixou a cabeça — Esse é Shoto Todoroki, meu… — e travou de repente. Bom, não existia uma denominação exata para Shoto; não eram amigos, não eram namorados e não podiam dizer que eram colegas de uma missão secreta — Ele veio me ajudar com alguns livros. Estamos de saída. Então…
— Ah, senhor Todoroki! O filho do herói número 1 — o homem bateu uma palma de empolgação. — Que alegria. Minha maldita visão não me deixa vê-lo e apreciá-lo nesse momento, infelizmente, meu jovem. Mas já o vi na TV várias vezes e preciso dizer que tem um charme, além de ser muito bom no que faz. Você e seu pai, grandes nomes da nossa sociedade, uma família inteira de muita peculiaridade, mesmo com todo aquele escândalo…
— Senhor Fukushima — repreendeu .
— É um prazer conhecê-lo, senhor — Shoto respondeu com toda a tranquilidade existente na atmosfera, fazendo uma pequena reverência com o pescoço, ainda que o homem não pudesse ver — Preciso levar pra almoçar. Ela passou muito tempo concentrada em livros. Então, se permite…
Ele esperou o homem sorrir e balbuciar uma dispensa, para só então voltar a dar as costas e caminhar para a saída. encarou o homem no balcão com o cenho franzido e uma expressão de advertência, mesmo que não adiantasse muito. Com certeza se lembraria de censurá-lo por falar da família de Todoroki daquela forma.
Ainda assim, o garoto parecia imperturbável. pensou em quantos anos de pessoas inconvenientes e comentários maldosos era preciso acumular para conseguir peneirar o que se escutava e chegar no nível daquele estado de espírito.
Do lado de fora, Shoto puxou um molho de chaves dos bolsos e clicou no botão de uma delas, caminhando até o meio fio em direção a um Volvo prateado que nunca havia visto. Um Volvo que não se parecia com a sua picape de sempre.
Por quê ele estava caminhando para um carro que não era dele?
o viu contornar o carro até a porta do motorista, quando ele parou e olhou em sua direção, percebendo que ela não o acompanhou.
— Não vai entrar?
Ela piscou os olhos algumas vezes.
— Que carro é esse? — perguntou, sem notar se estava soando rude ou não. Todoroki trocou os pés e umedeceu os lábios.
— Só uma coisinha que eu tinha guardado. Vem, entra.
Ele se acomodou no volante. ainda estava confusa quando se acomodou nos bancos de couro claro, abrindo ainda mais os olhos para captar os detalhes daquela máquina. Era algo muito além do se imaginava que alguém como Shoto Todoroki usaria.
— Você tinha um carro desses guardado? — perguntou ela, em um misto de choque e espanto. Shoto deu de ombros, puxando o cinto de segurança.
— Não tem nada demais. Eu gosto da minha picape — suspirou, cravando os olhos no retrovisor — Mas se seu pai soubesse que carreguei a filha dele por aí naquela coisa de novo, pode mandar ainda mais seguranças na sua cola.
Shoto lhe lançou um sorriso em linha fina. juntou as sobrancelhas, sem entender.
— O quê? — riu pelo nariz, descrente. — Do que você está falando? Não ando com seguranças.
— Não é necessário, já que eles andam atrás de você — e vagarosamente, Shoto inclinou a cabeça para o banco de trás, levando a girar o pescoço para o pára-brisa traseiro e olhar a rua. Estava normal, como qualquer outro dia. Mas em qualquer outro dia, era difícil ver uma SUV preta imensa estacionada ao sol com homens de preto no banco, olhando para todas as direções.
Homens de preto iguaizinhos a Hiroto.
sentiu o sangue ferver, e uma veia latejar na têmpora.
— Não acredito… — trincou os dentes.
— Ah, eu acredito. Sabia que ele faria isso a partir do momento em que entrei na sala naquele dia — Shoto era novamente uma pedra de serenidade. Girou a chave na ignição, puxou o freio de mão e se preparou para sair da vaga.
— Shoto, isso é ridículo e constrangedor. Eu peço desculpas…
— Relaxa, . Seu pai não me coloca medo. Ele só está preocupado com você — disse ele, olhando-a de soslaio — E com o carro que eu dirijo, mas tudo bem, espero ter conseguido um ponto com o Volvo — deu de ombros, e outro lampejo de sorriso imaginário surgiu em seu rosto — E por levar minha namorada pra almoçar.


Parte 9 – Devoção letal

— Cacete, que susto! — Shoto arfou assim que acendeu as luzes de casa, encontrando a silhueta de outra pessoa ocupando sua poltrona. — O que faz aqui?
A garota fez um gesto desdenhoso, como se aquele detalhe não fosse tão importante.
— Como não notou minha presença antes de girar essa chave?
Shoto revirou os olhos e fechou a porta com um pé. Sem dizer nada, caminhou em direção à cozinha, indo direto para a geladeira e agarrando a primeira bebida à vista – que não fosse uma garrafa de cerveja de semanas atrás ou um suco de caixinha aberto. As opções restantes eram água ou saquê. Ele preferiu o saquê.
— Você tá distraído — a voz disse novamente, desta vez aparecendo bem ao seu lado. Outra vez, Shoto não notou sua presença — Qual é o problema?
— Qual é o seu problema, Risa? Já troquei minha fechadura umas 4 vezes. Você entende que não tem mais livre acesso pra entrar aqui quando quiser?
— O seu porteiro pensa outra coisa. Ele ainda não superou que você tenha simplesmente cansado de mim.
— Fora — Shoto apontou para a porta, ansioso para encerrar o assunto e o tempo da mulher sob aquele teto.
Mas Risa tinha outros planos. Cada mínima oportunidade de estar perto de Shoto precisava ser aproveitada.
— Para com isso — suspirou ela, usando sua super velocidade para estar na mesma poltrona antes mesmo que ele virasse para a sala. — Vim saber das novidades. Como anda seu pai? O trabalho? Namoros?
Ele riu com ironia, caminhando até a sacada para puxar seu cigarro.
— Continue cutucando em busca de respostas e vai continuar recebendo nada.
— Ficou assim por causa da pergunta dos namoros?
— Eu não tenho namoros.
— Então quem era a garota com quem estava almoçando no Trolgan’s hoje?
Shoto parou com a mão no maço, voltando-se para ela com um certo espanto, mas que não durou muito. Estavam falando de Risa, afinal! Ela via tudo, e sabia tudo, pelo menos a respeito de Shoto Todoroki.
— Você tá me seguindo? — de novo, ele quase completou.
Risa riu ingenuamente.
— Claro que não, bobinho. Pode não parecer, mas tenho coisas a fazer. Como ter uma reunião com a nova marca de roupas esportivas que está sendo uma febre em New York com a minha assistente, uma garota muito submissa que quer a minha total atenção e está disposta a fazer tudo que eu quero. Inclusive me falar por onde anda meu ex-namorado e com quem ele está abaixando as calças por aí.
— Meu Deus, Risa — Shoto fez uma careta de desagrado. — Me diga que não falou uma coisa dessas pra sua assistente.
— Claro que não, Shoto. Ela me contou que te viu almoçando com uma menina, mudei de assunto e fomos trabalhar. Mas guardei a informação, é claro — ela deu de ombros, descontraída. — E não parei de pensar nisso até parar nessa porta e perguntar o que está acontecendo.
Shoto revirou os olhos, agora enfim conseguindo puxar seu cigarro e acendê-lo com a ponta do dedo.
— Você se move por cada besteira. Não veio me perguntar nada quando fui atacado em Togoshi Ginza há algumas semanas.
— Ah-ah! Primeiro: eu estava fora de Tokyo, em um lugar muito inóspito e distante, caminhando uma semana inteira na mata gravando conteúdo digital sobre os componentes naturais do novo cosmético da Karax. Isso passa mais credibilidade para o cliente. Fiquei sabendo de tudo quando voltei e você já estava milagrosamente bem, e confesso que estava totalmente sem saco pra aturar a cara feia do seu pai. Sabe que ele nunca gostou de mim.
— Ele não gosta de quase ninguém, Risa. Não foi por isso que a gente terminou.
— Não importa, sempre fomos amigos, apesar disso — ela se levantou, andando até ele com os olhos estreitos. — E é terrivelmente inconveniente saber do novo relacionamento do seu amigo pela sua assistente.
Shoto bufou, cuspindo a fumaça para fora. De todas as afirmações que ela tinha verbalizado, uma estava certa: os dois realmente eram amigos. E amigos de longa data, muito diferentes entre si, tão extremos quanto a individualidade do garoto meio a meio, que pensaram que poderia ser uma boa ideia namorar depois de uma sequência de beijos às cegas. Dois amigos que se curtiram por um tempo, mesmo que soubessem, no fundo, que não era sério. Não tinha como ser sério. Objetivos tão diferentes na vida não se entrelaçavam no longo prazo.
Mas Risa ainda estava na lista de pessoas especiais para Shoto, mesmo que não lidasse muito bem com o termo privacidade e fosse descuidada com a própria fama, mas era alguém em quem ele confiava. Na maior parte das vezes.
Tirando o fato de que ela também não sabia lidar com um não.
— Ela não é minha namorada — disse ele com firmeza, abaixando um pouco da voz em seguida: — Não de verdade, pelo menos.
Risa ergueu uma única sobrancelha e cruzou os dois braços.
— Você tá em um fake dating? — sugeriu Risa. Shoto juntou as sobrancelhas.
— Um o quê?
— Um fake dating. Duas pessoas que fingem namorar, mas que sempre se apaixonam no final. É assim nos filmes e nos livros, pelo menos.
— Não — Shoto repetiu a mesma careta de asco. — Isso não faz nem sentido, Risa. Quer dizer, sim, estamos fingindo namorar, mas a outra parte é totalmente coisa dos seus livros.
— Você que pensa, querido Todoroki — ela suspirou, apoiando um dos cotovelos na sacada. — Essas coisas podem parecer besteira pra essa sua personalidade fria e intragável, mas funcionam mesmo na vida real. E como. Você só precisa ser picado pela flecha do cupido uma vez e voilá. Aconteceu — Risa sorriu, ainda que parecesse uma lamentação. Fez com que Shoto a olhasse de frente — Não aconteceu com a gente, mas quem sabe pode acontecer com outra pessoa.
Ele quis rir desesperadamente. Quis garantir à ela que ficasse tranquila, que as coisas estavam sob controle, que delírios eram coisas de seu departamento e que Shoto estava livre dessa besteira, mas ele não pode deixar de sentir a rápida compaixão que se apoderou de seu peito ao ver aquele semblante triste no rosto da ex. Risa tinha um ótimo coração, e nunca soube o quanto ele ficou um pouco mal quando supôs que terminassem o que tinham, seja lá o que era aquilo, porque notou seus olhos apaixonados quando já era tarde demais e não estava disposto a oferecer o que não tinha.
Segurando o cigarro entre os dedos de uma mão, ele ergueu a outra e a apoiou nos ombros da garota.
— É tudo uma farsa, Risa — explicou ele, com um sorriso de canto. — Eu e , nós… estamos em uma missão secreta. Por secreta você entende que não posso te contar, ok? — ele adiantou antes que ela perguntasse — Mas estamos trabalhando. É isso. Vale de alguma coisa pra você relaxar e não mandar sua assistente atrás dela?
A garota franziu os lábios, mas acabou assentindo no final, compreendendo o traço característico de Shoto de sempre ser discreto com as coisas do trabalho. E mais ainda com coisas do coração.
— Se você não está namorando, então estou feliz.
Risa…
— Feliz porque não estou por fora das coisas. Argh, seu chato — ela revirou os olhos, e começou a caminhar para a porta — Agora posso ir embora. Tenho um horário com o massagista. Quem sabe ele não é o meu novo consolo, já que meu ex namorado não me quer.
Ele balançou a cabeça e tentou dar uma risada. Observou a garota andar até a entrada, segurar na maçaneta e se virar de novo.
— Ei, Shoto… — disse ela, com a voz um pouco mais baixa — Essa missão secreta que você disse… Vai tomar cuidado, não vai?
Ele assentiu.
— Claro que vou, Risa. Fica tranquila.
— Não consigo. Não consigo ficar tranquila quando penso que você só tinha quatro anos quando foi parar no hospital por causa daquele… — travou, desviando os olhos para o tapete persa, detendo a língua antes de falar do número 1. Sabia que, muito provavelmente, Shoto seria a última pessoa a se importar de ver alguém criticando Endeavor – ainda mais alguém que sabia dos horrores passados da família Todoroki. Mas, bem, ele já era um homem adulto e não precisava ouvir sempre a mesma história.
— Tá tudo bem, Risa — voltou a tranquilizá-la, atravessando a sala para falar mais de perto — Não faço isso por ele. Mesmo. Só quero cumprir com meu trabalho de super-herói, que também inclui destruir o mal antes que ele aconteça. A verdade é essa.
Risa balançou a cabeça rapidamente, repetindo para si mesma que Todoroki não tinha como se dar mal em nenhuma situação. Ele era um dos melhores heróis do Japão – rápido, estratégico e inteligente. Ela não vivia em uma bolha para não saber disso, como as pessoas da internet achavam.
— Confio em você, Todoroki. De verdade. Se precisar de mim, sabe onde me encontrar.
Ele deu um sorriso de canto.
— Pode deixar que vou encontrar — e antes que ela saísse de vez, inclinou as costas para dizer em um timbre mais sólido: — E nunca mais quero te ver dentro da minha casa sem permissão.

🔥❄️


As horas na enfermaria não passavam de jeito nenhum.
chegou a pensar que a Recovery Girl fazia de propósito. Ela sabia muito bem de sua missão com Endeavor, já que tinha mediado todo o processo para que a garota se reunisse com pai e filho em algo aparentemente grande demais, mas ainda assim, lá estava ela, perdendo horas do dia, dia após dia, dentro de uma sala branca sem ventilação, à espera de alunos com dores de cabeça e com um ou dois dedos quebrados do treinamento.
Coisas fáceis, previsíveis, que não agitavam o sangue como ela queria.
Nos últimos 3 dias, usou todo esse tempo livre para pensar na missão, a qual não era atualizada há dias. Não gostava de pensar nisso, muito menos do porquê estaria acontecendo. O almoço com Shoto não revelou nada, além de muitas suposições sobre Paezoa e vários relatos sobre batalhas do passado. Desde então, ela tinha mergulhado em todas as pesquisas possíveis que conseguia encontrar sobre a substância, como era manuseada pelo inimigo, como atingia o cérebro humano e mais detalhes de eventos antigos que pouca gente se lembrava de verdade, eventos com Morte escrito bem em cima de seus arquivos.
Alguma coisa estava escondida, algo que ela poderia usar, algo que descobriria hoje.
Enquanto tentava interpretar as várias nuances da linguagem científica sobre a composição química de Paezoa, ouviu a porta da enfermaria se abrir devagar, rangendo como de costume.
— Pois não? — Disse ela, sem levantar os olhos do livro. Não queria parecer mal educada, mas estava bem em cima de uma parte onde um cientista renomado da época explicava sobre as possíveis pontes de enxofre, mais fortes do que as de hidrogênio, que ligavam os elementos tóxicos entre si de forma quase irreversível.
Quando não obteve resposta pelos próximos 2 minutos, levantou a cabeça e encarou a porta.
Um homem de porte médio, aparentemente de uns 30 anos de idade, estava parado ali, embalado com pelo menos 5 casacos diferentes e um grande sobretudo por cima, terminando toda a vestimenta com um capuz. juntou as sobrancelhas para ele, levantando-se devagar.
— Posso ajudar, senhor? — perguntou ela. Nunca o tinha visto e estava longe de ser um aluno ou funcionário, mas com todas aquelas mantas em um dia quente de primavera, era possível que o homem estivesse se sentindo muito mal.
— Eu… Não estou me sentindo muito bem — disse ele, e a voz era grudenta, arrastada, pesarosa. A voz baixa e rouca de alguém que fumava muito. Ele deve estar prestes a ter uma embolia, ela pensou. Deve estar ardendo em febre com toda essa roupa.
Ela apontou para a primeira cadeira que viu, falando para ele:
— Sente-se aqui, por favor.
O homem caminhou até o assento, mais lento do que o normal, desabando em cima dele com a respiração irregular. agora reparou nos lábios rachados e nas olheiras profundas por debaixo do capuz. Tinha certeza que ele estava febril apenas por olhar. O homem era uma tragédia prevista, e precisava de ajuda imediatamente.
— O que o senhor tem? — perguntou ela enquanto ia à outra mesa buscar o estetoscópio, e mais alguns objetos que a ajudariam a diagnosticá-lo.
— Tenho mal, senhorita — respondeu ele, simplesmente. Parecia um pouco tranquilo demais — Estou mal.
Ela ignorou o arrepio iminente que a palavra lhe causou, concentrando-se em se aproximar dele e colocar o estetoscópio. A quantidade de roupas atrapalhava o serviço, então ela se virou de frente para o homem.
— Preciso que tire os casacos, por favor, senhor.
O homem hesitou por um momento, mas logo assentiu e abaixou o capuz. Pequenas gotas de suor desciam pela lateral de seu rosto, confirmando a febre e outros males, e tirou o primeiro e o segundo casaco com dificuldade, por serem os mais grossos. As outras mantas finas pareciam úmidas de suor. se sentiu ainda mais preocupada com ele.
— É o suficiente — disse ela, interrompendo as mãos do homem antes que ele arrancasse a próxima camiseta, temendo que ele sofresse de uma hipotermia gradual caso fizesse isso — Vou averiguar seu pulmão.
Ele nada disse. se aproximou o suficiente para encostar o diafragma do estetoscópio no comprimento de suas costas onde estava o órgão, e colocou as olivas nos ouvidos.
Por um longo momento, não escutou absolutamente nada.
Ela esperou mais um pouco, mudando a posição do diafragma, apertando mais a campânula em busca de algo, mas era como se o homem não tivesse um pulmão, ainda que estivesse claramente respirando. aguardou mais um instante, mas em vez de ouvir algo, ela sentiu algo.
Sentiu dedos gelados na área do joelho, dedilhando sua pele por cima dos jeans com alguns rasgos, raspando tão discretamente que ela poderia pensar que fosse alguma brisa fria entrando pela janela.
— Você é tão bonita quanto disseram — murmurou o homem, e virou a cabeça devagar para ele — Muito, muito bonita. Me dá vontade de protegê-la de outro jeito…
E então, os dedos subiram ainda mais por sua pele e ela entendeu tudo em um estalo de desespero.
Com um grito sufocado, ela pulou para trás, encarando-o com os olhos arregalados. A voz dele ainda era sordidamente arrastada, e seu rosto ainda parecia pálido e doente, mas aqueles olhos estavam vívidos e cheios de malícia. Eram olhos assustadores, olhos que a prendiam e atacavam sem tocá-la, e sentiu um medo imediato, um medo que não sentiu muitas vezes na vida.
O medo de ser uma garota indefesa sozinha com um homem.
— Q-quem é você? — ela perguntou, tentando controlar o tremor das mãos. O homem logo estava de pé, muito rápido, como se toda aquela fraqueza da chegada não tivesse passado de fingimento.
— Ora essa, isso não é necessário, linda — respondeu ele, caminhando em sua direção. sentiu o peito descompassar, e tentou tatear o armário atrás de suas costas em busca de alguma coisa pontiaguda que serviria como arma — Eu só estava curioso, só isso. Me disseram que você era muito bonita, e não estavam errados. Gosto de garotas bonitas.
— Quem disse? — ela trincou os dentes, ainda olhando para ele enquanto movia as mãos nas costas — Quem é você? Por que…
E de repente, em um piscar de olhos, o homem estava à sua frente, perto demais para quem a deixaria continuar se mexendo ou até mesmo dar um grito. paralisou, as mãos que tentavam uma fuga perdendo a coordenação. Os olhos dele a encararam com fúria, crepitando com um brilho estranho, arroxeado, as lentes esclerais e os canais lacrimais vermelhos como sangue, como se estivesse sob efeito de drogas ou de algum alcalóide mortal.
— Você tem… Um cabelo tão bonito — balbuciou ele, como se estivesse em transe, e seus dedos rasparam no cabelo escorrido de pelos ombros — E uma pele tão macia…
Pense, ! Sua mente gritou em agonia. Seus olhos tinham poças de água, grudados nas pupilas dilatadas do outro diante dela, lutando para não espernear. Talvez nem conseguisse fazer isso, já que estava presa. Ela precisava pensar, raciocinar como super-heróis, que caminhavam lado a lado com a morte todos os dias e sempre tinham uma carta na manga. Pense, , pense
Ele sabe o seu nome! Como diabos sabe disso não sei, mas se tem o meu nome, então sabe como me matar. Por mais que eu sinta que ele quer se divertir antes de me matar de fato.
Os pensamentos ferviam, embolados. tremia. O grito morria e voltava para a garganta. Quando o hálito quente do homem estava em seu nariz, ele sorriu mostrando presas disformes na arcada dentária suja de roxo.
— Como deve ser o seu gosto? — aquelas mãos grandes voltaram às suas coxas. Elas tremiam também, mas sabia que era pelo seu estado deplorável — Como deve ser aqui…
Em um ímpeto de puro terror e desespero, conseguiu mover um dos braços para trás, puxando a ponta de alguma coisa a tempo de enfiá-la no braço que a tocava.
O homem soltou um urro de dor enquanto ela se jogou para o lado, caindo de joelhos com o choque, acordando para a urgência da situação a tempo de cambalear até a porta, focando apenas na porta, suportando o coração esmurrar o peito de medo, preparando-se para gritar…
E de repente, seu corpo foi jogado ao chão novamente, parado pelas pernas grandes do inimigo, que começou a puxá-la de volta para ele.
— Me solta! Me larga! Socor-
Sua voz foi cortada pela mão em sua boca, e seu corpo virado para cima, na direção frontal do homem, que fazia uma careta tremenda de dor enquanto sangrava pelo braço.
— Desgraçada! Não devia ter feito isso…
puxou um dos joelhos e o atingiu na área da virilha. Ele se distraiu de novo e ela se livrou de seu aperto, gritando o mais alto que podia enquanto se rastejava para conseguir se colocar de pé. O homem mancou de encontro à uma maca e um armário, cego pela tortura, esbarrando em um armário e alguns quadros na parede. se desvencilhou de uma cadeira, puxando-a para trás de si como um obstáculo, porque ele se movia rápido demais. Puxou um pedaço de luminária para garantir que chegasse à porta sem ser pega, e caso fosse, poderia atingi-lo com pauladas no chão à sua frente.
Mas um cheiro tenebroso e maléfico a fez diminuir os passos e se virar para olhar.
Quando o fez, a mão dele se fechou em seus tornozelos de novo. caiu, a respiração entrecortada e apavorada, movendo a perna com desespero para que ele a soltasse. Não apenas por isso, mas porque estava queimando. Tudo estava queimando. Os dedos eram fortes, mas eram apenas… dedos. Dedos ligados a um pulso, que eram ligados a braços e depois… não havia nada.
O corpo do homem estava se desintegrando. Se desintegrando em roxo. E o sangue naquela hora que pensou que fosse sangue era… aquilo era…
Paezoa.
— Sua… desgr… — ele tentou dizer, mas sua boca estava sumindo. Seu nariz, bochechas, ombros… tudo estava desaparecendo. Condensando-se em líquido inflamável. Espalhando-se pelo piso e queimando. Queimando, queimando.
ficou apavorada.
— Socorro! — gritou, balançando ainda mais a perna para se livrar do que tinha restado dos dedos, que se espalhavam em gosma quente como lava, invadindo sua pele. Gritou mais ainda quando o fogo penetrou, e penetrou, e penetrou…
Ela não conseguia se mexer. O roxo estava por toda parte. Rastejava até ela, devagar e certeiro, e chegava perto, cada vez mais perto…
!
Ela mal ouviu a voz ao longe. Só conseguia encarar o líquido pegajoso, lembrando-se debilmente de sua possível composição química, de seu poder letal, e em como a dor que lera nos livros era real, muito real, estava se alimentando de sua pele nos tornozelos, descendo até os tênis, prontos para tomarem o pé também, a amputar um de seus pés, prontos para causar um estrago…
Ela não sabia onde seu corpo estava. Era muita dor, e muita agonia, e o cheiro adentrava em suas narinas, e de repente haviam pessoas na sala, e homens de branco, e pessoas fazendo OK com os dedos, e o rosto pequeno da Recovery Girl, e talvez as faixas de Aizawa, e luzes vermelhas e azuis…
As últimas coisas que percebeu antes de finalmente perder a consciência.


Parte 10 – Novas imprecisões

Shoto não se deu ao trabalho de cumprimentar os seguranças de Endeavor parados na frente do grande Hospital Geral de Tokyo.
Era difícil esquecer a urgência do pai ao telefone quando disse algo sobre , hospital, ataque e de novo. Ele nem se lembrava do que estava fazendo antes, ou do que pretendia fazer. Só respondeu coisas desconexas ao telefone, juntou sapatos e chaves e costurou o trânsito em menos de 5 minutos.
Quando avistou Nanase, a secretária do CEO da Agência Endeavor, parada ao lado do corredor de leitos, ele se aproximou com a expressão mais trincada do que a habitual.
— Cadê ela? — chiou Shoto entredentes, pronto para seguir corredor adentro e não lhe dar chance de conversa.
Nanase notou sua presença tardiamente. Quando viu, as costas de Shoto já empurravam a porta dupla, seguindo para dentro e ignorando totalmente as placas de SOMENTE FUNCIONÁRIOS.
— Shoto, ei…
— Endeavor! — o garoto gritou pelo passadiço de quartos, dispostos um ao lado do outro com janelas largas de vidro, possibilitando a visão para os cômodos adentro, e seus olhos bicolores verificavam cada centímetro das paredes do lugar em busca de um cabelo minimamente parecido com .
Quando notou a pequena aglomeração de seguranças na frente de uma única porta, seus olhos captaram a sombra do que poderia ser até que seus pés fossem impedidos pelas chamas ardentes do herói número 1, surgindo como uma barreira bem na sua frente.
— Calma aí, garoto. Você ainda não pode entrar.
— O que foi que aconteceu? — Shoto trincou os dentes, sem tirar os olhos dos braços de tomado por infusões, e seus olhos fechados em um sono tranquilo.
Endeavor acompanhou esse olhar, suspirando pesadamente.
— Ela vai viver. Poderia ter sido muito pior se ela não tivesse uma habilidade pra gritar e tanto. As pessoas morrem quando não deveriam morrer se não souberem gritar bem assim.
Algo furioso e escaldante tomava o peito de Shoto. Alguma coisa anormal, sobressaindo-se ao seu lado esquerdo, enquanto tentava adivinhar o que aconteceu, como se sentiu, criando cenários desnecessários que despertava ainda mais raiva e frustração, soando como um descontrole que certamente não era do feitio de Shoto Todoroki.
— E não me diga que as pessoas que fizeram isso estão vivendo quando não deveriam.
Endeavor ficou em absoluto silêncio por um momento. Obrigou Shoto a encará-lo, levantando uma sobrancelha em espera.
— Foi só uma pessoa que fez isso, Shoto. Não sabemos quem. Alegou ser um paciente na enfermaria e estava sozinha. Quando Chiyo ouviu tudo, ela já estava sendo atacada por aquela coisa — ele franziu os lábios em uma careta. Shoto continuou na mesma posição, à espera de algo mais específico — Aquela coisa que estava te atacando na usina. A coisa roxa e bizarra.
O ar em volta pressionou os pulmões do garoto. Seus ombros cederam por um instante. Os olhos ganharam um brilho de surpresa, juntando as peças na mente para formar uma única palavra: Paezoa.
Rush.
Nomus.
E todas as outras coisas que ainda não tinha contado para Endeavor.
De repente, todos os cenários caóticos que sua mente estava tentando formar não chegavam perto do que poderia ter acontecido de verdade.
— Ela… Minha nossa — ele prendeu a respiração, passando uma mão agitada pelo rosto — Ela está bem?
— Com licença, senhores Todoroki — uma pequena enfermeira se aproximou de pai e filho, e Shoto ainda levou alguns segundos para conseguir se virar — A senhorita acordou. Gostariam de entrar?
— Eu vou — Shoto não esperou qualquer abordagem ou argumentos de Endeavor. Em um segundo, já estava abrindo a porta do quarto de , agora vendo-a terminar de se empertigar na maca.
moveu os olhos devagar para a movimentação na entrada, e franziu o cenho por um segundo, como se não o reconhecesse ou não enxergasse direito, como se o garoto meio a meio fosse uma alucinação. Shoto se aproximou da cama e, gradativamente, sua visão foi melhorando, focando, e um pequeno sorriso foi nascendo de seus lábios quando o discerniu por completo.
— Shoto…
Ele engoliu em seco pela fraqueza em sua voz. Fora a palidez dos lábios e a expressão cansada, não parecia haver nada fisicamente errado com ela.
— Oi, — cumprimentou ele, sentando-se na ponta da cama — Como você está?
— Melhor. Me deram alguma coisa pra dormir porque disseram que eu estava com muita dor, mas suspendi o uso deles assim que consegui falar. Não quero ficar dopada o tempo todo quando já estou melhorando.
Shoto umedeceu os lábios, assentindo levemente com a cabeça.
— O que houve? — perguntou, sentindo a garganta ficar um pouco fechada quando pensava nas possibilidades. — Endeavor me contou uma coisa que… Não sei o que pensar, não sei o que quero pensar. Preciso que você me conte do que se lembra, caso consiga.
encarou a janela do lado de fora, fitando as árvores mais próximas que formavam uma copa por cima da grande estrutura do hospital. Quando baixou os olhos de novo, ela puxou lentamente o lençol branco para cima, revelando um dos pés completamente enfaixado.
— Ele provavelmente queria me matar — sussurrou ela. — Mas isso foi tudo que conseguiu.
— Isso foi…
Paezoa respondeu na frente, em voz mais baixa, olhando discretamente para fora logo em seguida. — Então, provavelmente, só vou poder te contar em detalhes quando não estivermos rodeados de tanta gente.
Em seguida, surpreendentemente, puxou a mão dele contra si, falando em uma voz peculiar, baixa e abafada, aproximando um pouco o rosto para o dele com um singelo sorrisinho de canto. A atitude tinha sido tão repentina, mas tão natural ao mesmo tempo que o garoto não teve tempo de reagir. Certamente tinha franzido o cenho de confusão, e certamente não entendeu a falha de batimentos que durou 2 segundos, mas um rápido inclinar da cabeça de em direção à porta explicou tudo quando Endeavor entrou no aposento junto com a mesma enfermeira de antes.
— Com licença, senhorita — disse ela, segurando uma prancheta. — Seu estado melhorou muito da parte da manhã até agora, graças à sua estrutura óssea muito resistente e seu próprio poder de regeneração. Lamentamos que tenha sido tão doloroso no início, mas você se saiu bem. Está liberada pra ir pra casa, se assim desejar.
— Estava esperando você falar isso — soltou a mão de Shoto, que nem reparou que ainda a estava segurando. A garota logo se livrou dos cobertores, tentando puxar as pernas para o chão.
— Você quer que eu ligue pra alguém? Seu pai ou…
— Não! — ela negou com força, usando agora sua voz formal e determinada — Mantenham meu pedido de mais cedo, por favor. Não avisem o meu pai de forma nenhuma.
A enfermeira engoliu em seco e não insistiu.
— Como quiser, senhorita. Mas então, quem…
— Eu vou levá-la pra casa — Shoto disse imediatamente na menor iminência de ver Endeavor abrindo a boca. O olhar surpreso do pai foi parecido com o olhar surpreso de , colocando um pouco do disfarce anterior por água abaixo — Ela é minha namorada, velhote. Não inventa de ser gentil agora.
As bochechas de e da enfermeira coraram um pouco, e a garota limpou a garganta para esconder o constrangimento, virando-se para a mulher.
— Você pode me dizer onde estão minhas coisas, por favor?
— Claro, estão no banheiro, eu ajudo você — a enfermeira pegou na curva de seu cotovelo e a ajudou a se deslocar bem devagar para a porta mais próxima dentro do quarto, fechando-a logo em seguida.
Com pai e filho sozinhos no mesmo compartimento, Shoto sabia que não demoraria para Endeavor começar a falar.
— Sabe o que esse ataque significa, não sabe?
— Me diga você.
— Rush sabe o que estamos fazendo — disse ele, baixando o tom de voz — Sabe que estamos atrás dele.
Shoto o encarou como se ele tivesse dito que teve uma alucinação.
— E foi atrás de ?!
— Ela é o ponto mais vulnerável de todos nós — Enji afirmou com convicção, e Shoto não soube como revidar — Sei que agora estão juntos, mas isso talvez piore as coisas. Estou tentando pensar racionalmente e traçar padrões nisso tudo que sofreu, mas não entendo como isso pode ter sido obra do acaso. Rush é covarde o suficiente para matar todos ao nosso redor antes de nos matar, e isso inclui usar as pessoas que amamos para nos enfraquecer — ele olhou firmemente para Shoto, que desviou o rosto depois de alguns segundos quando se certificou que Endeavor estava usando aquela tática diária de novo de tentar ser um pai amoroso e compensar os erros do passado.
— O que você está querendo dizer, velhote?
não pode mais fazer parte dessa missão.
Shoto ergueu o queixo em um jato. A verdade daquela frase sempre tinha sido bem explícita para ele desde que bateu os olhos na garota pela primeira vez, porque sua presença nunca combinou com um esquema tão absurdo que envolvia um herói de grande porte como Rush.
Mas agora, depois que viu e presenciou sua força de vontade e a mágica que sua determinação em buscar informações podia fazer – como ajudá-los a avançar mais rápido –, tomou conta dele mais do que seus pensamentos prévios sobre .
— Você não tá falando sério.
— Ela corre perigo, Shoto. Achei que tivesse deixado isso claro pra mim da primeira vez.
— Todos nós corremos perigo, Endeavor. E confesso que queria ela fora no início. Mas agora, mesmo concordando que estamos em um barco muito perigoso, sou mais a favor de perguntá-la primeiro sobre uma desistência ao invés de simplesmente sair riscando o seu nome.
— Que evolução — Endeavor ironizou. — Se as perguntas bastam, então deixo essa tarefa com você. Tenho certeza de que se a resposta for sim, existe outro motivo mais forte para que ela decida passar um tempo da vida procurando por um criminoso que tentou te matar — alfinetou, e Shoto estreitou os olhos, pensando loucamente em soltar uma risada e dizer que a farsa estava indo muito bem para que Endeavor pensasse que faria coisas por causa dele — Vou voltar pra agência. Preciso acionar a equipe de inteligência para avaliarem as câmeras de seguranças e tentarem captar a cara do desgraçado. Também precisamos de respostas sobre aquele ácido que quase decepou o pé da — Endeavor suspirou, cansado apenas com a ideia de tanto trabalho — Você tem ideia do que é aquilo?
Shoto o fitou por cima das sobrancelhas, ponderando a questão em poucos instantes. Assim que Endeavor soubesse que a possibilidade dos Nomus existia, tudo acabaria. Ele dissolveria toda aquela equipe da missão, incluindo o próprio Shoto, e começaria uma caçada pessoal à Rush, sem folgas ou auxílio, porque a possibilidade de ter aqueles bichos horrendos de volta era mais assustadora do que tudo.
E Shoto não podia deixar isso acontecer.
— Ainda não sei de nada. Mas confio nos seus robôs da inteligência.
Endeavor revirou os olhos. Shoto deu de ombros.
Antes saber uma coisa dessas por funcionários do que pelo próprio filho.

🔥❄️


— Era Paezoa. Eu tenho certeza — disse quando já estavam há vários quilômetros do hospital, segurando com força no couro do cinto de segurança — Quer dizer, inflamável daquele jeito, como não poderia ser? Mas tinha algo estranho dessa vez.
Shoto mudou a marcha, olhando-a de soslaio.
— O que tinha de estranho?
— Aquele homem controlava o ácido, mas ao mesmo tempo parecia ser o ácido.
Shoto engoliu em seco, sussurrando pesarosamente:
— Como os Nomus.
assentiu, e pareceu apertar o cinto com mais força.
— Como os Nomus.
Um trovão rosnou abaixo deles, como o rosnar faminto de uma fera invisível. Causou arrepios intensos em , que tinha o pensamento aliado com Shoto em uma certeza assustadora: a situação era maior do que esperavam, algo que crescia e crescia das profundezas de um lugar misterioso e que escondia segredos que eles ainda não sabiam.
Quando ele estacionou na frente da grande mansão da Shinga Street, os dois não se mexeram de imediato. Shoto ainda tinha dúvidas potentes na cabeça, fazendo com que ele não se segurasse para dizer:
— Ainda não entendo porque foram atrás de você — ele se virou para ela, correndo os olhos até o curativo grande no pé direito da garota — Quer dizer… Endeavor disse que significa que Rush sabe o que estamos fazendo, mas é tão estranho. Não temos tantas pessoas inteiradas dos detalhes da missão, você não faz o trabalho de campo, e o primeiro ataque foi direcionado a ele. Achei que Rush e seus lacaios quisessem se concentrar na família Todoroki, se restringindo a ataques pessoais. Não consigo aceitar que ele queira usar você para nos atingir.
— Porque não estou no centro das atenções — murmurou ela, e Shoto assentiu, caindo no silêncio de novo — É estranho que Rush esteja me observando de alguma forma, já que você mesmo me apontou que meu pai já está fazendo isso. A não ser que…
franziu o cenho. Shoto esperou, vendo-a virar os olhos para os lados, pensando rápido.
— O que foi, ?
— Nada. É que… aquele homem, antes de me atacar e tentar me pegar, ele disse algo sobre me proteger. “Gostaria de proteger você de outra forma”, foi o que ele disse. Isso não é exatamente uma resposta para a pergunta que temos, mas não deixa de ser esquisito. Como um cara daqueles poderia me proteger?
Shoto encarou o painel do carro, piscando em vermelho. Tinha certeza da anormalidade que devia estar sua fisionomia no momento. A mandíbula se fechou inteiramente no rosto. O sangue fervia como lava. Sabia que queria ouvir o relato de sobre o ataque, mas aquela pequena palha já era muito pior do que pensou, deixando-o atipicamente zangado, bravo, pronto para destruir um covil inteiro dessas novas bestas sem nome.
O quanto ela deve ter ficado com medo? O quanto deve ter gritado?
Ele não olhou para ela e respondeu com uma voz terrível:
— Talvez seu pai tenha deixado algo passar quando resolveu contratar os homens de preto — balbuciou, apertando o volante disfarçadamente — Seria bom falar com ele.
— Mas, Shoto…
— Preciso fazer isso, . Talvez ele me veja como alguém mais confiável se eu apontar erros na sua gestão. Uma coisa dessas não pode voltar a acontecer.
não discutiu. Todas as luzes no hall de entrada da casa estavam acesas, o que significava que Hisashi já estava na residência ou chegaria a qualquer momento. E depois daquela última conversa envolvendo Shoto, não permitiria que seu pai abrisse a boca para vomitar ofensas gratuitas de novo.
Eu vou falar com ele — ela anunciou, tirando o cinto de segurança. — Sem mencionar o ataque, é claro. Ele não sabe e é bom que continue assim.
Shoto a mirou de frente desta vez, pensando em argumentos para contra-atacar a resposta, mas viu naqueles olhos que ela estava genuinamente querendo protegê-lo. Protegê-lo de Hisashi, de novos comentários hostis, os quais já era tão acostumado em escutar, mas nunca pensou que fosse se sentir tão relaxado em ver alguém tão preocupado em censurá-los.
Talvez por isso tenha olhado brevemente para a porta da casa, e pensado em pedir para que ela não fosse ainda.
Talvez tenha reparado na mesma coisa, em como os olhos bicolores do garoto a analisavam de um jeito intenso, como se estivessem prestes a falar, mas não falavam. esperou. E nada veio.
Nada viria. Era insanidade criar as coisas que estava criando na cabeça em relação a Shoto – expectativas. Desejos. Isso era de mentira.
Suspirando, ficou aliviada pelo silêncio, porque o silêncio era um terreno seguro entre os dois, mas também estava desapontada por não espiar mais profundamente dentro do Shoto de verdade, e aceitou a situação abrindo a porta do Volvo.
— Vou entrar. Mais tarde nos falamos.
Shoto assentiu, levemente desnorteado, e voltou a tocar a marcha.
— É claro. Tudo bem.
Ela deu um sorrisinho e saiu. Já estava andando bem melhor do que quando deixou o hospital, e entrou na casa rapidamente.
E Shoto ainda tinha a pergunta entalada na garganta. Aquela: você precisa de ajuda pra entrar? Posso entrar com você.
Posso subir com você.
Posso ajudar com esse curativo.
Mas isso soava muito com o passar da linha que ele mesmo impôs para si, então engoliu todas as frases e apertou a embreagem.


Parte 11 – Lampejo pútrido

Os dedos de Risa procuraram sem sucesso por um disjuntor de luz.
Shoto bufou por trás da mesa larga e desnecessária de madeira escura, sem titubear por nenhum segundo pela entrada repentina da mulher na sala. Vê-la irrompendo pela porta já era muito melhor do que pela janela ou surgindo repentinamente no banco de trás da caminhonete, o que fazia Shoto gritar mais uma vez sobre invasão de privacidade.
— Nós precisamos conversar — disse Risa, batucando os saltos no piso laminado até a poltrona elegante à frente da mesa do melhor herói da Agência Endeavor.
Shoto revirou os olhos, puxando uma prancheta qualquer para esconder os rabiscos prévios que fazia em um pedaço de papel, pensamentos soltos e teorias bizarras sobre a missão.
Ele recostou-se rigidamente para trás, bagunçando um pouco o cabelo.
— O que você quer hoje, Risa?
A porta da sala se abriu repentinamente, e uma mulher baixa, de óculos redondos e saias longas até os pés com cascos ofegou até conseguir dizer:
— Senhor Todoroki, ela… — tentou dizer, mas viu que a mencionada estava bem ali, sorrindo calorosamente em cima da poltrona de convidados, totalmente confortável — Ela entrou sem autorização! Eu estava indo pegar um café lá embaixo, tentei pará-la, mas ela, ela corre…
Shoto levantou uma mão para que a mulher se calasse, balançando lentamente a cabeça em concordância.
— Tá tudo bem, Mirei. Eu me viro com essa aqui — ele encarou Risa com cansaço, e em seguida fez um pequeno gesto para que Mirei se retirasse, dando-lhe um sorriso gentil de superior.
Novamente sozinhos, Risa dobrou uma perna por cima da outra, os olhos brilhando como dois pontos de luz.
— Então agora você tem uma secretária?
— Não por escolha minha — Shoto suspirou, apoiando os cotovelos no tampo da mesa — Agora diz o que você quer antes que eu precise te levar até a porta.
— Você conseguiria? — ela estreitou os olhos.
— Já lidei com gente mais rápida do que você — ele deu de ombros, carregando um tédio escancarado na voz. Mesmo que, de fato, tivesse enfrentado todo tipo de individualidade espalhada pelo país, Risa e sua silhueta transformada em borrão ainda eram uma dor de cabeça.
A garota juntou as duas mãos no peito, teatralmente ofendida.
— Isso foi bem rude. Sua namoradinha está inclusa nessa lista? Qual é mesmo a individualidade dela?
— Foi isso que veio me perguntar?
— Não. Queria dizer que agora sei o nome dela — Risa bateu duas palminhas, animada. Shoto revirou os olhos, voltando a se recostar na cadeira.
— Eu te falei o nome dela.
— Você me disse o primeiro nome. Tão de relance que mal entendi. Mas agora sei bem como chamar o seu fake dating, não é, ? Nunca pensei que você fosse namorar uma adolescente.
Risa riu, lançando-lhe uma piscadinha esperta. Shoto quis se manter sério, mas não conseguiu transparecer um grande incômodo. Risa tinha tantas particularidades peculiares, como criar um filhote de corvo, colocar piercings nos mamilos e financiar o projeto de um foguete espacial que ser obcecada por quem anda passando o tempo com Shoto era apenas a mais tranquila delas.
Era tranquilo porque ele sabia que ela jamais se aproximaria de . Não sem esperar uma enorme bronca de Shoto.
— Isso tudo é ciúmes? — questionou ele, sem lhe ceder um sorriso. Ela inclinou a cabeça até o meio da mesa.
— Claro que estou. Você em um namoro de mentira parece mais atencioso do que no nosso namoro, que foi de verdade. Nem acredito que cheguei a te dar um par de fones macios e caros de presente. Devia tê-los amarrado no seu pescoço.
Agora ele deixou que um pequeno sorriso sacana pintasse seus lábios, achando o nariz torcido de Risa a cena mais cômica do dia.
— Tudo bem, então. Se está com ciúmes, pode me dar o histórico dela completo?
Shoto perguntou sem nenhum plano. Nenhuma reflexão que o fizesse discernir os prós e contras de envolver Risa em qualquer centímetro daquela história, mas ela tinha algumas vantagens perceptíveis que eram impossíveis de ignorar: dinheiro e contatos.
E, claro, tinha sua confiança.
— Ela não é sua namorada? — Risa pareceu confusa, engolindo o timbre brincalhão. Shoto apenas deu de ombros.
— As coisas são mais complicadas do que isso, você sabe. Pode arrumar ou não?
Risa sorriu um pouco, um sorriso recheado de satisfação e malícia.
— Claro que posso. Mas só depois de um encontro.
Todoroki riu sem humor, balançando a cabeça em negação.
— Não posso sair com você. Tenho namorada, esqueceu?
— Você mesmo disse que não é real, bobinho — em um piscar de olhos, Risa estava cara a cara com ele, passando o dedo indicador em sua bochecha.
Shoto revirou os olhos, afastando seu pulso delicadamente.
— Mas estou levando a sério. Pela missão — ele frisou a palavra, aproximando-se de seu nariz para sussurrar — E aí, pode ou não?
Risa bufou com certa indignação, afastando-se para a janela larga do outro lado da sala, cortesia da empresa para um dos melhores funcionários da lista de Endeavor.
— Claro que posso. Mas acha que ela cometeu um crime?
Shoto passou uma das mãos atrás da nuca, expirando forte pelo nariz ao pensar.
— Não ela — respondeu em voz baixa, e começou a se preparar para a chuva de perguntas de Risa, que receberia respostas totalmente evasivas sobre a missão.
Mas ela mal teve tempo de abrir a boca quando a porta de Shoto se abriu novamente, desta vez com uma entrada nada elegante ou tímida como a de Risa e Mirei.
— Que bom que te encontrei — Endeavor falou em uma voz arrastada, uma que tardiamente Shoto entenderia ser pelo uso intenso dos pulsos de fogo que usava para voar — Preciso que venha comigo. Encontramos alguma coisa.
Shoto virou a cabeça para a janela antes de responder, mas, felizmente, Risa já tinha desaparecido.

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se espremeu com dificuldade entre os ombros abarrotados por trás da faixa amarela, pedindo licença aos quatro ventos até conseguir chegar no local onde um policial civil pedia gentilmente e, depois, com mais precisão para que as pessoas se afastassem da cena do crime.
Indo contra a indicação, ela ficou na ponta dos pés por um minuto, tentando encontrar o topo do cabelo bicolor de Shoto, ou as asas gigantes de Hawks, ou as chamas incandescentes de Endeavor em algum canto daquela bagunça de flashes e sacos pretos, mas não conseguiria nada do lado de fora. Segurando a bolsa cruzada sobre o tronco, ela puxou a faixa amarela para cima, passando por debaixo dela até a entrada do galpão da distribuidora de bebidas.
— Ei, ei, mocinha — em um piscar de olhos, um policial alto e imponente se materializou como uma parede à sua frente antes que pensasse em dar mais um passo — Onde pensa que está indo?
— Estou trabalhando — arfou, tentando novamente olhar por sobre o ombro do homem — Sou da agência do Endeavor, e sei que ele está aqui, acabei de sair de lá.
— Se trabalha com ele, por que não chegou aqui junto com os outros? — perguntou, desconfiado. franziu os lábios, tentando achar alguma forma de não deixar tão claro que não sabia mais do caso do que quem estava sentado na sala naquele momento assistindo as breaking news direto da TV.
Mas antes que abrisse a boca para externar a primeira desculpa que viesse, a voz grave e autoritária surgiu por trás da montanha de músculos:
? — Shoto se aproximou lentamente, um pouco confuso — É você?
— Shoto — ela ficou imediatamente aliviada. Mas os olhos severos do policial sobre ela extinguiu isso bem rápido — Senhor, eu juro…
— Ela está comigo — disse o herói, adiantando o discurso gago que ela provavelmente estava prestes a soltar — Deixa ela passar.
Agora o homem estava claramente dividido, mas existiam tantos fotógrafos, repórteres, gritos e teorias por todos os lados, fora a população curiosa que não parava de fazer perguntas, que acreditar na palavra de um super herói nacional não parecia a escolha errada a se fazer.
— Tudo bem — disse ele finalmente, dando uma última olhada para Shoto antes de ir se ocupar com sua vigia.
se aproximou rapidamente de Shoto, que não esperou para começar a andar novamente para dentro do galpão, seguindo para os fundos enquanto passavam por vários disjuntores de luz queimados e detetives com bloquinhos na mão e ouvidos atentos aos mais variados interrogatórios.
— Eu ia te avisar — Shoto se explicou na frente, diminuindo os passos para que andasse ao lado dele — Faria isso a partir do momento em que eu digerisse o que vi.
— O que quer dizer? — engoliu em seco. O caminho estava se estendendo e ficando mais escuro, assim como mais cheio. Os serviços de perícia, policiais, limpeza, cientistas e detetives estavam todos se abarrotando em um espaço que tinha se transformado em um planeta crepuscular.
— Você vai ver.
E quando finalmente curvaram na pequena sacada ao ar livre, realmente viu.
O corpo do homem estava coberto por um saco preto até a cintura, e a outra metade superior mostrava uma intensa bagunça de órgãos, sangue e um líquido viscoso e fumegante que se misturava com todo o sangue vermelho escuro que ainda jorrava para os cantos vivos do concreto, parecendo sombras de línguas afiadas rastejando pelo chão.
imediatamente levou a mão à boca, sentindo o choque balançar todos os seus ossos, o horror queimar intensamente o nariz.
Ela mal percebeu o olhar complacente e desconcertado de Shoto ao seu lado, ou as chamas bruxuleantes de Endeavor se aproximando, ou mesmo as asas de Hawks planando no ar em volta, lançando penas em todas as direções, procurando o que certamente ninguém ousaria procurar.
— O que ela está fazendo aqui? — Endeavor rosnou ao se aproximar da dupla, sem tirar os olhos de — Onde está a Kendo? Eu disse para chamar ela, Shoto, disse pra não envolver nisso.
— Quê…
— Aqui é perigoso. Não está vendo isso? — demandou ele, apontando para o corpo desfigurado no chão, fazendo arregalar ainda mais os olhos pelo tom — Você não devia estar aqui, . Achei que semanas sem um contato fossem auto explicativas pra você, que tivesse mais um pouco de bom senso e percebesse que a missão acabou. Que não podemos mais te arriscar desse jeito.
ficou sem palavras. O timbre de Endeavor combinados com seu tamanho não traziam paz ou conforto. Não era um porte que combinava com avisos educados. Ainda assim, não foi por ele que ela automaticamente murchou os ombros e deu um passo para trás. Foi porque o homem do fogo havia acabado de dar-lhe um banho de água fria. Como se Enji tivesse puxado o cabo de alimentação que a ligava na parede e detonasse suas próximas reações.
Em contrapartida, Shoto avaliou o estado de Endeavor com frieza e ergueu uma sobrancelha.
— Ainda não saiu desse surto, velhote? — ele trincou os dentes, aproximando-se gradativamente do pai — Eu já disse que precisamos dela. Não chegaremos a lugar nenhum sem o material que pode nos dar, e sei que você reconhece isso porque enxergou o potencial dela primeiro do que eu. Agora pode esfriar a cabeça ou prefere que eu faça isso pra você? — Shoto terminou com um enfático suspiro gelado, onde uma pequena brisa fria escapou de seus lábios ao mesmo tempo que sentiu a temperatura baixar levemente ao seu redor. Ela não sabia se Shoto seria mesmo capaz de usar seu lado direito no pai, mas, pensando bem, não havia nada em sua postura que dissesse o contrário.
— Tá certo — murmurou Endeavor, encarando com um singelo olhar de desculpas, sem sair do lugar — Fiquei muito preocupado com você e sua situação depois do hospital. Já estava pronto para responder aos processos do seu pai, ou de ver aquelas circunstâncias se repetindo de novo.
assentiu, erguendo mais o queixo.
— Eu entendo, senhor Todoroki. Meu pai pode ser um pouco complicado, mas ele não sabe de nada. Não sabe da minha lesão, e não vai saber de um detalhe sequer dessa missão. E quanto aos perigos… — ela deu de ombros — Sou do curso de heróis. Não espero nada menos do que perigo.
Shoto pareceu sorrir por um milésimo de segundos na direção dos próprios pés. Endeavor sustentou o olhar da garota por quase um minuto inteiro antes de recuar até o centro da cena do crime, e o seguiu rapidamente, voltando a ter aquela imagem assustadora em sua panorâmica.
Ela não sabe por quanto tempo ficou olhando até não aguentar mais e virar a cabeça para o canto.
— Mas o que aconteceu aqui?
— Esse cara saiu do trabalho ontem e hoje de manhã, puf, apareceu desse jeito. Parece que foi jogado de qualquer jeito do alto, e está parado na mesma posição. Uma parte do intestino delgado está preso naquela viga — ele apontou para cima, mas não quis olhar imediatamente.
— Ele não parece ter morrido por isso — disse ela, engolindo em seco ao olhar o ácido familiar, sentindo a queimação novamente na base dos tornozelos, como um trauma já instaurado.
— Não foi — completou Shoto, olhando para os dois. — Esses idiotas da perícia estão procurando a causa do assassinato nos lugares errados. Querem fazer os malditos testes e pesquisas primeiro antes de nos dar um resultado para poder agir, mas sabemos bem o que é isso. E quem fez isso — disse sutilmente, com uma pontada de raiva escapando entre os dentes. hesitou ao lado dele, encarando aquela coisa líquida e viva desbravar a outra parte do concreto, juntando-se e condensando-se para formar um tapete do mal, saindo do corpo do homem como se ele não tivesse passado de um mero receptáculo.
— Do que está falando? — Endeavor deu um passo à frente, perguntando diretamente para Shoto — O que você sabe?
Shoto olhou para em um mero aviso de que estava prestes a abrir a boca. Ela assentiu levemente, ainda muito assustada com o cenário para opinar.
— Isso não é nada familiar para você, velhote? — Shoto arriscou, inclinando a cabeça para o caos desfigurado do homem — Essa coisa feia e tenebrosa que parece estar viva.
Endeavor avaliou os olhos do filho. E demorou menos de 2 minutos para assentir devagar, mesmo que estivesse um pouco confuso.
— Eu bem que pensei que essa coisa não era tão estranha — disse em voz baixa — Mas o que…
— Não consegue formar uma relação dessas coisas com 7 anos atrás? Com meu primeiro ano na UA, o All for One e Camino?
Endeavor enrijeceu os ombros. A boca se abriu lentamente à medida que olhava para Shoto e a vítima, uma, duas, cinco vezes até perceber o que aqueles olhos bicolores estavam querendo dizer, apontando que as ocasiões tinham tudo a ver com o que estava acontecendo agora.
— O que você está concluindo, Shoto?
— Essas coisas estavam em Camino. Eram despercebidas naquela época, causaram estragos mas eram controláveis, mas depois vieram os High Ends e todo o terror do Fronte de Libertação Paranormal.
Endeavor arfou, o rosto não mais intacto pelo choque.
— Nomus.
não viu quando Shoto assentiu e recomeçou a falar. Não viu quando suas mãos gesticularam ao contar todas as suas suspeitas sobre o caso e o que tinham feito até agora para desvendá-lo – excluindo a parte de suas verdadeiras intenções na usina Takamaki. não viu porque estava ocupada demais encarando as partes separadas e corroídas do que já tinha sido um homem naquele chão, e em como o padrão de espalhamento do ácido era análogo ao sangue que escaparia do corpo de qualquer ser humano que fosse jogado daquele jeito, e em como era idêntico à forma que o desconhecido na clínica tinha se desfeito de repente, e em como as duas coisas pareciam ser iguais, ou funcionar de formas muito parecidas, como um experimento requerido e testado…
deu um grito. Um grito de epifania que saiu alto demais para uma voz que nunca se elevava.
— Meu Deus — ela disse em voz fraca, procurando os ombros de Shoto e se virando pra ele — Meu Deus, é isso. É o que eles estão tentando fazer.
— O que foi, ? — ele agarrou nas mãos que o tocaram, vendo seus dedos levemente trêmulos. tinha sido tomada por uma palidez doente, o rosto resplandecendo um medo paralisador.
— O que o Rush quer… Porque ele está usando Paezoa — demandou ela, engolindo em seco — Ele está tentando criar novos Nomus. Um exército deles. Maiores e melhores do que os que existiram no passado.
E com um outro suspiro, ela se virou para Endeavor, sentindo a garganta secar como um deserto.
— E o senhor não é o único alvo dele. E sim todo o Japão.


Parte 12 – Convocação heterodoxa

— Eu gostaria que você parasse de mexer essa perna.
levou um susto com a voz repentina de Shoto ao seu lado, parando imediatamente com o movimento ininterrupto dos joelhos, que subiam e desciam rapidamente no pequeno espaço abaixo do porta-luvas do carro.
— Ah… Desculpa — ela murmurou e começou a soltar o cinto de segurança — Eu vou… É.
deixou a frase inacabada como costumava fazer quando estava com a cabeça em outro universo. Quando abriu a porta e saiu do Volvo do herói, se surpreendeu quando o viu fazer a mesma coisa, caminhando para dentro da U.A. sem dizer uma palavra.
— Não precisa me escoltar — suspirou. Era o desejo de muitas pessoas que ela suspendesse seus afazeres na enfermaria para descansar mais um pouco em seu quarto, mas uma coisa dessas era inadmissível. Ela estava bem — Endeavor deve estar precisando de você depois de tudo que aconteceu.
— Duvido. Ele está voando em chamas por aí, provavelmente se perguntando onde foi que errou por não ter percebido isso mais cedo — Shoto respondeu em uma voz distante, sem se afastar por um centímetro da garota — Ele enfrentou o Rush há anos atrás, quando ele estava vivo de fato. Ou tão vivo quanto se pode parecer. E como ainda não sabemos de toda a situação, sim, vou te escoltar até o consultório.
bufou explicitamente. Ele não devia dizer essas coisas em voz alta, pensou ela, olhando rapidamente para os lados para verificar se mais gente estava espichando os olhos enquanto viam o famoso Shoto Todoroki voltando à antiga escola.
— O problema não é não sabermos de tudo — continuou , agora diminuindo os passos antes do portão de entrada — O problema é que tenho medo de ter nos dado uma direção errada. De ter confundido você, seu pai e toda a equipe. Sei que Paezoa existe e que é o único padrão que podemos usar nesses últimos acontecimentos, mas quem garante a história dos Nomus? — seus ombros cederam com a observação, e os passos pararam de vez — Sinto que piorei a situação e coloquei um cara morto como a pista principal de uma enorme conspiração de fim do mundo. E se não for absolutamente nada disso? E se aquele cara desfigurado que vimos mais cedo foi atacado por um daqueles homens que me atacaram? E se Rush e eles não tiverem nada em comum? E se…
— Shoto se aproximou da garota com um passo, depositando uma das mãos em seu ombro — Pode se acalmar?
encarou os olhos bicolores por um instante, não sabendo exatamente como as feições normalmente taciturnas de Shoto Todoroki tiveram um poder instantâneo de deixá-la menos propensa a um ataque de ansiedade.
Talvez ele tivesse um lado mais gentil quando estava tentando manter uma conversa comum.
— Você não confundiu ninguém. Seus palpites não são infundados, muito pelo contrário. Você nos deu material e uma boa pista, quer o Endeavor queira aceitar ou não — eles se olharam ao mesmo tempo, e lentamente assentiu, percebendo que a mão dele ainda estava nela.
Shoto permaneceu assim por um tempo indefinido até escorregar a mão para longe de seu ombro, seguindo com seu silêncio interminável junto com . Parecia que não havia mais nada a ser dito ou feito, mas os dois permaneciam imersos nas próprias reflexões.
Quando estava prestes a se despedir, Shoto falou na frente:
— As coisas não cheiram bem, — disse ele, em voz mais baixa que o normal, encarnando um semblante tenso, um que enxergava uma enorme possibilidade de ser vencido — Elas podem ficar muito, muito perigosas. E sei que o velhote não sabe se comunicar sem mostrar as farpas escondidas, e tenho a natural inclinação a não concordar com ele, mas… Talvez ele tenha razão em uma coisa — ele engoliu em seco, colocando uma mão nos bolsos do jeans — Você pode se machucar. Pode se machucar pra valer. Então, pelo menos até termos certeza de quais são as novas regras dessa bagunça, ou de onde vem…
— De jeito nenhum! — o interrompeu com uma expiração — Shoto, não faço a menor ideia de como deve ser esse Rush reinventado quando provocado, não sei o que ele pretende, mas não estou nem um pouco relutante em descobrir. Quando ele atacou você e o Endeavor naquele dia, já foi um anúncio de guerra, mas essa situação não envolve apenas você e sua família. Estamos falando de um país inteiro.
— Eu entendo, . E não estou falando…
— Eu quero continuar na missão — ela desviou os olhos para baixo momentaneamente, passando uma mecha do cabelo para trás da orelha — Eu devo. Posso ajudar, posso mais do que vocês imaginam. Andei fazendo umas pesquisas que mostram que podemos estar um passo à frente deles, nem que seja um pouco.
Shoto franziu o cenho.
— Que pesquisas?
— Desde que descobri Paezoa, passei muito tempo lendo sobre a sua composição e como ele age tanto dentro quanto fora do corpo. O ataque na enfermaria me deixou assustada, mas enquanto estava no hospital, usei aquela imagem pra me certificar de que eu estava no caminho certo na busca de um soro neutralizador. Pode chamar de antídoto, se quiser.
Todoroki se empertigou no mesmo lugar, olhando rapidamente para o início do vão do portão, verificando se estava mesmo vazio.
— E como isso funciona?
— Pode ser mais simples do que pensamos. Usamos uma substância base, e adicionamos outros artifícios químicos que qualquer farmacêutico usa para fazer um remédio.
— E de qual substância base estamos falando?
puxou bastante ar pelo nariz.
— Meu sangue.
Os olhos do garoto meio a meio se expandiram por um momento, e podia jurar, por aquela expressão passando de chocada para irritada em menos de dez segundos, que ele a amarraria com cordas de gelo e a levaria de qualquer jeito para o seu quarto, do outro lado da cidade.
Em vez disso, Shoto fechou os dedos em seu pulso, empurrando-a levemente para a parede ao lado do portão, escondida por todo o verde e as árvores altas da propriedade.
— Do que você tá falando?
— Estou falando do meu sangue regenerador. Tenho certeza que você entendeu — continuou firme, olhando para os dedos de Shoto com repreensão até que ele tocasse e os abrisse completamente, soltando-a com um pequeno pedido de desculpas — Os estudos são promissores, eu juro.
— Como isso pode ajudar? — ele parecia sério demais. Qualquer um seria louco se tocá-lo naquele instante, como se estivesse segurando uma explosão dentro de si — Como você pode estar disposta a uma coisa dessas?!
— Não estou falando de usar o meu sangue todo, Shoto. Mas minha individualidade é muito útil e quero usufruir disso ao máximo, com todas as funcionalidades que podem ou não existir. Tenho o poder de criar células-tronco, regenerar tecidos, consertar ossos, por que não poderia desfazer uma massa ácida com um pouco de ajuda de químicos?
O mundo zunia à volta de Shoto. As palavras de subitamente vieram carregadas de possibilidades, nem todas agradáveis. Ele sentiu como se estivesse sonâmbulo, enxergando todos os prós e contras bem na frente de seus olhos, caindo em um silêncio angustiante.
— Isso é maluquice — interviu ele, balançando uma das mãos — Você não pode virar um banco de sangue humano pra fazer uma loucura dessas. Se Rush está mesmo usando pobres coitados para transformá-los em Nomus, vamos precisas de muitos antídotos, e muitos litros do sangue de . Caso isso funcione — ele trincou os dentes com força. prontamente balançou a cabeça.
— Estou disposta a racionar de um jeito inteligente. Preciso fazer testes primeiro, preciso começar a agir, preciso criar amostras…
, para — ele se aproximou mais, desta vez criando uma sombra imensa por cima de — Isso é perigoso. É perigoso pra cacete. Se o Endeavor descobrir a verdade…
— Nada é verdade até que ele coloque as mãos nisso — interrompeu, os olhos semicerrados de frustração diante do companheiro. O olhar fuzilante de Shoto estava deixando-a mais zangada, muito diferente da intimidação que lhe causava antes — Repito: eu posso ser útil em tudo isso, Shoto. Criar um antídoto é uma contribuição mínima perto do que você e seu pai farão quando descobrirmos o Rush. Meu trabalho é salvar vidas, e vou dar tudo de mim pra isso. Não sou como você que se contenta em ser metade do que nasceu pra ser por causa de um maldito orgulho que não vai ajudar ninguém.
estremeceu na última frase, fechando os dedos em punho, obrigando as plantas dos pés a permanecerem paradas no mesmo lugar, sem correr ou fugir como seria certamente aconselhada a fazer depois de ofender um dos melhores heróis do Japão.
Shoto deu um passo para trás, pela primeira vez se sentindo um pouco afetado pelas palavras de , mas pouco. Talvez estivesse pensando na próxima enxurrada de argumentos, que viriam revestidos de seu tom autoritário, mas bufou e olhou o relógio como uma desculpa para não encará-lo mais.
— Preciso entrar. E não preciso de escolta.
Antes que ele abrisse a boca, ela já tinha dado as costas e feito uma pequena corrida para dentro dos portões de ferro, afastando-se mais a cada segundo.
Em poucos instantes, o herói começou a praguejar de maneira longa, suja e contínua, sem parar para respirar. Ao finalmente se virar para voltar ao Volvo, encontrou a pequena idosa apoiada em sua bengala, inclinando o pescoço para olhá-lo com um ar tedioso.
— Caramba, garoto. Você não xingava assim quando era um estudante.
Shoto passou uma mão pelo cabelo, levantando os ombros levemente.
— É que a senhora não via — seus pés voltaram a marchar em direção ao carro, mas a voz da Recovery Girl era algo impossível de ignorar.
— Pare aí mesmo — mandou. Shoto passou uma língua nos lábios e bufou, virando-se para ela — Soube que estava preocupado com . Pelo visto é verdade. Nunca te vi voltar aqui desde que se formou.
— É. Desde que o Aizawa-sensei se aposentou, não confio muito na segurança desses muros — ele acenou com o queixo para a estrutura gigantesca da escola.
A mulher correu o dedo distraidamente pelo lábio inferior.
— Aham — murmurou ela, desconfiada. Então perguntou a ele: — Soube que estão namorando. É verdade?
Shoto riu sem humor.
— O que a senhora acha?
— Acho que as coisas terminam de um jeito diferente do que começam — movendo lentamente a bengala, a heroína começou a caminhar para dentro da escola, mas logo se virou para falar com Shoto — Não sei o que está acontecendo, mas você tem o dever de protegê-la, garoto. Você deve a ela a sua vida.
Todoroki exalou uma respiração cansada e irritada.
— Eu não iria morrer naquele dia!
— Ah, ia sim. Eu não estava lá, então você iria morrer — respondeu ela, respirando fundo por um segundo antes de completar — Você foi o primeiro paciente de verdade de . O primeiro em que ela usou a técnica de cura interna Otigar, uma forma avançada e completamente maleável por quem seja seu manipulador. estudava uma forma completamente original de tratar lacerações profundas de órgãos do corpo, mas não sabia ainda uma forma eficiente de tirar a dor do processo. Eu achava perigoso e desnecessário pra uma garotinha ainda terceiranista, então a estava ensinando do meu jeito e as coisas andavam bem, mas faltava alguma coisa. Faltava algo nos olhos dela. Paixão, por exemplo. Propósito — e com um pequeno sorriso nos lábios rachados, disse: — Não a obrigue a abrir mão desse propósito. Nem você e nem o tolo do seu pai.
E com apenas isso, a mulher se deslocou para dentro dos portões com mais rapidez, deixando Shoto e suas convicções abaladas para trás.

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Você vai ser assombrado se não vier. Assombrado pela mamãe!”
É uma tradição, Shoto. Nem pense em furar como fez no último mês.”
Shoto suspirou olhando para a tela do telefone. Já estava fazendo isso há mais de 20 minutos, tentando pensar em uma desculpa que o livrasse daquilo, uma boa desculpa desta vez, porque Fuyumi tinha o poder estranho e inconveniente de perceber suas mentiras.
Como quando ela percebeu que seu irmão mais novo estava sofrendo mais do que achou que estaria pelo fato de ter colocado o mais velho atrás das grades, anos e anos atrás.
Mas diante de todo o caos recente, das descobertas e preocupações desbloqueadas por aquele corpo danificado do dia anterior, Shoto só conseguia se concentrar em pensar em soluções, e lotar a mesa de sua sala no prédio de vidro da Agência Endeavor com os depoimentos e contatos da polícia, relatórios de perícia, formulários de pedidos de residência de alunos do 2º ano da U.A. e outra coisa que estava acima de toda essa bagunça, distraindo-o e se tornando o problema principal:
O discurso de sobre arriscar a vida numa empreitada provavelmente suicida.
Quando conheceu aquela garota, era claro que ela nunca estivera realmente presente em situações de vida ou morte, mas desde que tinha aceitado participar daquela loucura – desde que o conhecera também – já tinha passado por elas duas vezes. E aquele olhar determinado que o lançou, mostrava que a última coisa que faria era sair correndo e chorando.
Shoto sabia que deveria se sentir motivado e até sossegado com a determinação dela, mas em vez disso, sentia uma curiosa tensão em relação à . À imagem dela em perigo. E sentir coisas que não entendia geralmente o fazia ser impulsivo e desagradável, de uma maneira que ele se importava em não ser.
E para começar as grandes resoluções do dia, ele sentiu que pedir desculpas. Seja lá porquê – por querer salvar a vida dela?
O telefone estava aberto no tampo da mesa, acima dos papéis, esperando que ele o pegasse e discasse seu número. Poderia começar perguntando onde ela estava e se poderiam se encontrar. Mas se estivesse brava, provavelmente não se deslocaria para lugar nenhum para vê-lo. Mesmo que ele falasse da missão – a qual ainda não tinha sido devidamente discutida depois do corpo encontrado, já que Endeavor ainda estava em um processo de digerir tudo da melhor forma que conhecia: esquentando-se sozinho, e talvez fumando um cigarro com Hawks em algum telhado de um arranha-céu da cidade.
Provavelmente, o CEO também estava tentando se preparar para mudar a rota dos planos, e Shoto mal queria imaginar como o velhote ficaria quando soubesse da mais nova ideia de . A presença dela tinha mudado distintamente naquele complô logo após o acidente na enfermaria, e agora sua posição estava prestes a mudar também. De garota suporte para a mente principal da investida.
Shoto grunhiu com a ideia. não parecia estar nem um pouco preocupada se voltaria inteira pra casa ou não.
Ele puxou o telefone e se levantou, fazendo uma pequena caminhada em semi círculos, pensando se ligava, ou se a esperava no estacionamento, ou mandava uma mensagem, ou simplesmente não dizia nada.
Por fim, ele guardou o aparelho, optando resolver as coisas da forma como começaram: um diálogo cara a cara. Se teve a coragem de discordar veementemente com ela pessoalmente, também se desculparia da mesma forma.
Antes que sequer saísse de perto das janelas, ouviu a porta da frente se abrindo sem bater, e uma enorme sombra se projetando ao longo do piso laminado.
— Você está ocupado? — Endeavor perguntou com a voz ligeiramente cansada. Shoto vasculhou o corpo do homem em vários pontos estratégicos.
— O que houve com você? — ele acenou com o queixo para os arranhões na pele. Endeavor apenas levantou os ombros.
— Alguns idiotas armaram uma rebelião no hospital psiquiátrico de Asaemon. Disseram que estavam sendo atacados por um fantasma. Foi muito irritante — o homem bufou, agora adentrando mais na sala, encarando o filho com outro tipo de expressão — Fuyumi me mandou uma mensagem. Vamos ter…
— O jantar. Tô sabendo.
Endeavor trocou o peso de uma perna pela outra. Assunto difícil, o mais difícil de todos: agir como um pai.
— Eu gostaria que você fosse, Shoto. Não só eu. A Fuyumi também — disse ele, e apenas alguns segundos depois, revelou com a voz mais grave: — Eu contei da .
Shoto levantou o queixo em um jato.
— Você fez o quê?
— Contei que você tem uma namorada. Ela quer que você a chame também — respondeu o pai. Shoto ainda o olhava com incredulidade — Talvez seja por isso que o Natsuo também confirmou a presença.
— É, talvez os anciãos da família da mamãe ainda não estejam sabendo. Que tal anunciar pra eles também? — sugeriu Shoto com sarcasmo. As pupilas coloridas faiscavam de irritação. Endeavor apenas juntou as sobrancelhas grossas no meio da testa, claramente não esperando tal reação.
— Qual é o problema de contar a eles? São seus irmãos, iriam saber mais cedo ou mais tarde.
— Ou talvez não — ele soltou com um ranger de dentes, mas logo se arrependeu. O olhar de Endeavor sobre ele se tornou confuso e desconfiado, e não dava para dizê-lo que era melhor manter seu pseudo relacionamento às escondidas exatamente porque ele não existia de verdade — Digo… Nós acabamos de tirar um corpo de uma laje. O intestino do cara estava do outro lado da rua. Estamos descobrindo coisas, precisamos pensar em…
— Shoto, a família é mais importante — Endeavor o cortou com seu familiar timbre autoritário — Não somos os componentes mais perfeitos de uma, mas precisamos estar juntos. De algum jeito. E é isso que fazemos todos os meses. Apenas venha, a missão pode esperar algumas horas — e virando-se para a porta, ele girou o rosto para dizer por sobre o ombro — E traga a .
Shoto não teve a chance de retrucar. Endeavor já estava fechando a porta antes que ele abrisse a boca.
Merda. Como isso poderia ser simples? Desde o primeiro horário do dia, Shoto não conseguia parar de pensar no crânio do cara com o rosto afundado e nas grandes possibilidades de passar muito mal no futuro com seu plano desajustado. Como a convenceria a participar de uma mera convenção familiar dos Todoroki? Ela não precisava se sentar à mesa mais gelada do Japão.
Mas se isso o daria uma oportunidade de pedir desculpas, que escolha tinha?

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O garoto estava vomitando. Ou era o que parecia.
A ânsia fazia um barulho imenso nos ouvidos de , que estava parada ao lado da pequena porta do banheiro da enfermaria, esperando que o aluno do primeiro ano soltasse o que tinha que soltar depois de ser vítima de uma das lesmas que o colega de turma soltava pelos dedos. Ele não fazia ideia que aquelas coisas disparavam como balas, e nem pensou em fechar a boca.
— Tá tudo bem aí? — perguntou novamente, porque o som continuava sem parar, e ele nem parecia estar vomitando de verdade – estava apenas fazendo as ações que envolviam o ato.
Com uma tosse, ele respondeu:
— Estou be… — e desta vez, ela ouviu claramente o bolo de todas as refeições do mundo descendo pelas paredes da privada, aquele som grotesco e úmido, seguido de gemidos sofridos e lamentos evidentes.
balançou a cabeça e andou até a mesa da enfermaria, puxando uma pequena caixa onde a Recovery Girl guardava as balas de ursinhos famosas e milagrosas, separando a quantidade ideal que renovaria o intestino de um garoto que não comeria nada até o dia seguinte. Se tivesse engolido mais de uma lesma e vomitado o dobro do que estava vomitando, provavelmente já estaria morto.
Enquanto o ouvia resmungar que faria quem fez aquilo apodrecer em uma cela pelo resto da vida, as três batidas na porta adiantavam a entrada de Yoshikawa no cômodo.
— Com licença, — disse ela em sua voz doce. estava tão absorta com a tragédia de remédios a repassar que apenas murmurou — Você tem uma visita.
Outro murmúrio. Seus olhos estavam no papel. Ela nem reparou na risadinha sutil de Yoshikawa.
Também não reparou na visita em questão até que esta parasse bem na frente da mesa, com seus habituais jeans comuns e as pulseiras de couro no pulso.
— Oi.
A voz inconfundível do herói meio a meio puxou seu queixo para cima, e outro momento de delay tomou por completo. Ela parou de ouvir a melodia das tripas do garoto saindo pra fora por quase um minuto inteiro.
— Ah… Oi — respondeu ela, colocando-se de pé imediatamente — O que faz aqui? — Não combinamos nada pra hoje, pensou em completar. Mas o que eles teriam a combinar? Só por que era sexta-feira e sexta-feira é o dia ideal para um encontro de casal?
Isso se aplicava para não-casais?
Shoto deve ter percebido o quanto ela estava distraída, porque inclinou o corpo para a frente e estendeu a mão para tomar o papel de , que estava usando um ursinho como caneta.
Ah, que droga.
— Pensei em deixar uma mensagem descaradamente óbvia pra que você visse antes do trabalho, mas não pareceu uma boa opção — Shoto colocou uma das mãos nos bolsos, e seus olhos vaguearam pelo rosto dela algumas vezes antes de continuar — Quero te pedir desculpas. E te fazer um convite.
Ele parecia meramente sem graça. notou isso depois de sentir o coração despencar um pouco do peito, voltando ao lugar logo depois.
Ah, meu Deus. Satomi me disse que seu primeiro encontro com o namorado foi em uma sexta-feira. Foram ver um filme, sabe-se lá do quê. Nem sabia que Shoto gostava de filmes.
Nem sabia que ele pedia desculpas.
— Tá tudo bem — surrupiou suas hipóteses fantasiosas e as enfiou no fundo da mente — Não precisa pedir desculpas. Qual é o convite?
Ela não queria parecer apressada, porque isso o deixou ainda mais constrangido.
Passou mais rápido do que ela imaginou, e logo ele já estava falando de novo:
— Há uns 8 anos, desde que minha mãe saiu do hospital, eu e minha família jantamos juntos. Mensalmente — começou, passando a ponta dos dedos na nuca — Começamos um pouco antes de ela morrer, porque ela disse que era seu maior desejo nos ver juntos. Claro, os que poderiam estar juntos. Então virou uma tradição — ele deu de ombros espontaneamente, como se o fato não tivesse nada demais — Minha irmã mais velha, Fuyumi, é quem marca as datas. E recebi uma mensagem dela hoje.
continuou em silêncio. Shoto inspirou uma tonelada de oxigênio e soltou:
— Quero que você vá comigo. No jantar hoje à noite.
Se estivesse sozinha, teria saltado tão alto quanto possível para um ser humano e girado nos próprios pés. Jamais imaginou estar sentada à mesa da cozinha da família Todoroki, quanto mais…
— Ah, Deus — arfou, gesticulando com a mão — Ela sabe?
Shoto desviou os olhos por um segundo, mas assentiu.
— Endeavor contou pra ela. Para todos eles.
sentiu o estômago afundar. Jamais imaginou também conhecer a graciosa Fuyumi Todoroki, bastante conhecida e competente no mundo corporativo, com os cabelos cor de gelo e saltos bico fino que passava os intervalos do serviço burocrático com uma xícara de chá e um livro na mão.
Seu pai dizia bastante o nome de Fuyumi Todoroki, mesmo que os elogios não acompanhassem sua expressão desprezível.
— Eu… — ela respirou fundo, esboçando um pequeno sorriso de canto — Sim. Claro que aceito. Vai ser uma honra.
Shoto pensou em rir e reiterar que ela poderia dizer não se quisesse, que não precisava se sentir obrigada a dar vida à essa mentira longe dos olhares do pai, mas algo em reforçava sua sinceridade completa nas palavras. Shoto soube que se sua verdadeira vontade fosse não ir, ela não hesitaria em dizer.
Ele diria alguma coisa ligeiramente agradável depois, mas o som da porta lateral do lugar se abriu em um rompante, e um garoto de menos de 1,60 saiu com as mãos na barriga, pálido e verde como papel.
— Ei, -chan — murmurou ele, apoiando-se no batente — Acho que preciso de um copo de água. E um chocolate.
olhou dele para Shoto, procurando explicar para seu namorado de mentira que precisava socorrer um aluno que usava camiseta creme da mesmíssima cor das cortinas, o que quase o fazia se camuflar no ambiente no estado em que estava. Shoto compreendeu sem que ela precisasse abrir a boca.
— Vou te buscar às 8. Não tenha pressa.
E saiu rapidamente da sala, confortável pela primeira vez com o iminente jantar da família Todoroki.


Parte 13 – Descobertas relativas

Shoto estendeu o braço para trocar a estação de rádio pela terceira vez. Tudo que conseguia pensar era que não fazia ideia do gosto musical de – nem se tinha perguntado alguma vez. Não era o tipo de coisa que ele se interessava normalmente, mas agora parecia um bom momento para estar minimamente engajado no Top Global de algum streaming de música. Não queria que ela se sentisse bloqueada enquanto fazia o caminho de 5km até a casa dos Todoroki em Futako-Tamagawa.
Aquela não era uma carona normal, de qualquer forma. E música sempre era uma boa opção para preencher o silêncio.
Quando ele se inclinou para mudar a estação mais uma vez, que tocava uma terrível banda barulhenta de punk rock, o portão de madeira foi aberto com um rangido e estava saindo.
Shoto paralisou com os dedos no botão. O barulho dos saltos de tornaram aquela melodia medonha em um sussurro distante. O vestido pegava um pouco abaixo dos joelhos, com uma fenda mínima na coxa direita, e com mangas curtas. Ao se aproximar da porta do passageiro, ela desceu o tronco para balançar as mãos, indicando algo que Shoto, ainda numa bolha de hipnose, não estava sendo capaz de entender.
Finalmente, sentindo-se um idiota, ele entendeu que a porta estava travada. E quando enfim entrou e se acomodou no banco, se sentiu mais imbecil ainda por não ter saído e aberto a porta para ela.
Meu Deus, idiota.
— Está tudo bem? — perguntou ela, empertigando-se levemente no banco. Shoto engoliu em seco e apenas balançou a cabeça.
— Sim, sim, só… — as palavras de repente estavam se afogando em sua própria saliva. esperou uma resposta, um pouco nervosa com uma possível reprovação à sua vestimenta, já que não tinha perguntado nada antes e aqueles olhos bicolores não paravam de encará-la — A música é horrível. Desculpe. O que você gosta de ouvir?
Ele tinha uma faísca ansiosa de interesse nos olhos. se sentiu aliviada, e ele também, porque talvez não estivesse tão pronto assim para dizer que ela estava tão bonita. Não era uma boa hora para deixar tudo ainda mais estranho.
— Ahm… Eu gosto de músicas tradicionais. Coisa do meu pai, acabei pegando o gosto.
— Jura? — Shoto apertou no botão específico, que começaria imediatamente a tocar as canções antigas que lhe traziam uma penca de lembranças — Isso é surpreendente.
— Achou que todas as garotinhas de 19 anos escutassem música pop?
— Tipo isso.
Ela riu pelo nariz. Ele finalmente arrancou com o carro, espiando levemente pelo espelho retrovisor em busca de olhos enviesados dos seguranças pela propriedade enorme dos , confirmando se tinham captado a pintura lustrosa de seu Volvo.
Nessa parte, não podia dizer que estava sendo uma decepção para Hisashi .
Nos primeiros 2km, apenas a harmonia da percussão de alguma canção de Gagaku enchia todo o compartimento do carro, onde Shoto dedilhava distraidamente os dedos no volante e tentava manter a cabeça reta na direção da avenida. Vez ou outra, seus olhos giravam para o lado, observando os detalhes do rapaz, vestido de uma forma que ela jamais vira: camisa social, os mesmos jeans nem tão largos, nem tão colados, e botas comuns. A cicatriz parecia estar fervendo quando passava abaixo dos postes. Junto com tudo isso, chegou a conclusão de que ele estava mais bonito do que nunca.
Coisas que não deveria pensar.
Em um desses momentos, Shoto virou o olho de soslaio para ela, e desviou o olhar rapidamente, pega em flagrante.
— É… Como foi no trabalho hoje? — perguntou ele, achando de repente uma boa ideia conversarem um pouco antes de passarem pela sessão de atuação que estavam prestes a passar.
umedeceu os lábios e assentiu devagar.
— Foi tudo bem. Yoshikawa disse que os alunos mais novos estavam esperando apenas a minha volta para arrumarem problemas todos de uma vez, e acho que ela está certa. Foi um dia bem cheio.
— Você parece levar jeito com as crianças. O garotinho das lesmas que o digo — Shoto murmurou. riu um pouco.
— O adversário das lesmas disse que não vai recuar no caso de um processo.
— E não deveria. Eles estão em um curso de heróis, pelo amor de deus. Já tem que ficar felizes se não chegarem ao fim mortos.
— Acho que ele só ficou chateado porque eles eram amigos — segurou um novo riso. Shoto fez um som de escárnio.
— Sou amigo de Katsuki Bakugo, se ficasse bravo todas as vezes que ele tentou me explodir, nunca sairíamos para beber hoje em dia — agora riu com vontade, com o peito inflando de satisfação, enquanto via a sombra de um mesmo sorriso em Shoto. Uma sombra que estava maior do que da última vez em que se lembrava — Então… O que mais fez hoje?
engoliu em seco, diminuindo as risadas enquanto voltava a olhar o asfalto que se estendia pelas ruas iluminadas. Havia a verdade verdadeira, e a verdade conveniente. A garota sabia apenas que, com Shoto Todoroki, precisava revelar a primeira opção, ainda que trouxesse dor de cabeça.
— Fiquei no laboratório. Fiz pesquisas — respondeu, e com um suspiro, completou: — Fiz alguns testes.
Ela esperou um chiado. Esperou uma bronca, uma palavra atravessada, qualquer coisa que demonstrasse o quanto ele estaria insatisfeito com o feito. Mas, em vez disso, Todoroki se manteve em silêncio por quase um minuto inteiro, expirando um pouco de ar pesado pelo nariz, e soltando em seguida:
— E deram certo?
levantou levemente os ombros, buscando parecer impassível.
— Não dá pra ter certeza ainda. Mas os resultados são promissores. Não tem a menor possibilidade de eu conseguir te dar uma certeza agora, mas vou continuar tentando. Como eu disse: são promissores.
Shoto balançou a cabeça, inexpressivo. Ficou em silêncio por mais uma pequena parte do caminho, até murmurar:
— Vou te ajudar.
A garota girou a cabeça em sua direção, piscando os olhos 2 vezes.
— É sério?
Shoto passou uma língua nos lábios e assentiu, sem tirar os olhos da estrada.
— Me diga do que precisa e vou fazer o que eu puder. Não vou tirar o seu propósito — balbuciou ele, lembrando-se da voz arrastada e caquética da Recovery Girl naquela manhã. O sorriso de podia ser visto mesmo que ele não estivesse olhando para ela — Só não conta para o velho. Não ainda. Principalmente, não se ele estiver bebendo hoje à noite. Se falarmos uma única palavra sobre trabalho lá em casa, minha irmã não vai hesitar em nos expulsar.
assentiu imediatamente, sem deixar de sorrir. Percebeu que o problema jamais tinha sido uma proibição de Shoto, ou suas tentativas de pará-la, ou sua ira sobre o assunto. Era simplesmente a não confiança nela. A falta de fé em seu plano – o que o tornaria muito mais difícil de ser realizado, mas não iria pará-la. Porém, sem toda aquela postura dura de advertência insistente ali, ela já se sentia pronta para qualquer coisa. Sentia que alcançaria tudo que desejava apenas pelo fato de que ele acreditava nela.
— Obrigada — disse em um sussurro, sorrindo para si mesma, guardando todos os relatos, planos, discursos, tudo que arquivava sobre a pesquisa, inclusive seus prós e contras, porque certamente haveria uma briga quando Shoto lesse sobre as possíveis consequências que aquilo poderia ceder à caso um erro grave acontecesse, mas poderia deixar isso para depois, no futuro. Agora estavam ali, sendo namorados de mentira, em meio a um caos silencioso do mal, apoiando-se mutuamente e essa era a única coisa que importava.
Se houvesse alguém no banco de trás, veria os dentes à mostra de Shoto Todoroki cintilando em um sorriso pelo retrovisor interno.

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— Aí ele disse: “você não vai brigar comigo, vai?” e mais um pedaço enorme de chantilly caiu no chão com um ploft. Não aguentei e comecei a rir, mas Shoto continuou sério, como se estivesse esperando minha confirmação — Fuyumi gargalhou alto novamente, acompanhada de todo o restante da mesa, que escondiam os dentes nas palmas das mãos para rir, enquanto Shoto, igualmente, era o único a não rir.
— Já acabou, Fuyumi? — Shoto perguntou entredentes, tentando não parecer tão nervoso. As bochechas estavam levemente coradas com toda a atenção, principalmente a de , que tinha desviado o rosto para rir. — Achei que ia se controlar hoje.
— Se controlar? Te constranger é totalmente coisa da mana — Natsuo estava rindo pelo nariz, posicionado bem ao lado de , esbarrando em seu ombro pela quinta vez em uma piada interna que era contada. comprimiu os lábios ao notar que Shoto a observou, tentando manter a postura para que as suas orelhas não fossem as próximas a serem vítimas de uma sessão de reclamações de Shoto.
— Não faça isso com ele, Fuyumi. Que história mais sem graça — a voz de Endeavor rugiu pela mesa com seriedade. A colocação funcionou melhor do que imaginara; imediatamente, todos os filhos se aquiesceram e guardaram as risadas nos bolsos — Conte aquela da estação de trem pra , é mil vezes melhor.
Shoto imediatamente grunhiu, pondo as mãos no rosto para abaixar a cabeça e esconder seja lá o que estava dando cor às bochechas enquanto Fuyumi relatava a história hilária de um Shoto de 7 anos que havia se perdido da mãe no metrô e congelou um vagão inteiro para procurá-la.
Brilhante. Com certeza era engraçado, mas era igualmente brilhante.
— Tá bom, vocês estão ridículos — Shoto cuspiu as palavras com a face de desgosto, mas as sobrancelhas estavam no lugar e ele não estava literalmente soltando fumaça — Desse jeito, talvez a nunca mais queira voltar.
— Ah, eu quero sim — interviu, e sentiu logo depois o olhar marcante de Shoto sobre ela, que pareceu surpreso e um pouco renegado — Mas vou parar de rir antes que ele decida me deixar pra trás no meio da avenida.
Fuyumi riu alto e concordou que o irmão mais novo era muito capaz de fazer uma coisa dessas. Natsuo insinuou que ele faria, mas que estaria de volta em dois minutos porque ainda era um herói. Endeavor permaneceu calado, mas balançou a cabeça com um sorrisinho.
Eles eram insanamente receptivos. quis registrar todos os detalhes daquele jantar, desde o momento que entrou pela porta até naquele, depois de 2 horas, com os pratos já vazios e as taças cheias. Queria registrar e guardar um envelope e entregar para todos aqueles que insistiam em desbancar a família do herói número 1 por causa de todas as polêmicas expostas no passado.
reconheceu, mais do que nunca, o timbre de uma família imperfeita que tentou se manter unida, mesmo que se espalhassem por outros endereços.
— Ah, … São muitas histórias. E prometo que ainda vou te mostrar o álbum de fotos do Shoto quando criança para que você veja aquela foto…
Fuyumi — Shoto ameaçou. A mulher continuou, sem se abalar:
— … Mas não farei isso hoje porque vai ser capaz de ele me expulsar da minha própria casa. Mas com certeza digo que você é mais do que bem vinda à voltar. Teremos um novo jantar no mês que vem — disse ela, com um sorrisinho muito afetuoso nos lábios — Hoje eu vi o meu irmãozinho sorrir umas três vezes. E não estou louca. Ele nunca sorriu tanto em um dia só — ela enfiou o dedo na direção de Shoto, ignorando o rosto contorcido do irmão — Ele está feliz, eu tenho certeza. E como você faz parte disso, me sinto obrigada a te agradecer.
Agora as bochechas de se tornaram escarlate, púrpura, verde, de todas as cores da aquarela enquanto Shoto encarava Fuyumi com a mesma repreensão de sempre, não surtindo nenhum efeito. Ele já devia saber que tais coisas aconteceriam, mas ainda assim esperava mais da irmã mais velha, porque aquela maluca tinha prometido que ia devagar.
Bom, ela era uma Todoroki, afinal. Eles nem sempre eram bons em manter promessas.
— Ahm… Vou tirar a mesa — Natsuo se manifestou, contendo um sorriso enquanto se levantava do chão, começando a recolher os copos enquanto Shoto e sentia o rosto arder de constrangimento.
— Eu ajudo — parou de olhar para qualquer direção e também começou a pegar os pratos.
— Não se incomoda, a gente faz isso — Shoto tocou a ponta de seu braço, pegando os pratos de suas mãos. Ela pensou em retrucar, mas a rapidez com que ele se levantou e foi até a cozinha não deixou que isso acontecesse.
— Vai querer ajudar pra secar as louças? — Endeavor perguntou, com a voz ligeiramente grogue, talvez pelo sono ou pela bebida. Fuyumi negou com a cabeça.
— Não precisa, papai. Shoto está aqui — ela respondeu com ternura — Pode ir se deitar. O senhor tem um dia cheio amanhã.
Endeavor assentiu com a cabeça e se colocou de pé, olhando para com os olhos baixos por um momento.
— Obrigado por ter vindo, . Eu e minha família agradecemos — e com uma pausa, ele soprou: — Por tudo.
E por fim, o homem deu as costas e cambaleou um pouco na direção das escadas de madeira, subindo-as lentamente até desaparecer no andar de cima.
Fuyumi encarou a garota com um meio sorriso. Era sincero e totalmente condizente com a fala de Endeavor. Quando a viu ir até à cozinha, imediatamente juntou as taças e a seguiu.
— Minha nossa. Eu acreditei que você pudesse fazer isso de uma maneira mais normal, mas você sempre me decepciona — Fuyumi estalou a língua ao chegar ao cômodo. Shoto, de pé ao lado de Natsuo na pia, secava as louças limpas pelo irmão com apenas o toque de sua mão esquerda, deixando o fogo arder na cerâmica por poucos segundos.
— De que jeito você acha que o velho faria isso?
— Ele tinha voltado a fazer isso do jeito normal — e em voz baixa, ela acrescentou: — Na minha frente, pelo menos. E você, , ansiosa pra formatura?
— Digamos que eu não vejo a hora — levantou um pouco os ombros — É o meu grande evento desse ano.
— Entendo. Lembro quando Shoto ia se formar, ele também estava ansioso, mesmo que já estivesse praticamente trabalhando como herói desde o primeiro ano — ela deu um sorriso um pouco mais gelado, porque não era motivo de nenhum orgulho passar por tudo que a turma de Shoto Todoroki passou na antiga 1-A — Enfim. Ele tem boas lembranças daquela época, tenho certeza. Também tem dos cursos de pós que fez no exterior. Contou pra ela do seu intercâmbio na Europa, Shoto?
virou-se para ele, a expressão nitidamente curiosa. Shoto suspirou, e estalou a língua para Fuyumi de novo.
— Ainda não tive oportunidade de contar.
— Esse garoto — ela trincou os dentes e colocou o restante dos pratos na pia — Passou em primeiro lugar no curso de especialização em defesa na NEHDT na Inglaterra. Também foi aos Estados Unidos e visitou o Midoriya na Indonésia. Não acredito que não mostrou a ela suas certificações.
Fuyumi parecia ligeiramente indignada, como se Shoto estivesse conseguindo chegar mais perto de ser expulso apenas por não ter se aberto totalmente para sua suposta namorada.
ainda o encarava, um brilho de admiração nascendo na ponta dos olhos, sem perceber. Ele umedeceu os lábios e a encarou da mesma forma, desviando-os assim que Natsuo falou:
— Você não ouviu o pai dizer que eles estão juntos há pouco tempo, Fuyu? Relaxa aí. vai saber disso antes do casamento.
Se estivesse ingerindo a água que pensou em pegar dois segundos antes, teria cuspido-a inteira para fora. Shoto cessou as pequenas chamas imediatamente, largando o prato em uma pilha limpa com o rosto contorcido agora para Natsuo.
— O que você tá falando?
Natsuo riu maldoso. Os olhos de Fuyumi brilharam como vagalumes.
— Isso! Quando vocês pretendem começar a se planejar? Afinal, vai se formar, e Shoto está numa posição muito alta para que não pense em casamento. Já bastou você e aquela…
— Tá legal, chega de falar da minha vida — Shoto interrompeu, engolindo um bolo na garganta, afastando-se da pia. Aquele papo de casamento, posições, passado e futuro em uma mesma massa de palavras era mais do que ele podia suportar — Vem comigo, .
Ele murmurou ao passar por ela, seguindo diretamente para as mesmas escadas que Endeavor tinha subido há pouco tempo. piscou os olhos, ainda absorta na curiosidade latente pelo que Fuyumi não tinha acabado de contar, mas por fim, disse:
— Ah… Tudo bem — e se despediu rapidamente dos outros dois irmãos, que deram risadinhas cheias de malícia enquanto viam a garota seguir o mais novo escada acima.

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O quarto de Shoto Todoroki não o que se esperava.
Ele não disse nada conforme entrava e revirava os olhos por todo o cômodo, buscando captar qualquer detalhe mínimo da personalidade de um Shoto adolescente, que provavelmente se estendia até hoje.
— Uau. Você tem um biombo.
Shoto, escorado pelo ombro ao lado da janela aberta, balançou a cabeça em um sim.
— É da família da mãe. Todos os filhos tem um desse. Meu avô materno cedeu essa casa como dote pelo casamento dela e o único pedido que fez ao Endeavor foi que deixasse tudo igual — a voz dele era baixa e mansa, encarando os detalhes intocados de seu antigo quarto como se nem soubesse de verdade que estava ouvindo — Por isso fui o único garoto na escola que ainda almoçava missô e morava em uma casa tradicional.
passou para a parede que Fuyumi dizia. Uma extensão de tapume recheada com inúmeros certificados enquadrados, troféus de competições, medalhas e algumas poucas fotos. Ela abriu e fechou a boca, buscando algo a se dizer que ele já não tivesse ouvido, como os clichês “parabéns por ter feito tudo isso sozinho, Shoto. Você é mesmo um dos melhores heróis que temos no país. Você é extremamente apto a resolver todas as situações tenebrosas de nosso povo.”
O quão insuportável deve ter sido tudo isso?
— Do que sente mais falta? — questionou ela, virando-se para ele — Da escola. De antigamente.
Shoto, com as mãos nos bolsos, fez uma expressão pensativa antes de responder.
— Acho que… Da rotina. Da parte chata que a maioria das pessoas não achava importante, como acordar cedo, tomar o café e ir assistir a aulas de literatura. Da parte que realmente fazia eu me sentir como um estudante comum. Os dias em que eu tinha que me virar sozinho sem alguém do alto escalão perguntar se eu precisava de alguma coisa — um de seus dedos bagunçaram um pedaço de cabelo vermelho que se misturava aos fios brancos na testa — Por incrível que pareça, mesmo em um curso de heróis de uma sociedade paranormal, eu ainda não era normal.
— Diz isso porque entrou por recomendação?
— Digo isso porque eu era o cara com duas individualidades, filho do futuro herói número 1 e que estava a muitos níveis acima deles — ele bufou pesadamente. Essa verdade não parecia tão glamourosa assim — Recebi treinamento desde pequeno, e mesmo que não tenha a menor lembrança boa dessa época, ainda era inevitável que eu me sobressaísse. Na verdade, no começo, eu queria me sobressair. Queria ser o melhor herói, sair na frente de todos, não pretendia fazer amigos. Mas tudo que aconteceu, todos os perigos e as necessidades… — seu lábio inferior foi prensado pelos dentes. Os olhos bicolores focaram em algum ponto na janela — Bom, acabei mudando os planos que tinha antes de terminar o 1º ano, principalmente na parte de amigos e relacionamento. Acho que foram eles que me fizeram me sentir comum, e são deles que sinto falta. Dos menores detalhes.
encarou a fotografia da turma 1-A reunida em um ponto escuro da prateleira. Turma 1-A, de 7 anos atrás. Eram uma lenda na Academia de Heróis. Sorteados para enfrentarem a época mais nefasta do Japão dos últimos tempos. Até que um dia desses chegasse de novo, jamais haveria um grupo de pessoas tão autêntico quanto eles.
— Vocês ainda se falam? — perguntou ela, gentilmente.
— Às vezes. Midoriya recebe muitos chamados para fazer um trabalho ou outro aqui, mas está firme na Indonésia. Bakugo se deu bem no Oriente Médio, e o resto se espalhou como o esperado. Momo trabalhou com Froppy até o ano passado, e parece que foi para Nagoya logo depois. Kirishima eu acho…
— Você e Momo Yaoyorozu — interrompeu assim que o pensamento se embrenhou na cabeça — Ela é o seu antigo relacionamento, não é?
Shoto franziu os lábios e olhou para a garota. Pensou em não perder tempo contando coisas desse tipo para alguém que não precisava, mas algo em seu interior queria contar coisas para , não importa o quão inútil fosse.
— Tentamos alguma coisa no 2º ano. Durou até o início do 3º, e então, nossos planos futuros não se alinharam. Foi um término tranquilo.
— Estava ficando sério demais?
— Ela via um futuro pra gente, enquanto eu… Bem, eu via um futuro pra mim — Shoto deu de ombros. Não importava o quanto ele estivesse sendo verdadeiro, não conseguia imaginar Momo usando a palavra “tranquilo” para o término, pelo menos não da parte dela. Era de conhecimento quase geral nos corredores da UA o quanto a heroína foi apaixonada pelo garoto meio a meio — Mas e você?
— O que tem eu?
— Já namorou alguém nesses anos?
— De verdade ou de mentira? — brincou rapidamente, e sua risada saiu entrecortada pelo nervosismo. Shoto apenas arqueou uma sobrancelha — A-ah… Eu… Na verdade, teve um carinha do curso de Suporte, mas… Durou tão pouco que não posso considerar como de verdade. Mas de mentira, bem. Você está sendo uma estreia e tanto.
Ela tentou não parecer tão atrapalhada, mas os pés trocando a posição e as mãos gesticulando mostravam que não tinha argumentos para apresentar que explicasse seus completos fracassos amorosos da adolescência.
— Obrigado? — Shoto zombou, deixando aparecer a sombra de um sorriso — Por que não namorou ninguém?
— Acho que nunca gostei de ninguém a ponto de pensar em um futuro junto. Acho que fui como você, pensando em futuros pra mim e exclusivamente pra mim. Beijar alguém não me fazia mudar essa posição, então parecia errado ir adiante com a pessoa.
— Justo — Shoto encarou brevemente os pés. — Muito mais decente do que eu, até.
A garota encarou a janela do quarto dele, virada para a rua estreita com outras casas tão grandes e igualmente tradicionais do bairro nobre de Futako-Tamagawa. Inspirou profundamente, perguntando em seguida com um fio de voz, mas que deixava à vista seu sotaque estrangeiro:
— Mas… Você realmente nunca gostou de ninguém nesse ponto?
Shoto ajeitou a postura, e riu com um pouco mais de força, como se tivesse conseguido demover alguém como Shoto Todoroki com aquela pergunta.
— As pessoas nunca me perguntaram isso tão diretamente — ele balançou a cabeça, achando divertido, dobrando e redobrando os dedos enquanto virava-se para ela — Cresci tendo uma visão que relacionamentos sérios nasceram para dar errado. O casamento estava fora de cogitação da minha lista desde que presenciei as coisas terríveis dessa casa — murmurou, fechando a fisionomia habitual — Tinha certeza que não queria ser como ele… meu pai. Em nenhuma parte, não queria nem dar os mesmos passos que ele deu. Então, não via problema em me divertir se a pessoa também estava se divertindo. Mas quando o assunto futuro batia na porta, era hora de parar. Sempre foi simples. Outras diversões estavam a caminho e eu estava bem com isso.
sabia que ele falava a verdade. Sabia o quanto muita gente tinha ficado doente com o inferno do antigo Endeavor governando aquela residência, e que era compreensível as escolhas que Shoto tomou desde então. Todas elas.
Mas, por um brevíssimo momento, notou um tom de hesitação na história.
Estava? — perguntou, arqueando uma sobrancelha — O que mudou?
Shoto paralisou um pouco, considerando não repassar o que estivesse sentindo no momento porque parecia um pouco insano até mesmo para ele. Mas já era tarde demais – para tudo. Para não sentir, para não se importar e para não querer dizer.
— Ultimamente, meu futuro… não anda sendo só sobre mim — ele se aproximou incerto, mantendo os dedos seguros dentro dos bolsos — Tem missões, certificados, uma possível guerra e pessoas se machucando. Pessoas que não quero que se machuquem.
Os olhos dele brilhavam acima da cicatriz, brilhavam na direção da garota regeneradora, dizendo coisas e mais coisas que não precisavam ser verbalizadas. sabia o que ele queria dizer. E um sorriso singelo despontou de seus lábios.
— Você é um herói, Shoto Todoroki. Não vai deixar as pessoas se machucarem.
— E principalmente, não vou deixar você se machucar.
O ar fresco da janela se espremeu no curto espaço em que os dois estavam agora. sentiu o peito derreter com a intensidade das palavras, e Shoto sentiu a necessidade brusca de beijá-la, mesmo que seu caráter não lhe permitisse fazer isso sem permissão.
Sabendo disso, deu um passo adiante, subindo as duas mãos confiantes até os ombros dele, tranquilizando-o com a demonstração do mesmo querer.
E Shoto a beijou intensamente, sentindo o estômago embrulhar com gelo e a pele arder em chamas. Teve medo, de repente, da voracidade de sua língua assustá-la de repente, mas apertou os dedos em seu cabelo, e então, ele não queria mais ir embora dali.
Mas aos astros que diziam “tudo que é bom, dura pouco”...
— Ai, puta merda!
se soltou de Shoto em um pulo, virando-se para a parede de troféus com o rosto quente, como se estivesse observando-a o tempo todo, mesmo que a luz do corredor tenha entrado por todo o quarto alguns instantes antes, quando a língua dela ainda estava na boca de Shoto. O arfar de Fuyumi tornava tudo pior ainda.
Fuyumi — Shoto a repreendeu como antes, mas agora a voz rouca não carregava tanta autoridade. Parecia mais amargurado, porque logicamente já estava pensando que a irmã mais velha o lembraria disso até seu último dia na Terra.
— Ah, me desculpem. Interrompi alguma coisa?
— Não! — quase gritou.
— Sim! — Shoto disse ao mesmo tempo.
Fuyumi comprimiu os lábios, divertindo-se.
— Não tive a intenção, eu juro. Mas é que já está ficando tarde e vim ver se vocês pretendem ficar — os olhos da mulher passaram do casal para o restante do quarto de Shoto, focando-se propositalmente na cama no canto — Limpei o quarto do Shoto ontem. Ele sempre dorme aqui em dias de jantar.
A queimação nas bochechas de passaram para o corpo inteiro. Até mesmo Shoto exibiu as laterais do rosto levemente coradas.
— Não vamos ficar, Fuyumi — respondeu ele, sem olhá-la direito — Vou levar pra casa. Nada de dormir aqui hoje à noite.
Ele reiterou, como uma forma de deixar mais tranquila. Sua namorada de mentira estava paralisada ao seu lado, olhando para o chão, querendo que ele se abrisse em um rombo e que Shoto e toda a família Todoroki esquecessem de seu nome.
Então você vai me matar, , porque de jeito nenhum pode deixar Shoto Todoroki esquecer o seu nome logo depois de um beijo desses, disse a vozinha dentro de , aquela que se autointitulava como sua deusa interior.
Você pensou na parte do depois desse beijo?!, pensou de volta, e seu constrangimento impediu que captasse o que Fuyumi e Shoto disseram até que a mulher desaparecesse do batente da porta e ela estivesse sozinha com Shoto de novo.
Com um meneio de cabeça, ele murmurou para voltarem e ela apenas repetiu o movimento, seguindo-o porta afora. Antes de descer as escadas, sentiu os dedos dele roçarem de leve nos dela.

🔥❄️


O silêncio permeou todo o caminho de volta, mas não tinha sido desconfortável. Shoto havia deixado a mesma estação de músicas antigas, e entendeu completamente sua falta de aversão ao assunto. As mesmas músicas estavam tocando baixinhas durante todo o jantar, sendo familiares entre todos os Todoroki.
imaginou, por um momento, como era a vida de Shoto sob o mesmo teto que seus pais e irmãos em épocas não tão negras. Infelizmente, elas só existiram há 8 anos atrás, um pouco antes da morte da matriarca, em um jantar específico de Natal onde Enji e Rei encabeçavam a mesa de té enquanto Fuyumi e Natsuo sentavam de um lado, e Shoto e Toya do outro. Este último, com algemas e alguns guardas em um canto discreto da sala de jantar.
Era uma vida incrivelmente diferente. não podia imaginar viver sem o pai e os avós, porque já achava que tinha perdido demais com a morte da mãe naquele acidente.
Ela olhou para o herói de soslaio. Ali estava ele, crescido, bem sucedido e com questões familiares parcialmente resolvidas. Talvez Shoto nunca se recuperasse totalmente das coisas que presenciara naquela casa quando criança, mas estava tentando. Ele e todos os outros. E ponto final. Isso que importava.
Ela ainda estava olhando quando o carro estacionou. Shoto franziu o cenho em sua direção, e perguntou se estava tudo bem. pensou em dizer apenas que sim, mas tudo o que disse foi:
— Muito obrigada por ter me levado hoje.
A face imperturbável do herói pareceu se abrilhantar um pouco. Estava agradecendo ao pai internamente por aquela ideia maluca de convidá-la, mas jamais diria isso a ele. Uma das mãos hesitou um pouco antes de ir parar na mandíbula da garota, e ele a teria beijado de novo se não fosse pelo estrondo assustador no teto do Volvo.
soltou um grito de susto. Shoto imediatamente desceu as mãos pelo cinto, abrindo a porta com uma agilidade angustiante e esperada de heróis profissionais.
Mas lá fora, não havia nada. Seus olhos vasculharam a rua, o concreto, e tudo que conseguia distinguir na semi escuridão.
— O que houve? — estava pronta para abrir a própria porta. Shoto ainda girava o pescoço, a mão direita soltando fumaça gelada, pronta para qualquer coisa. Não havia um arranhão sequer no teto do carro.
— Eu não…
Antes que terminasse, um zunido latejou em seu ouvido, e a pequena rajada de vento levantou os fios de seu cabelo na testa.
E, um momento mais tarde, Shoto ouviu a risada conhecida vinda do capô do carro, onde uma mulher estava sentada com as pernas cruzadas, ligeiramente à vontade.
Shoto foi lentamente saindo do estado frio e apreensivo para um quente e raivoso.
— Caralho, Risa — seus dentes rangeram até as gengivas — O que você tá fazendo? Eu podia ter te matado.
— Você iria me pegar antes disso — com um suspiro, a garota se levantou e andou até o herói. Antes que Shoto previsse o momento, como era de se esperar de Risa e sua super velocidade, os lábios pintados de vermelho estavam deixando um beijo em sua bochecha.
Shoto revirou os olhos e passou um dedo na região antes que Risa retornasse ao carro.
— Risa… — antes que ele completasse, viu que a mulher vestida de calças de couro estava olhando diretamente para , que acabava de sair do carro, olhando para os dois com muitas dúvidas e talvez… Talvez com algo que parecia mágoa — , isso não…
— Então você é — Risa se aproximou da garota, pegando o telefone de última geração que se encontrava em algum bolso escondido das calças justas — É igualzinha a foto. Mesmo que a última postagem que você fez no Pinstax seja de mais de 6 meses atrás. E você é tão bonitinha.
engoliu em seco, agarrando a pequena bolsa carteira para mais perto.
— Ahn… Obrigada.
— Eu não queria interromper — Risa se virou para Shoto, divertida. O garoto tinha uma expressão ainda mais furiosa do que quando repreendeu Fuyumi naquele mesmo dia — Tentei te ligar, mas estava dando na caixa postal. Até pensei que fosse engano, mas sabe que sei seu número de cabeça, então tinha algo errado. Tenho novidades bombásticas.
Shoto não parecia querer ouvir nenhuma novidade bombástica no momento, ainda mais quando o observava e parecia estar vendo aquele beijo absurdo de minutos atrás.
Mas estavam na presença de Risa, afinal. E mesmo que quisesse que ela estivesse há várias horas de distância naquele momento, não seria assim tão fácil.
— Risa, essa é . Minha namorada — apontou brevemente para , ainda parada imóvel no meio fio — , essa é Risa Naoki...
Gargalhadas estrondosas escaparam de Risa antes que Shoto completasse. Ela estava escancaradamente se divertindo, virando-se para com um brilho ofuscante nos olhos.
— Risa Naoki, senhorita. A ex-namorada.
apertou rapidamente sua mão estendida, finalmente perdendo todo o interesse por estar ali naquele momento.
Shoto trincou o maxilar, e Risa tinha conseguido definitivamente eliminar o pouco de leveza que ainda restava em seu humor.
Mas antes que ele não demorasse muito para iniciar uma conversa educadamente queixosa com a mulher, fingiu que a presença dela ali de repente não era sobre uma terrível intimidade que compartilhava com seu namorado de mentira e se presenteou com a frase:
— Está tarde, então preciso entrar. Prazer em conhecê-la, senhorita Naoki.
E não esperou nenhuma resposta dos dois lados. Simplesmente, fez uma pequena reverência e entrou para dentro do portão pesado de metal.
Shoto se revirou no lugar, os dentes esfregando-se entre si com violência, preparando-se para um diálogo particularmente tenso quando Risa colocou um dedo indicador no lábio inferior e emitiu um:
— Ops.
O herói refreou os palavrões e colocou as mãos nos bolsos, andando pesadamente de volta para o banco do motorista.
— Me encontre no terraço — sibilou, porque geralmente as notícias intituladas como bombásticas vindas de Risa eram importantes; mais importantes do que seus sentimentos recém descobertos.
— Não vai me dar uma carona? — ela perguntou quando o viu bater a porta.
— Vá com suas próprias pernas. Vai chegar antes de mim de qualquer forma — ele revirou os olhos mais uma vez e girou a chave, ouvindo as queixas de Risa antes que ela bufasse e desaparecesse no vento cortante.
O garoto deu uma última olhada para a casa de antes de arrancar.


Parte 14 – Mentiras injustiçadas

Quando Shoto bateu a porta barulhenta de metal do antigo prédio das Indústrias Yuzaki, Risa já estava posicionada no velho Chevrolet, fruto de uma antiga rebelião.
— Eu juro que você vai precisar me surpreender — o garoto murmurou conforme se aproximava. Risa examinou as unhas pintadas de vermelho e apontou para o banco do motorista vazio ao seu lado. Shoto revirou os olhos e atendeu o pedido, sentando-se com uma das pernas para fora.
— Quer um cigarro? — a mulher ofereceu enquanto remexia nos bolsos da calça de couro. Shoto negou com a cabeça.
— Vamos logo com isso, Risa. Por que estava me esperando do lado de fora da casa de ?
— Porque se te esperasse na frente da sua casa, seu pai me mataria.
— Endeavor não te mataria.
— Tudo bem, mas sua irmã sim — disse ela, dando de ombros. — Sabe que ela não vai muito com a minha cara.
— As pessoas não matam as outras por causa disso. E como sabia que eu estava na casa deles?
— Oi? — Risa riu pelo nariz, demonstrando um pouco de perplexidade — Olá, aqui quem fala é a ex-namorada. Ela foi descartada depois de 2 anos, mas ainda sabe da tradição dos jantares. Descobrir o dia é a parte mais fácil disso.
Shoto umedeceu os lábios e olhou para a frente. Era um pouco constrangedor o quanto Risa sabia de sua vida, mesmo que ele nunca quisesse compartilhar mais do que o necessário enquanto estavam juntos. Também era constrangedor o quanto ela ainda se dispunha a fazer favores, mesmo sabendo que a história deles estava acabada.
— Tá bom, começa a falar — disse ele, mais gentil repentinamente — O que tem pra me contar?
— É sobre a sua namorada — ela ergueu as pernas para apoiá-las no painel do carro, e Shoto virou um pouco os ombros em sua direção, os ouvidos atentos — Ela não tem um currículo muito extravagante, na verdade. Depois de tanto tempo na Alemanha, voltar para o Japão deve ter sido no mínimo esquisito.
— O que quer dizer?
— Bem, ela nunca entrou em nenhuma gangue, não sofreu bullying das outras crianças por ser estrangeira, não tem uma nota vermelha no boletim, tem uma individualidade encantadora… Coisas assim que a tornam completamente entediante pra mim. Mas não posso dizer o mesmo da família dela — Shoto exibiu uma faísca tentadora nos olhos coloridos. Ele se sentia um pouco como um invasor ao estar ali parado, revirando a intimidade de , mas sua curiosidade falava mais alto.
— O que tem a família dela?
— Bem, eles são meio estranhos.
— Como assim?
Risa revirou os olhos.
— Achei que você fosse mesmo um desinteressado pela vida das outras pessoas, mas não tem nenhuma ideia de que está namorando a filha de Hisashi , um dos empresários mais ricos do país?
— A fortuna dos outros nunca me interessou. O que isso tem a ver?
— Bom, ele se formou em Direito na Universidade de Tóquio e começou um pequeno negócio em Hamburgo há alguns anos, viveu uma fase de festanças onde conheceu a mãe da e abriram novas filiais por toda a Europa, o que explica porque o homem quase nunca está por aqui. Mas então, a tragédia encontrou a pobre família feliz há 7 anos quando ela morreu em um acidente de carro, e foi trazida imediatamente pra cá — Risa disse com os dedos tamborilando no vidro do carro. Algo naquele automóvel abandonado cheirava fortemente a cerveja, ou talvez fosse o hálito mais proeminente de Risa — E é aí que está a parte divertida.
— O que é?
— Bom, a mãe dela está morta, certo? Pobrezinha, disso não restam dúvidas, mas há algo interessante nesse fato que só é visto por um bom olho. Esse olho bem aqui — ela apontou para o meio das sobrancelhas. Shoto continuou na mesma posição, movendo as pernas por debaixo do volante com ansiedade intensa que atacava a cada segundo. — Eu deixaria você entrar dentro da minha cabeça para ver antes de ouvir porque não sei se tenho coragem de contar.
Shoto pescou uma falha naquele sorriso aberto, uma expressão que Risa usava quando as coisas se tornavam mais sérias do que seu jeito despojado era capaz de abarcar. Uma onda de gelo traçou um caminho longo e reto por sua espinha, e ele tentou manter a voz impassível quando disse:
— Não é hora de brincar comigo, Risa. Anda, vamos. O que você quer me contar?
A mulher suspirou e optou por olhar para o para-brisa, dedicando-se em não se virar para Shoto quando disse, como se a verdade estivesse aparecendo atrás dele e ela não fosse capaz de lidar com isso.
— Bom, talvez sua namoradinha tenha vivido uma mentira esse tempo todo. Aliás, tenho certeza que sim. Porque se soubesse que a mãe não morreu em um acidente de carro como consta nos documentos, não ficaria tão animada para dar oi à vilões do jeito que está — ela engoliu em seco e baixou o tom de voz — Principalmente se foi um deles que fez tal coisa.
Shoto enrijeceu os músculos.
— Um vilão matou a mãe dela?
— Sim. E por isso, não consigo entender porque entraram juntos em um relacionamento, seja ele de mentira ou não. Não consigo.
Agora Shoto franziu as sobrancelhas, claramente esperando uma explicação melhor da mulher, que agora mordia o lábio inferior e virava o pescoço para a janela, buscando olhar estrelas e ouvir o trânsito longínquo a ter que responder aquela pergunta silenciosa.
— Risa, olha pra mim — pediu ele, com certa impaciência — Do que está falando? Não está dizendo isso em cunho pessoal, não é?
Mas a voz dele já estava falha na pergunta, e em algum lugar dentro de seu interior quente e frio, todas as temperaturas se misturaram no estômago, adiantando que o que quer que fosse que Risa contaria, ele provavelmente não iria gostar de ouvir.
— É. Você devia ter algo pessoal contra ela, também — murmurou a garota, respirando fundo para continuar: — Porque a mãe dela foi morta por um vilão. Um conhecido seu, na verdade. Um louco que a queimou com chamas azuis bem no centro da praça Rathausmarkt, no meio de um ataque surpresa em frente ao Parlamento.
O mundo inteiro congelou. Shoto deixou as costas desabarem no banco, deixou que a respiração profunda saísse do nariz, deixou que um misto de choque, tristeza e raiva o tomassem de uma vez só, mesmo que, no fim, se sentisse tão impotente quanto um garotinho. Toya. Seu irmão mais velho…
— Desculpe — Risa murmurou com um lamento nítido, baixando os olhos para os próprios pés — Eu não devia…
— Não, devia sim — A voz dele foi prensada para fora, e a amargura tomava cada ponto da língua — Entre todas as pessoas, você é a que mais devia.
Porque Risa estava lá, um pouco depois de ele ter terminado a escola, sendo obrigado a vestir um terno e caminhar para o tribunal para escutar a pequena e única palavra mágica que já sabia que escutaria desde que tudo começou: culpado. Seu irmão mais velho, Toya Todoroki, ao qual passou grande parte da vida achando que estava morto, foi acusado de inúmeros crimes e passaria o resto da vida muito bem preso e isolado no Tartarus, assim como o restante dos maníacos sádicos que conhecera durante a vida.
Toya era um maluco insano. E mesmo que Shoto ainda o visitasse de vez em quando na prisão e ele lhe fizesse perguntas sobre suas aulas favoritas, e depois suas comidas favoritas até seus planos imediatos para acabar com os vilões, sabia que não se devia esperar nenhuma mudança ou crise de consciência do homem das chamas azuis. Ele estava nos livros de história geral, ele e toda a sua participação ativa no último maior horror do Japão.
Até mesmo olhar para o rosto de Toya no início era uma tortura, por mais que tenha ouvido de amigos, professores e Fuyumi que ele não tivera culpa de nada. Não tinha culpa de ter nascido do jeito que Endeavor queria, de ser a experiência que dera certo, muito diferente de seu irmão mais velho.
— Shoto — Risa chamou ao colocar uma mão sobre os ombros levemente trêmulos do herói. O transe de Shoto parecia um rolo de papel se desenrolando, fazendo-o recriar os possíveis passos de Toya até que chegasse à mãe de — Você está bem?
Ele tragou o ar e endireitou as costas, tentando voltar ao momento presente.
— Sim. Perfeitamente adequado — o bastante para não surtar, ele diria. Risa compreendia a verdade da situação apenas olhando para ele — Ele… Como você ficou sabendo disso?
— Você quer mesmo saber?
— Foi com o seu amigo que é bolsista no MIT? — perguntou com a voz rápida. Risa assentiu e ouviu um palavrão escapar imediatamente. As informações fornecidas por Risa eram tão confiáveis porque vinham de uma fonte que simplesmente não errava, provindas de um jovem de não mais do que 16 anos que era um computador ambulante — Acho que agora preciso de um cigarro.
Risa estendeu o maço para ele imediatamente, que puxou uma das guimbas. Estava pronto para acendê-lo com a ponta do dedo quando suspirou e jogou as pernas para fora da lata velha.
— Eu preciso ir.
Risa franziu o cenho e, em um piscar de olhos, estava na frente de Shoto.
— Ah-ah. Você precisa relaxar. Sei que as coisas são mais difíceis agora do que na época da escola, mas você não pode…
— Vai dizer que não posso contar para ela?
— Sim, é exatamente isso.
Shoto se virou novamente para o carro, encarando seu reflexo distante no espelho retrovisor quebrado jogado em cima do teto do motorista.
— Você não entende — grunhiu, dando um toque no cigarro para que acendesse — Se eu não contar para ela, como vou olhar para ela, Risa?
— Fingindo. Como vocês dois estão fazendo até agora — a mulher o girou pelos cotovelos, mudando sua posição, e agora sua imagem estava refletida nas íris azul claras dela, brilhantes e hipnotizantes como sempre — Estão fingindo namorar para conseguir completar uma missão, e pelo que entendi, não compartilham nenhum detalhe da vida pessoal nessa dinâmica. É só manter as coisas como estão. Você está indo bem, até me fez acreditar que estava levando as coisas a sério.
Risa soltou uma risada que não foi correspondida. Shoto Todoroki normalmente guardava suas manifestações de bom humor para momentos propícios, momentos inteligentes, rodeado de amigos e pessoas que confiava. Mas, naquela hora, seu olhar pareceu miseravelmente triste e ainda abalado.
A mulher diminuiu o próprio sorriso.
— Shoto — sussurrou, pendendo as mãos ao lado do corpo — Você não está levando isso a sério, está?
— Risa…
— Está apaixonado por ela?
— Não é isso… — ele prontamente respondeu, mas mal conseguiu encará-la nos olhos, o que já era um agravante. Sua voz nunca pareceu tão fraca e tão incerta — Quer dizer…
— O que você sente por ela?
— Eu não sei explicar — a fumaça escapou de sua boca com a expiração forte, mas Risa não pareceu se importar — Ela me deixa um pouco… Desequilibrado. Balançado. Ela não tem receio em mostrar vulnerabilidade, não corre quando as coisas se apertam e não me manda fazer o mesmo. É um gênio e parece nem se tocar disso. Ela nunca disse nada sobre a minha cicatriz, ou sobre a minha família, e muito menos me olha como o pobre garotinho com a família mais caótica de Tóquio. Ela é simplesmente impressionante — ele nem hesitou ao soltar as palavras, deixando-se colocar para fora tudo que tinha visto, ouvido e absorvido da garota que nunca pensou que alcançaria seu coração — Então, é… não sei dar nome pra isso, mas sinto que não preciso. É novo e diferente, e eu gosto disso, então talvez eu esteja mais fodido do que imaginei.
Risa ainda estava imóvel, porque até suas células super velozes pareciam chocadas demais para reagir. Conhecia Shoto Todoroki há muitos anos, desde que ele havia decidido burlar as regras de seu último ano e se deixou ser arrastado para uma festa irlandesa no centro da cidade, junto com Bakugo e Kirishima – que já quebravam todas as regras de qualquer jeito –, e dançado com uma Risa Naoki ainda desconhecida na internet, mas já intensamente mais bonita que as demais.
Ela sabia que ele não se apaixonaria por ela no exato instante em que o viu. E dizia no início que estava tudo bem, até chegar ao ponto em que não conseguia mais encontrar forças para repetir aquela mentira. Não estava tudo bem. Não após os vários anos em que Risa cedia além do tempo, dos beijos e da cama, mas também alma e coração. E não recebia a mesma coisa.
Aquele olhar diante dela era algo que nunca viu. Que jamais pensou em ver. Porque acreditava que ela era o máximo de conexão que Shoto se permitiria sentir com as pessoas.
— Uau — ela se viu dizendo, com os ombros cedendo a cada respiração — Acho que vou precisar de uma cerveja forte logo depois dessa conversa.
— Risa, eu não quis…
— Eu sei que não quis. Você nunca quis, para falar a verdade — ela esboçou um sorriso amarelado, fraco, demonstrando tudo menos felicidade — E eu entendo. Agora entendo tudo. E deve ser um peso considerável em ser A Garota de Shoto Todoroki. Ao menos ela realmente existe. E você vai precisar pensar no que fazer. Vou nessa.
A jovem assentiu lentamente, como se de repente não soubesse qual o melhor jeito de se dirigir à Shoto, e começou a andar devagar na direção do parapeito.
Shoto trincou os dentes. Sua intenção nunca foi a de magoar sua amiga, nem deixá-la procurando algo errado em si mesma, mas nada do que dissesse melhoraria as coisas. Talvez Risa igualmente precisasse de um tempo para pensar em seus sentimentos, assim como ele.
— De qualquer forma, Risa — ele chamou antes que ela desaparecesse com a super velocidade — Muito obrigado. Por tudo.
A mulher olhou por sobre o ombro e respondeu:
— Não me arrependo de nada.
E desapareceu em uma brisa fria e monótona.

🔥❄️


Aquele beijo estava se tornando quase uma pessoa física, armado com trombetas e gaitas, pulando e girando dentro da cabeça de e impedindo que qualquer outra coisa entrasse.
Minha nossa, é lógico que ela já tinha beijado outros caras antes. E até chegou perto de fazer aquilo uma vez, mas nenhuma dessas experiências teve a capacidade de tirá-la do mundo real. De fazê-la fechar o caderno com força e decidir por continuar suas pesquisas depois de um café porque já tinha errado o mesmo cálculo 5 vezes.
Enquanto andava para casa, pensou que comparar Shoto com qualquer outra experiência era uma maluquice. Shoto era Shoto. Sempre foi difícil imaginá-lo se abrindo de alguma maneira, mas agora seria ainda mais difícil tirar a imagem da cabeça.
Ela decidiu que não o perguntaria sobre o beijo. Era ridículo até mesmo imaginar a cena. “Bom dia, Todoroki, aqui estão os resultados que adquiri no laboratório ontem sobre o antídoto, estamos indo muito bem. E falando nisso, pretende me beijar de novo ou devo esquecer isso?
Ridículo. Totalmente ridículo. Precisava se lembrar que Shoto era um cara experiente e que com certeza beijava garotas que tinha vontade quando elas lhe davam permissão. E beijar não significava exatamente gostar.
Até mesmo ela já tinha feito isso um dia.
E tinha aquela mulher. Risa Naoki. se lembrou de seu rosto na mesma hora em que ouviu o sobrenome, porque ela não vivia em um buraco. Quem estava vivo e tinha rede social, sabia quem era Risa.
E Risa Naoki e não eram nem um pouco parecidas. Em nenhuma parcela. Na realidade, era até ofensivo comparar.
Ela não conseguia se lembrar de algum dia ter lido ou ouvido qualquer coisa que relacionasse o grande herói Shoto Todoroki com a influenciadora super veloz Risa Naoki, mas de que importava? As coisas estavam muito claras agora. Inclusive o sangue queimando em suas veias.
Mal percebeu quando passou pelos enormes portões da propriedade, cumprimentando educadamente o senhor Yuzune da portaria, que se preparou para perguntar porque ela estava chegando a pé e não dentro do grande carro que Hisashi insistia em cedê-la para todos os lugares. Mas o homem não teve tempo de formar as palavras, porque logo a garota já estava lá na frente, pensando agora no e-mail que precisava enviar para o departamento de polícia, pedindo os resultados das amostras do líquido que coletaram do corpo achado na semana passada.
Quando passou pelo batente da porta, não encontrou a sala vazia e a TV desligada como de costume.
— Papai?
Hisashi baixou lentamente a xícara de café no pires, virando-se para a filha com um sorriso no rosto direto da poltrona confortável ao lado do sofá.
— Minha querida — cumprimentou com um sorriso. Animada, mal percebeu os detalhes anormais daquela amostra de dentes. Correu de encontro à ele, abraçando-o com um inclinar das costas.
— Eu achei que você ligaria quando voltasse.
— Quis te fazer uma surpresa — a voz grave escorreu pela nuca de . Ela prontamente sentiu cheiro de álcool e se afastou — Mas pelo visto, quem está surpreso sou eu.
A garota franziu o cenho. Parecia improvável que seu pai tivesse aberto a garrafa de whiskey enquanto o sol ainda estava brilhante, mas o odor era inconfundível, assim como aquele sorriso que estava longe de ser acolhedor.
— Do que está falando?
— Você foi jantar na casa daquela gente?
engoliu em seco disfarçadamente.
— Como sabe disso?
— Não vai tentar negar?
— Não se é a verdade. Como soube?
— Eu sei de tudo que acontece com você.
— Colocou mais seguranças na minha cola? Os outros não foram o suficiente?
Agora Hisashi estava juntando as sobrancelhas pela revelação, colocando-se de pé lentamente.
— Como você soube dos seguranças?
— Shoto me disse. E talvez eu tenha pensado em ir atrás de um cartão com o número de um advogado, porque se aqueles idiotas fizessem alguma coisa…
— Eles estão te protegendo! Protegendo dele — o dedo longo do empresário foi erguido na altura do nariz de , que encarou a ponta como se fosse o cano de uma arma — Você acha que está fazendo algo pelas pessoas, trabalhando para mantê-las seguras, mas só está se colocando em perigo, . Os Todoroki representam a escória que é aceita na elite de super-heróis, uma família cheia de farsas afundada na lama. Endeavor fez coisas horríveis no passado, plantou diversos inimigos que são muito piores do que você imagina, inimigos que vão voltar e se vingar não somente dele, mas de toda a família, sem distinção de quem estará perto deles ou não. Será que você não me entende?! Eu só quero te ajudar…
— Para. Para! — deu um passo para trás antes que a mesma mão que empunhava aquele dedo a tocasse — Para com esse discurso de ódio sobre o que eu estou fazendo. A vida inteira, ouvi de você que eu faria grandes coisas, que tinha potencial para mudar o mundo, e agora que finalmente sinto que estou fazendo algo, você me barra desse jeito. Não sei do que o senhor mais odeia: o meu trabalho ou o meu namorado, mas sinceramente, isso não importa. Se quer me ajudar, saiba que preciso de outro tipo de ajuda, uma que se chama apoio. É o suficiente, papai. Até lá, se vai traçar uma linha de caçada à família Todoroki, saiba que não vou estar do seu lado.
Guardando a respiração na garganta, pisou forte em direção às escadas do outro lado do cômodo, controlando-se para não gritar ainda mais verdades entaladas ao homem na sala, coisas que nem sabia que sentia até ser impelida a sentir.
— A sua mãe odiaria isso, ! — O grito a fez parar no primeiro degrau. Uma onda de vento gelado tomou todo o peito da garota com a mera menção de sua mãe — Tenho certeza de que ela não estaria nada feliz vendo você trabalhar com aquela família! Eu sei disso.
Imediatamente, foi tomada pela queimação no nariz e nos olhos. A dor de ter sido atingida bem no ponto fraco. Hisashi sabia o quanto ela sentia falta da mãe, e dizer aquilo não era justo.
Ela se virou de perfil para o pai, considerando o quanto deveria dizer, mas, no fim, apenas cerrou os dentes e subiu correndo, batendo a porta do quarto ao entrar, recostando-se na mesma para respirar fundo e contar 1, 2, 3…
O choro veio da mesma forma. Forte e doloroso como não vinha há meses.
tinha feito alguns avanços nos últimos tempos sobre o assunto da morte de sua mãe. Não entender exatamente o que aconteceu era a pior parte, mas 4 anos de terapia foram promissores. No fim, o problema nunca era a morte em si, e sim o que ela deixava para trás: uma criança solitária, medrosa e acanhada. Muito diferente de quem era antes de tudo.
Um acidente de carro a tirou tudo isso. E tinha medo de nunca mais se recuperar.
Ao se livrar da bolsa no cabideiro, pensou em mandar uma mensagem para Shoto, pensou em dizer que queria vê-lo, mesmo que não tivesse nada de especial para falar sobre a missão. Era apenas o querer da presença dele, o desejo de não ficar sozinha, um desejo que nascia de um medo fantasma que a tomava de vez em quando.
No entanto, mesmo que as coisas entre eles não estavam indo tão mal desde o início, não dava para saber como ele interpretaria o pedido. Nunca tinham conversado sobre si mesmos até a noite de ontem. Ela nunca havia contado sobre a mãe. E não sabia se ele se sentiria confortável ao vê-la em um estado tão melancólico.
Nem sabia se ele queria vê-la, considerando que não tentou se livrar de Risa Naoki mesmo que estivessem prestes a se beijar de novo.
Decidindo por esquecer o assunto, a garota se arrastou até a cama e se enfiou por debaixo das cobertas, encontrando um espaço seguro e familiar para sentir todas as coisas ruins que tentava não sentir.


Parte 15 – Tensão bélica

Shoto não pensou no que estava fazendo enquanto mergulhava na escuridão predominante no subterrâneo gelado do Tartarus.
O ranger infinito de portas de metal faziam eco por todas as paredes, e muitas delas foram abertas e fechadas, abertas e fechadas até que ele finalmente alcançasse a grande porta de carbono reforçado, brilhando em prata reluzente, trancada eletronicamente por senhas, digitais e acessos de polegares trocados regularmente.
Processos necessários para trancafiar um monstro.
Ele sentiu o estômago contrair ainda mais quando o chefe do departamento, o senhor Fukuhara, um homem esguio e narigudo, com quase 2,5 metros de altura, apoiou a palma da mão no aparelho ao lado da porta, destravando-a rapidamente e liberando a passagem para o herói profissional.
— Por quanto tempo pretende ficar, senhor Todoroki?
Shoto olhou para o pequeno corredor, o último daquela grande masmorra antes de chegar ao cárcere de destino.
— O tempo necessário, eu acho — respondeu em voz baixa, não esperando qualquer comentário do homem antes de avançar para dentro.
Outro par de passos o acompanharam de longe, há metros seguros para que o garoto não se sentisse tão observado. Mesmo desejando ficar a sós com sua visita, Shoto não podia negar a mais pura necessidade de ter mais um no recinto quando se tratava de Dabi.
Nem ele mesmo tinha coragem de depositar tanta confiança naquelas paredes robustas de titânio.
Quando chegou mais perto, viu as grades e também a divisória de vidro que separava um dos maiores vilões do Japão seguramente longe do mundo. Seu irmão, Toya Todoroki, exibindo costuras pelo corpo magro e o cabelo agora naturalmente esbranquiçado, da mesma cor do lado direito de Shoto.
O homem estava deitado de lado, de costas para a porta de entrada, e não se mexeu por nenhum centímetro com o barulho agudo da tranca. Quieto em cima daquele colchão fino, Toya parecia mais amável do que Shoto já o tinha visto na vida, se é que se lembrava de algum momento assim ter existido.
Lentamente, o herói cruzou os braços e suspirou antes de dizer:
— Sei que você está acordado.
Demorou cerca de 1 minuto para que os ombros de Toya se remexerem, e o vilão se virar preguiçosamente para a voz do outro lado do vidro, agarrado a algo que se parecia um boneco.
Uma pelúcia puída e estúpida de Endeavor. Toya tinha uma para cada membro da família, e as guardava como se fosse seu próprio coração.
Ele abriu um sorriso enviesado, sentando-se devagar, as correntes de ferro em volta dos tornozelos tilintando agudamente.
— Ora, ora. O que traz meu irmãozinho até aqui?
Shoto olhou brevemente para o lado, encontrando o guarda seguramente escondido pela escuridão. Esperava que a presença dele ali não fosse um empecilho para que Toya não falasse abertamente, por mais que, tecnicamente, não tivesse mais nenhuma chance de escapar da prisão perpétua que cumpria.
— Como vai, Toya? — perguntou Shoto, puxando a cadeira de madeira separada para visitas.
— Como os leões se sentem quando são aprisionados. Sensação fantástica — ele sorriu, reiterando ainda mais a deformação da pele queimada na mandíbula. — Veio resolver o meu problema?
— Seu problema é culpa sua. Você é um vilão. Não posso fazer nada sobre isso.
— Claro. Um terrível vilão. A escória perto dos grandes heróis. Como andam seus ideais de justiça atualmente? Conseguindo mantê-los?
— Não vim falar sobre ideais, Toya.
— Então vamos ter uma conversa de família?
— Mais ou menos. Tenho umas perguntas pra te fazer.
— Então diga, irmãozinho.
Shoto umedeceu os lábios, torcendo os dedos de uma forma disfarçada para que Toya e aqueles olhos assassinos não percebessem o quanto o irmão caçula estava com medo de suas próprias suposições.
— Esteve na Europa nos últimos 7 anos?
Toya riu pelo nariz e se colocou de pé. Shoto torceu para que nenhuma porta se abrisse no aposento naquele momento, e que o guarda ficasse no mesmo lugar, ainda que todo cuidado com o vilão de chamas azuis fosse pouco.
— Europa… Tenho saudades de lá. Pretende fazer uma viagem?
— Me responde.
— Claro que estive. Paris, Espanha, Bruxelas, Alemanha…
— O que foi fazer na Alemanha?
Toya e Shoto olharam um para o outro, e o mais velho passou uma língua soberba pelos lábios.
— Também consigo sair à luz do dia com o propósito de apenas turistar, irmãozinho. Não é lá que rolou aquela chacina maluca de judeus no século passado?
— Você matou pessoas por lá.
Toya baixou a cabeça, mas não em uma maneira de encolhimento. Um sorriso começou a se abrir nos lábios perversos e costurados, e o homem parecia estar sendo invadido por lembranças que lhe eram deliciosas e muito pouco assustadoras.
— Você não fez uma pergunta — afirmou ele, erguendo o queixo novamente, ainda com o mesmo sorriso — Então já sabe.
Do que eu sei? — Shoto trincou os dentes com a onda de nervosismo que desceu pela coluna, fazendo-o apertar os dedos nos joelhos e aproximar o tronco da parede de vidro como se ela não existisse, como se estivesse mais do que pronto para dar um golpe em Dabi caso respondesse o que ele já esperava que iria responder — As coisas horríveis que você fez?
— Você sabe que matei pessoas em todos os lugares que pisei — ele cantarolou, rindo logo em seguida, principalmente da forma como os músculos de Shoto se retesaram por baixo da pele.
Com os lábios secos e as pernas se segurando no banco, Shoto perguntou em voz mais baixa que o normal:
— Você matou uma mulher chamada Anne ?
Uma corrente de silêncio profundo e nefasto se instalou no espaço entre Toya e Shoto, e nenhum dos dois ousou dizer alguma coisa por quase 1 minuto inteiro.
Quando Toya imitou a posição do irmão, caminhando lentamente para a cadeira de frente para a vitrine e apoiando os cotovelos nos joelhos, pareceu que aquele pedaço de vidraça poderia muito bem se rachar e partir com toda a tensão.
— Anne ? Estava de passagem por lá? Era bonita? Eu geralmente me lembro de mulheres bonitas… — ele sorriu novamente, um ainda mais venenoso — Essa é uma das coisas que odeio no meu poder: ele derrete a beleza alheia e acaba com tudo, e tudo que me resta é me lembrar depois. Mas quando em um grupo maior, é mais difícil, irmãozinho. As pessoas se amontoam, correm, gritam…
— Você fez um ataque em Hamburgo, seu desgraçado. Matou mais de 30 pessoas só porque estavam ali! E não consegue nem se lembrar disso! — Shoto tinha se levantado em um jato, e a palma esquerda incandescente raspou no vidro em um tapa forte, a respiração ofegante com uma expressão de raiva pura. Tinha prometido milhares de vezes antes de colocar aquela ideia maluca em ação que não se descontrolaria, que já sabia de antemão o que encontraria naquela penitenciária, e que aquela pessoa não fazia parte de sua família.
Mas era inevitável. Até mesmo Toya, diante da explosão breve do irmão, tinha se livrado do sorriso peçonhento. Também porque viu as faíscas vermelhas e alaranjadas escaparem brevemente das palmas de Shoto, chamas iguais às do pai, chamas que ele havia tanto desejado desde que nasceu, chamas que orgulhavam o velho ainda que Shoto as rejeitasse veementemente.
A onipresente cicatriz no olho esquerdo do garoto claramente não atingia Toya da mesma forma. Ele a odiava por outros motivos. Odiava que tenha sido ela que o tivesse parado de usar o fogo, e não sua incapacidade de fazê-lo.
— Sim, maninho — Toya respondeu delicadamente, ainda com os olhos na palma esquerda do irmão, como se esperasse outra faísca. Como se quanto mais encarasse, mais Shoto se enfureceria e ativaria aquela habilidade brilhante e odiosa — Eu precisava chamar a atenção do Shigaraki. Precisava conseguir entrar na Liga dos Vilões. Precisava de um passe livre e seguro para o Japão. Estava pensando em vocês, minha querida família.
Shoto fechou as mãos em punho, enfurecido até os ossos, ainda que odiasse mostrar isso à Toya. Olhando para ele com aquele sorriso universalmente satisfeito, sentia ainda mais desprezo pelo seu sobrenome, mais desprezo por tudo que tinha passado quando criança, e sentia ainda mais culpa por ter sido o escolhido, o sorteado para nascer com aqueles poderes.
A confirmação desnorteou totalmente sua cabeça e ele voltou a se jogar no assento, encarando o irmão com a boca entreaberta e os olhos se arregalando devagar.
Toya Todoroki tinha sido o responsável pela chacina no Rathausmarkt em Hamburgo. Um lugar comum onde Anne, a mãe de , devia estar estacionando para comprar legumes ou peças de artesanato. Um lugar sem ameaças constantes e que tinha sido completamente destruído por motivos banais.
Toya, seu irmão mais velho. Um monstro declarado, um homem que andou por aí em um corpo meio vivo e meio morto.
O silêncio chocado de Shoto intrigou seu irmão. Ele franziu o cenho, estudando aquele rosto até perguntar:
— Seria muito bom se me explicasse qual a sua curiosidade de saber do meu acervo de cabeças, irmãozinho. Vai me levar ao tribunal? — perguntou com deboche. Shoto, ainda desconcertado, não o respondeu. Apenas escondeu o rosto entre as mãos, lembrando-se da face de , imaginando sua reação há 7 anos atrás, quando era apenas uma criança, sem ter a chance de enterrar a própria mãe, de precisar conviver apenas com as lembranças, com memórias tão curtas e tão insuficientes.
Suas pernas se levantaram de novo, loucas para saírem dali, loucas para não encararem o rosto do irmão nunca mais, porque Shoto sentia uma forte inclinação a incinerar todo aquele lugar até que as queimaduras antigas de Dabi se transformassem em queimaduras novas e que ele não mais respirasse, que seu coração pútrido não mais batesse dentro do peito.
Shotooo…
— Cale a boca, seu louco de merda — Shoto se virou novamente, os olhos agora pegando fogo, o ódio se escalonando pelas veias — Cala a merda da sua boca! Não sei como ainda esperei que você tivesse alguma dificuldade em confessar uma coisa dessas, de mostrar algum arrependimento, mas devo ser um imbecil por esperar alguma coisa de você. Você a matou, Toya! Não só ela como todos os outros inocentes, mas me diga, seu doente desgraçado, como vou conviver sabendo que meu irmão mais velho matou a mãe da minha namorada?!
Toya paralisou por um segundo e piscou os olhos para absorver a informação.
A respiração entrecortada de Shoto formou um grunhido profundo da garganta, e ele precisava urgentemente sair dali, precisava voltar à luz do dia, a respirar ar puro, precisava parar de querer destruir tudo à frente porque ele não era assim.
Mas ali, perto de Toya e perto de seus motivos para ter se tornado quem era – estava pensando em vocês, minha querida família –, Shoto queria mais do que nunca se encolher e ficar, abrir aquele vidro e permanecer ao lado daquele que representava todas as mentiras e caos que fizeram parte da família Todoroki, todas as imperfeições que atiçaram o lado desumano de seu pai e fizeram outras pessoas se machucarem, que fizeram com que seus irmãos se machucassem, que sua mãe perdesse completamente o brilho e que ele, o único membro amado e adorado pelo grande Endeavor, recebesse pesos que não queria nas costas.
Era tudo culpa dele, afinal. Endeavor mostrou seu pior lado quando Shoto nasceu. E mesmo que agora, anos depois e uma verdadeira paz e trégua instaurada, era difícil deixar tudo para trás quando se encontrava com Toya. Quando apenas se lembrava dele. Porque ali, Shoto via que ainda estava tão fodido por dentro como quando tinha 16 anos. Tão fodido como quando recebeu a cicatriz. Ainda que aquela mancha era a maneira que seu cérebro encontrara para se lembrar dos fatos, para se lembrar de quem era o verdadeiro número 1.
A maneira como estava se lembrando desse fato agora, ali, junto à Toya, o fez ter vontade de apenas… Desistir. De renunciar o nome e o sangue e ser outra pessoa. Desejou isso como nunca tinha tanto na vida.
Toya foi o primeiro a dizer alguma coisa.
— Você tem uma namorada? — E riu intensamente, gargalhando para o vento — Caramba, irmãozinho, que bad. Eu matei a mãe da sua namoradinha, como vai explicar isso pra ela?
Shoto segurou o punho no lugar, segurou a fumaça gelada que escapava dele e segurou todo o fogo que queria explodir de seus braços e pernas.
Após uma pausa, o garoto se aproximou novamente do vidro, e seus dentes estavam tão juntos que as palavras saíram massacradas:
— Não sei por qual motivo estúpido achei que você poderia colocar os pensamentos no lugar nessa porra de caixa. Mas você tá mais podre do que eu imaginei, do que qualquer um imaginou. Não dá pra acreditar que mamãe ainda tinha alguma fé em você — ele cuspiu, e os lábios sorridentes de Toya hesitaram por um momento — Fique sabendo que a pior parte de toda essa merda não vai ser contar pra ela a verdade do fato, mas saber que você não sente uma migalha de culpa por isso. Desgraçado de merda.
E Shoto não ficou para ver a cara que Toya estava fazendo. Simplesmente chutou o assento para o lado e andou a passos pesados para a saída, desesperado para passar pela mesma porta e parar de ouvir aquela risada que ecoava nos ouvidos.
O herói nem se preocupou de cumprimentar os demais profissionais no recinto. Esfregou a nuca, como se ainda sentisse aqueles olhos brilhantes em suas costas, como se ainda estivesse perto demais de Toya, perto demais para querer matá-lo, para querer explodir a masmorra, para deixar seu pior lado vir à tona.
Desorientado, Shoto mal notou quando chegou ao Volvo, quando abriu a porta, quando se acomodou no banco e quando ficou, finalmente, sozinho e em silêncio, apenas com o barulho da respiração ruidosa, da raiva borbulhando no sangue.
Raiva essa que não foi suficiente para que ele se sentisse melhor. Raiva que foi substituída pela culpa novamente, e pelo desespero e tristeza com a imagem de novamente, uma imagem que o perturbaria até o fim dos tempos caso ele jogasse aquela revelação para o fundo do tapete e nunca mais mexesse nele.
Talvez fosse melhor, ele pensou. Ela era inteligente, dedicada e parecia feliz com a história que convivia. Que bem faria se ele lhe dissesse a verdade?
Mas que futuro poderia ter com ela se lhe escondesse uma coisa dessas? Um futuro que pela primeira vez não era somente dele. Uma coisa que queria manter de alguma forma, mesmo que ainda estivesse desorientado pelos novos sentimentos.
Com os pensamentos ainda nebulosos, Shoto acendeu um cigarro e ligou a ignição, dirigindo para o próximo destino.

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conseguiu explicar à Yoshikawa, por telefone, de que o garoto estava apenas doente, e não morto.
Os livros das caixas ainda estavam espalhados por todo o chão. Livros antigos, empoeirados e com datas e informações quase apagados pelo tempo. não fazia ideia se encontraria algo de útil neles, mas o laboratório de pesquisas da agência Endeavor carregava uma reputação de renome por todo o país, e algo a dizia que algum cientista maluco qualquer possa ter tentado fazer um estudo de um certo líquido inflamável que não chamava a atenção para nenhum problema mais urgente.
já estava remexendo nelas há horas. E se esqueceu completamente dos afazeres na enfermaria, onde alunos do 1º ano levavam uma queda simples durante aulas práticas e já achavam que estavam com um osso talhado.
Vou passar aquele remédio pra ele”, Yoshikawa explicou, e assentiu, como se a recepcionista pudesse vê-la, até concordar e desligar o telefone. Em um estalo, ela olhou pela janela e percebeu o céu em cor de laranja vivo, evidenciando o fim de tarde e o longo tempo que já estava ali, olhando livros e se distraindo de seus próprios pensamentos.
Os fatos que não queria pensar: Shoto e seu pai.
moveu os dedos sobre uma página já aberta há mais tempo que as outras, a única que parecia estar falando não diretamente sobre Paezoa, mas demonstrando técnicas de emulsionamento sanguíneo e como fundir DNA regenerador com outras substâncias e transformá-las em algo forte o suficiente para uma cura intensa. Uma parte do papel estava rasgada, e várias outras palavras ou frases estavam rabiscadas propositalmente. Devia ter existido algo naquele rasgo pela metade, um desenho ou fórmula, algo esclarecedor que poderia resolver o seu problema de uma vez por todas. Mas tudo que sobrara agora era algo que parecia a borda de uma folha de acanto e possivelmente alguns arabescos. a arrancou junto com mais outras duas, segurando-as firmemente como um amuleto, e voltou a fechar o livro.
Depois de arrumar o restante de tudo superficialmente, ela andou preguiçosamente para fora, lutando para não olhar o celular e sentir a decepção por não ver mensagens dele tomá-la de novo. Sua cabeça estava cheia com as pesquisas da tarde, e seus olhos cansados não miravam nada além da porta dupla da entrada, e por mais que não quisesse ir para casa e encarar o pai na mesa de jantar, ainda parecia uma opção melhor do que fugir para a biblioteca e acabar dormindo em cima de mais livros.
Mas antes mesmo que seus joelhos chegassem à calçada, viu o Volvo estacionado do outro lado da rua. E viu o herói meio a meio encostado na porta do carona, escondendo os dedos rígidos dentro dos bolsos e a expressão absorta em algum ponto do chão.
Quando olhou para ela, viu uma calamidade e perturbação que jamais vira naquele rosto tão tranquilo. Era um tipo de estado tão anormal que ela não sabia se gostaria de saber.
andou em sua direção e, antes que dissesse qualquer coisa, viu o garoto mover as pernas como um raio e puxá-la para perto, pressionando-a em um abraço esmagador, onde tocou o nariz em seu pomo de Adão e foi totalmente envolvida pelo seu cheiro.
— Me desculpe — Shoto murmurou no seu couro cabeludo, como se estivesse arrancando as palavras de algum lugar profundo — Me desculpe, eu não sabia… Eu não fazia ideia…
— Shoto?
— Ele não é confiável, nunca foi, e eu fui um idiota por pensar que ele não seria capaz de uma coisa dessas, mas por Deus, , eu vou te compensar. Juro pela minha vida que vou passar o resto dela pra compensar os erros do meu irmão, juro que…
se afastou em um ímpeto, encarando o rosto de Shoto com o cenho franzido de dúvida, uma dúvida que lentamente estava progredindo para um medo, porque os olhos bicolores estavam brilhando mais do que o normal.
— Do que você está falando? — ela perguntou em voz falha, sentindo que algo estava errado, terrivelmente errado.
Shoto baixou os ombros e a cabeça, enfiando os dedos nos cabelos com um desespero vivo, uma perturbação nítida que ficava mais estranha a cada segundo.
— Fala, Shoto!
— Sua mãe não morreu em um acidente de carro.
mordeu o lábio primeiro antes de deixar que os joelhos cedessem. Porque antes do choque, veio a confusão, o desentendimento. Antes do impacto, ela deixou sua parte racional trabalhar e procurou por mais uma resposta:
— Que merda você está dizendo?
No entanto, antes que chegasse à última palavra, sua voz já estava embargada, e a coisa errada sentida um momento antes pareceu já estar ali, de pé, pronta para sair da boca de Shoto.
— Sua mãe… Foi morta por um vilão. Na praça Rathausmarkt, há 7 anos atrás, no dia 24 de novembro. Um pouco antes do seu aniversário. Foi morta dentro do carro junto com outras pessoas inocentes presentes, e teve o corpo carbonizado por chamas azuis — Shoto diminuiu o timbre de voz com sofrimento, mas se forçou a completar com nada mais que um sussurro: — Ela foi assassinada pelo Dabi. Meu irmão mais velho, Toya.

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achou que agora sabia o que a Recovery Girl queria dizer sobre controlar os sentimentos arrasadores de perdas.
Na área médica, era inevitável que isso precisaria ser aprendido e executado. Que, apesar de todas as tentativas para salvar alguém tenham sido as melhores do mundo, as pessoas ainda podiam morrer. E a culpa não era sua, ainda que pensaria que sim, e que principalmente a família poderia pensar que sim. No entanto, era necessário que, na frente de pessoas que já estavam claramente sofrendo, ela se segurasse em uma expressão opaca, caminhasse pelos corredores como uma foto fingidamente sorridente como a que tinha na carteira de motorista e, só então, quando achasse uma sala vazia e afastada o suficiente, abrisse o berreiro como era de se esperar que faria.
Naquele momento, ela parecia estar olhando para a sala vazia, mas não conseguia entrar por ela. Não conseguia mover um único músculo.
Shoto ao seu lado parecia uma fotocópia, uma imagem do herói muito diferente da imagem original, porque aquele Shoto tinha desespero salpicado nos olhos, os braços gesticulando, os dedos apertando e soltando continuamente o volante desde a hora em que ela tinha dito uma única frase: “Quero ir pra casa”. E ele dirigiu o trajeto de 4km em um silêncio torturante como se estivesse dirigindo para a China.
— Por favor, diga alguma coisa.
A voz esmagada dele trouxe o rosto dela para o seu por alguns segundos. Já estavam estacionados na frente da grande propriedade dos , do lado de dentro dos portões, e sentiu um vento gelado anormal entrando pela janela meio aberta, roçando na sua bochecha como os dedos de Todoroki.
Ela secou as lágrimas que caíram sem perceber, e as imagens ao redor começaram a voltar ao foco. Colocou as mãos na maçaneta do Volvo e disse:
— Vou entrar.

A garota saiu mais rápido do que ele seria capaz de raciocinar. marchou para a porta da frente, começando a sentir o que certamente já queria sentir há minutos, o vinho da raiva e da tristeza começando a encher o copo, preparando-se para transbordar.
Quando abriu a porta, viu o que já esperava ver: Hisashi na mesma poltrona de sempre, olhando revistas conhecidas de Mustangs envenenados que o fariam apertar em um número de telefone e pedir um daqueles apenas por ter se imaginado dentro de um.
A entrada barulhenta de foi o suficiente para fazê-lo erguer os olhos das imagens e notá-la.
? O que houve? — disse ele, fechando a revista e se levantando. — Senti sua falta no chá da tarde. Sabe que mantemos essa tradição quando eu estou…
— Você sabia o tempo todo, não sabia? — Ela chegou mais perto, e talvez tenha notado como os dedos estavam trêmulos — Sabia que a mamãe foi morta por um vilão!
A revista encontrou o chão assim que Hisashi ouviu as palavras. O sorriso de antes se abateu por completo e ele foi tomado pela expressão de choque assustado que tanto engoliu.
— C-como… Como sabe disso?
— Como sei disso? Então é verdade? — ela grunhiu mais uma vez, os olhos ardendo com lágrimas que caíam sem notar, sem aviso, sem qualquer pudor. — Você… Como você pode…
E de repente, não era mais capaz de aguentar. Não era mais capaz de falar, de se mover. Os joelhos tremeram junto com os lábios e ela arfou, buscando ar nos pulmões, desejando que o nó no estômago desatasse, desejando que a comida permanecesse no mesmo lugar, porque tudo que queria era que a realidade fosse uma mentira.
A notícia de Shoto, antes um mero sussurro no vento, esperou para explodir assim que recebesse uma confirmação. E quando ela veio, foi como se o seu mundo fosse uma enorme casinha de gravetos e um terremoto colocou tudo abaixo, revelando o mundo negro e medonho por trás de tudo.
Hisashi se aproximou da garota que soluçava, que claramente tinha alguma dificuldade para respirar, e estendeu a mão para acariciar o cabelo dela.

— Não toca em mim! — berrou, afastando as mãos do pai com brutalidade, assustando-o até os ossos. Não reconhecia mais aquele homem na sua frente. Não reconhecia mais do que já não reconhecia antes — Você me viu chorar e sofrer por todos esses anos, ouviu minhas perguntas e dúvidas sobre aquele dia, e teve a coragem de mentir na minha cara todas as vezes! Todas as vezes, porra! Você costumava arrumar tudo no aniversário de morte dela, fazia questão que eu me lembrasse do acidente, como você pode…
, me escuta…
— Como posso escutar você depois de tudo? Como quer que eu consiga olhar pra você? — um choro sofrido entalava sua garganta, e se viu sem meios de conseguir falar. Ela mal podia sentir os dedos, de tanto que os apertava em punho, desejosos por socar alguma coisa, por descarregar aquela onda enorme de frustração que se apoderava no peito como uma bigorna.
Hisashi se via sem saída, os olhos saltados para fora de medo e raiva, uma necessidade abrasadora de acalmar a filha de alguma forma, acalmá-la para entender alguma coisa, qualquer coisa.
, ei… — ele tomou a coragem de pegar em seus ombros, e sua voz estava igualmente trêmula, embargada. Não era fácil vê-la chorar; nunca foi — Por favor, você precisa me escutar. Eu tive motivos, eu precisei esconder, eu… Que droga, , quem te contou isso?
— Isso não impor…
— Claro que importa! Poucas pessoas sabem disso, para não dizer ninguém, ! Eu preciso que você me diga…
E então, como se um apito invisível soasse em algum ponto à sua frente, Hisashi se viu encarando a porta ainda aberta de repente.
E lá na frente, bem depois do jardim de pedras da entrada, parado em frente ao Volvo com os braços e pernas retesados e o par de olhos bicolores atentos à gritaria do hall, estava Shoto.
Aquele cara. O rapaz que, com sua presença, tornou as coisas muito claras.
Hisashi não viu a fúria chegando. Todas as vezes em que esse ímpeto de raiva lhe acometia, pratos e vidros já estavam quebrados e ele só ouvia Anne dizer depois que ele devia ir a um psicólogo. Ou qualquer pessoa que o receitasse algo melhor do que meditação e aquelas pílulas que o deixavam mais dopado do que calmo.
Mas a cólera, aquela raiva nefasta que se apoderou de seu ser, comandava seus pés e movimentos como se ele fosse apenas um fantoche dela. Em um impulso, ele já estava caminhando para fora, marchando como um monstro, e Shoto, do outro lado, podia sentir seus instintos de alerta piscarem em vermelho com perigo, porque nunca vira um homem comum com olhos tão assassinos.
— Pai, não! — gritou, ainda sem entender como o homem tinha saído de seu lado tão rápido, e adquirindo um novo pânico quando viu a direção em que ele caminhava — Não! Pai!
correu até ele, arfando com temor ao ver o que o homem carregava nas mãos. A pistola Beretta, a qual ele guardava dentro do compartimento secreto do cabideiro na entrada, a arma para emergências que nunca pensou que um dia ia passar.
E que horas Hisashi tinha pego aquilo?
Quando tocou em seu ombro para pará-lo, os braços do homem se desvencilharam com violência, empurrando-a para o lado como uma boneca, fazendo-a cair de joelhos.
— Seu desgraçado de merda! — Hisashi cuspiu contra Shoto, que andou rápido para a frente ao ver caindo, mas parou novamente pelo cano da arma sendo apontado em sua direção — Você contou pra ela, não é, seu imbecil?
Shoto ergueu os dois braços para cima em sinal de rendição.
— Senhor
— Como você teve coragem de contá-la sobre isso?! É a porra do doente do seu irmão, por que simplesmente não deixou minha filha em paz depois disso? — o homem interrompeu, berrando a ponto de soltar saliva para todas as direções, caminhando para cada vez mais perto de Shoto — Como tem coragem de olhar pra ela, seu filho da puta? Como tem coragem de enfiá-la no meio da sua família de merda?
— Se acalme, senhor…
O primeiro tiro foi disparado na direção de Shoto. Com reflexos rápidos, o herói ativou a mão direita para formar uma parede de gelo antes que o projétil o atingisse, esperando que fosse uma solução mais do que óbvia para que o senhor entendesse que suas tentativas com armas comuns não eram a melhor forma de conversar.
Mas Shoto se surpreendeu quando, ao se chocar com a bala, seu gelo sólido sofresse um impacto tão significativo que rachaduras tomaram a projeção do herói em questão de segundos, obrigando-o a arquejar e se afastar dela antes que se quebrasse pela força da bala e seu peito fosse o próximo a ser atingido.
Pulando para o lado, Shoto ouviu o estrondo alto da bala acertando o vidro do carro, como se fosse uma bomba explodindo. O lugar pelo qual ela havia passado lisa na parede gelo estava ali, em um círculo perfeito, deixando-o ainda mais assustado.
Shoto olhou para a arma do homem, tentando ver o emblema da bala, qualquer coisa que o explicasse como uma arma aparentemente comum de um homem ainda mais comum conseguiria ultrapassar sua parede de gelo quase impenetrável?
— Não vou te deixar escapar dessa vez.
E mais um tiro veio.
Shoto não conseguiu pensar. Correu para o outro lado antes que a bala o atingisse, mas precisou refazer a mesma rota antes que uma terceira pegasse em seu ombro. Usando o gelo para deslizar mais rápido, o garoto tentou olhar para onde estava, mas qualquer mísera distração de milissegundos o faria ser atingido por aquela arma e aquela mira excelentes demais para um simples empresário.
O que significava aquilo? Risa disse que Hisashi era dono de cooperativas. Ele tinha sido aluno de faculdades de negócios. Como podia ter uma arma daquelas, e ser tão bom com ela?
— Papai, para! — O grito de encheu o ambiente, e ela estava de pé e correndo novamente, enquanto Shoto erguia parede após parede de gelo que se quebrava, tendo certeza que o fogo era o que Hisashi esperava que ele usasse de alguma forma, que o fogo de encontro àquela bala seria a própria morte de Shoto.
Hisashi queria matá-lo. E não estava nem um centímetro hesitante em fazer isso.
, não vem! — Shoto gritou, esperando que sua voz fosse ouvida acima dos estampidos das balas, ouvida acima dos olhos hipnotizados de Hisashi, um homem que continuava caminhando sem dizer nada, com o braço erguido em concentração pavorosa para atingi-lo mais e mais vezes, para que Shoto finalmente explodisse — !
Ela não ouviu. Nem conseguia dizer alguma coisa. simplesmente continuava correndo, chegando ao meio da rua, temendo encostar no pai e ser jogada para o chão novamente. Com gritos e mais pedidos, a garota era um pedaço não pensante de ser humano quando se jogou na frente do cano da arma no curto intervalo que Hisashi tinha antes de disparar a próxima, abrindo os braços em rendição, esbugalhando olhos e boca para berrar:
— Para já com isso!
Mas disse tarde demais. O dedo de Hisashi já havia apertado mais um gatilho, e a próxima bala já estava escapando do cano de metal.
Ali, por um milésimo arrastado e desespero dos segundos, onde Shoto sentiu o coração e a respiração pararem por completo, se viu totalmente paralisado e impotente como tinha aprendido a não ficar em todos aqueles anos desde que terminou as aulas na U.A.
As sobrancelhas de Hisashi arquearam pouco a pouco à medida que era acordado do transe de ódio e entendia o que estava acontecendo, ou prestes a acontecer. Quando o rosto de entrou em foco, já era tarde demais e nem ele era capaz de fazer alguma coisa.
Mas a arma era. E, no meio do pânico, Hisashi se esqueceu disso.
A bala, antes correndo na velocidade da luz, parou imediatamente de responder antes que chegasse há 20 centímetros do peito de . Flutuando contra a gravidade, o objeto demorou apenas uma respiração para se desintegrar no ar, passando de um projétil metálico para um pedaço de ferro enferrujado que escorreu pelo chão na forma de um líquido arroxeado que queimou uma parcela de grama no asfalto que ousou tocar o solo.
Um líquido fumegante, um que sentiu queimar na pele apenas com as memórias.
Um silêncio mortal invadiu a rua e calou todas as coisas vivas enquanto as 3 pessoas presentes viravam a cabeça para a ínfima fumaça que subia do asfalto.
Paezoa.


Parte 16 – Manipulados

A fumaça pairou à frente dos olhos de Shoto por um tempo infinito até que ele entendesse o que tinha acontecido.
O gelo derretendo no asfalto escorria de encontro à pequena poça roxa e ácida no solo aos pés de , desaparecendo completamente como um pedaço de folha em lava quente, sendo engolido e desintegrado até que não restasse um mísero vislumbre de que aquelas gotas um dia existiram.
Tendo um estalo de realidade, Shoto percebeu o quão perto os pés dela estavam daquilo, e rapidamente puxou para trás de suas costas, fazendo um escudo com seu próprio corpo enquanto encarava a besta líquida e o atirador bem à sua frente.
Havia algo maligno nos olhos de Hisashi enquanto encarava o garoto meio a meio. Aquela expressão de choque e horror que esboçou ao pensar que tinha atirado na própria filha já tinha desaparecido.
— Larga ela — intimou ele.
— Você atirou nela! — Shoto gritou, mantendo-se à frente de , ouvindo sua respiração rápida e ansiosa em suas costas, o tremor de suas mãos agarrando em sua camiseta — Ficou maluco? Da onde veio essa coisa? Como ela…
Sem hesitar, Hisashi levantou a mão antes abaixada e apontou a arma para o peito do garoto, seu alvo inicial. A mente de Shoto tinha parado de funcionar novamente, porque ainda não entendia como Paezoa estava abastecendo a pistola do empresário, mas tinha uma certeza sombria de que a partir do momento em que entrasse em contato com ele, morreria.
— Pai! — arfou quando viu o cano da arma erguido de novo, empurrando Shoto para se colocar à frente, trincando os dentes com o medo restante da cena anterior — Para já com isso, você já fez demais, larga essa arma…
— Entre pra casa, . Agora — ele inquiriu para ela, sem ao menos desviar o olhar do herói. Não importava o quanto fosse rápido e tentasse escapar naquele momento, Shoto sentia que ele o alcançaria. O alcançaria e mataria, e sabe-se lá o que faria com depois. A garganta do homem rugia como um motor. A raiva em seus olhos era algo somente visto nos olhos dos piores vilões encarcerados no Tartarus.
Era de lá que ele parecia ter vindo. Do lugar que era cada vez mais perigoso e barulhento depois de anoitecer. Um lugar que o pomposo senhor não teria como conhecer.
Quem era esse homem, afinal?
— Estou avisando, — ele engatilhou a arma e andou até encostá-la no peito de Shoto a uma velocidade surpreendente. O herói não teve tempo de se mexer, e resmungou com a voz embargada: não, por favor. — Entra ou eu atiro nele. Agora.
piscou os olhos ainda molhados das lágrimas da sala, arregalados de medo e do que quer que estivesse sentindo sobre aquele homem que não reconhecia como seu pai. Aquela conversa no outro cômodo ainda a corroía por dentro, e sua vontade era de entrar na frente daquela arma de novo, de pedir explicações que ele lhe devia, e que se dane se atirasse nela outra vez, havia algo mais importante no meio daquela merda toda, como o que era aquilo? O que o ácido estava fazendo ali, com ele?
E como interferiu em mais uma tentativa de matá-la? Protegendo-a, foi isso?
E Hisashi não parecia nenhum centímetro surpreso com toda aquela loucura.
— Você não pode fazer isso. Pai, você não pode…
, entra — Shoto disse quando sentiu o cano afundar em seu peito. Um suborno mais do que suficiente para que ele se rendesse à chantagem do sogro de mentira. A morte não era o problema para ele – Shoto Todoroki era um herói profissional. Mas de jeito nenhum deixaria vê-lo morrer, se as coisas chegassem nesse ponto, e muito menos que visse o próprio pai fazer isso — Por favor. Vai ficar tudo bem.
— Shoto…
— Por favor. Vai ficar tudo bem.
Ele não fazia a menor ideia disso, mas fez questão de olhar bem nos olhos dela e tentar não transparecer o nervosismo de se ter aquela coisa desconhecida apontada para o peito em uma posição que podia matá-lo em um segundo. Desconfiou que o sentimento que estava possuindo dentro de si era medo, o que era completamente novo para quem já tinha enfrentado tantos vilões na vida, mas Hisashi … Aquele homem parecia mais do que um vilão. Alguém que não se contentaria em apenas um tiro.
fungou duas vezes antes de aceitar o pedido de Shoto, acatando o possível cenário em que tudo se resolveria. Não importava o quanto ele se esforçava para parecer tranquilo, sabia que ele estava com todos os sinais de alerta ligados, sentindo a tensão vibrar em cada célula do corpo – principalmente porque não esperava nada daquilo. Apesar disso, ele não demonstrava. Não importava a gravidade da situação, Shoto sempre voltava a ser um Shoto.
E um super herói como ele ficaria bem.
Internalizando esse pensamento, ela lançou um último olhar repreensivo e um pouco amedrontado para o próprio pai, que não se deu ao trabalho de observá-la enquanto a garota corria para dentro da propriedade, com o pescoço virado para trás em busca das pupilas bicolores de Todoroki e se elas ainda emitiam um brilho de vida.
Quando ouviu a porta se fechar, Shoto abaixou o queixo e fitou o cano da arma com cuidado, repuxando os lábios e transmutando quase completamente sua expressão. Agora ele exibia um olhar sério de aviso e ameaça, igualando-o ao seu adversário.
— Sei que está tentado em apertar esse gatilho, senhor — disse ele devagar, sem desviar os olhos — Mas se não quiser que as coisas fiquem feias, sugiro que não faça isso.
Hisashi soltou uma risada perplexa.
— Acha que eu tenho medo de você?
— Achei que era inteligente a esse ponto, mas… — o garoto desceu os olhos pela arma novamente — Com esse comportamento, está se provando um tolo de primeira.
Hisashi apertou ainda mais a arma contra o peito de Shoto, os olhos do rapaz queimando em fogo gélido, cessando a encenação de garotinho assustado e fazer o seu trabalho de super herói, mesmo que estivesse realmente intimidado. De que outra forma ele poderia fazer aquele homem entender o quão estúpidas eram suas ações?
Hisashi pareceu revisar a essência de sua situação futura caso deixasse seu ódio vingativo vencer e relaxou um pouco, preparando-se para afastar a arma do garoto. No entanto, alguns pontos não pareceram uma preocupação muito urgente para ele, porque um minuto depois, ele se aproximou novamente, desta vez mais perto e com mais força, forçando Shoto a dar um passo para trás, sentindo o hálito alcoólico e perigoso do homem bem perto de seu nariz:
— É tão difícil assim que você suma do mapa? — Disse ele, com fúria escorrendo pelos dentes. Shoto fez o possível para não usar a força para empurrá-lo até o outro lado da cidade. — Antes eu não estava preocupado, Todoroki. Você e sua maldita família estavam pra lá, sem chance de conhecerem e interagirem com , vivendo suas vidinhas miseráveis com síndromes de vencedores. Não sabe quantas vezes quis apontar essa mesma arma pra você, para o seu pai, para todos que estão ligados com a escória do seu irmão, o responsável por tirar tudo de mim, tirar tudo de
— Senhor , eu…
— Quão difícil é ficar longe dela, cacete? — Ele trincou os dentes com mais força, e Shoto viu seus olhos se arregalarem, cheios de horror e raiva crescente. — Eu sei que você sentiu isso desde a primeira vez. Sentiu que ela não deveria se envolver com você, ou nessa missão, que essa ideia de mantê-la por perto era ridícula, insana, você sempre soube disso. Mas ainda assim… Ainda assim — ele retirou a arma do peito de Shoto, e enxugou a testa suada com as costas da mão. Shoto podia ver como ele parecia transtornado e perturbado, uma imagem completamente incompatível com suas roupas caras e a propriedade presunçosa bem atrás de suas costas.
Contudo, Shoto se deixou sair um pouco da situação e disse com uma voz levemente gentil, mas firme:
— Eu gosto dela, senhor . Eu não fazia ideia dessa história, eu…
— Cala essa boca. Cala essa boca! — O homem estava perto novamente, cobrindo a cabeça com as mãos e gritando, como se a voz de Shoto tivesse o efeito de pregos cravados em seus ouvidos — Não me importa o que você sente por ela, nem como descobriu a verdade, não interessa, não interessa! Você não vai se aproximar nem 1 centímetro a mais de , me entendeu, Todoroki? Nem mais 1 centímetro. Tenho olhos em todos os lugares, sei onde você pisa e onde dorme, conheço a lista de pessoas que ama e, se não fizer o que estou dizendo, vai sofrer as consequências mais cedo do que o esperado.
As palavras foram como um soco forte no estômago de Shoto. O olhar penetrante e sombrio do senhor não se parecia com nada que ele já tivesse visto. Era como se sua verdadeira natureza finalmente fosse despida, e tudo o que ele havia dito e feito antes não passasse de uma farsa, um personagem, por mais detestável que fosse.
Mas aquele Hisashi à sua frente não era detestável. Era medonho. Era mau.
Ele começou a dar passos para trás, deixando Shoto imóvel, lutando contra a vontade de sacudir os ombros daquele maluco e prendê-lo dentro de uma cela de gelo impenetrável até que voltasse a si e explicasse o que tinha sido tudo aquilo.
Mas Hisashi olhou para o chão novamente, e onde antes estava a poça borbulhante, agora não havia nada além de uma mancha preta, como se o próprio solo tivesse absorvido a coisa e morrido.
— Vou proteger minha filha, seu insolente. Eu. Principalmente de você.
A próxima coisa que Shoto viu foram as costas voluptuosas do homem andando de encontro à escuridão da entrada da propriedade, arrastando os pés com rapidez e entrando para dentro da casa.
Foi então que Shoto fez uma série de movimentos, mas não se tocou de nenhum deles.
Estranhamente atordoado, o rapaz mancou de volta para o Volvo, abriu rapidamente a porta e ligou o motor. Ainda tinha meia hora de estrada até chegar no apartamento em Ueno. Ele ainda não conseguia entender como em uma cidade tão grande como Tóquio, havia apenas um posto de gasolina artificialmente iluminado no meio do caminho entre Asakusa e Ueno. De repente, lembrando-se de que os carros precisam de gasolina, ele xingou as carrocerias de última geração que bebem mais combustível do que sua picape, e isso era um ponto negativo a se considerar sobre elas. Ele pensou, de repente, que precisava abastecer o carro, e xingou aquela lataria de última geração que engolia mais do que sua picape, e isso era um ponto negativo a se considerar sobre ela. Tanto faz se seu sogro maluco não gostasse de seu Jeep Gladiator, a máquina era um tesouro na garagem do jovem Todoroki.
E ele dirigiu. E dirigiu. E dirigiu.
Em um cruzamento com pouco tráfego, Shoto parou em um semáforo que havia ficado vermelho e começou a piscar os olhos rapidamente como se estivesse tentando se lembrar de algo. Uma raiva cega e feroz queimou seu peito, medo e terror subiram por sua espinha até finalmente alcançar seu cérebro estranhamente cego. Um cérebro que de repente se desligou. Um cérebro que estava se lembrando agora que uma arma havia sido apontada para seu peito e que esse mesmo homem tinha seguido para dentro de casa. Um homem que enlouqueceu, um homem que de repente se tornou imprevisível, um homem que estava com Paezoa.
Shoto xingou, abriu a boca e imediatamente olhou pela janela. Que lugar era aquele? Que estrada era aquela? Onde estava? O que diabos tinha acontecido? Estava em um transe?
Um transe! O que sentiu na usina?!
Com um grunhido, o herói se preparou para apertar a embreagem e girar o volante com toda a força para o outro lado, para refazer aquele caminho estranho, para ligar para o pai e quem mais tivesse frequentado as aulas com ele para que o seguissem e o ajudassem a tirar sua namorada de perto daquele homem imediatamente, para avisar à cidade inteira que Hisashi estava escondendo alguma coisa e que era mais perigoso do que parecia.
Mas antes que ele fizesse qualquer ação e conseguisse mandar uma nota para a agência de seu pai, um foco de luz bruto e cegante surgiu de lugar nenhum, atingindo a lateral do Volvo com a força de um caminhão, lançando o carro para o outro lado da estrada, para o outro lado de alguma coisa, fazendo o automóvel capotar, capotar, capotar até mergulhar no desfiladeiro sombrio e vertiginoso, onde ele só foi capaz de escutar o estouro do vidro do pára-brisa e uma pequena risada gutural antes que o mundo fugisse de órbita e ele afundasse na inconsciência.

🔥❄️


nunca pensou em como seria sair de casa.
Ela invejava qualquer um que tivesse tanta coragem. Havia tantas coisas a considerar, tantas mesmo; não significava apenas pegar o dinheiro que você economizou, fazer as malas e pronto, estava livre e podia fazer o que quisesse.
Não era assim. Mas estava prestes a presumir que sim, porque a partir do momento em que entrou naquela casa, de repente ela não parecia mais a sua casa, com todos aqueles whiskeys e jornais, a coleção de selos e os chinelos que ela tinha customizado para ele quando criança. Nenhuma daquelas coisas pareciam o seu pai, e parecia uma garotinha perdida, mais perdida do que jamais estivera em toda a sua vida.
Em ações automáticas e furiosas, a garota ainda com lágrimas nos olhos puxou a primeira bolsa que viu, e abriu o armário com a infinidade de vestimentas que eram todas iguais em sua maioria e puxou as primeiras camisetas e calças que via pela frente, jogando-as para dentro da mochila, achando outra mala pequena de mão e fazendo a mesma coisa com o restante das roupas e dois pares de sapatos.
não tinha um lugar em mente. Não sabia nem o que estava sentindo direito; só tinha aquela imagem do pai no andar debaixo com fúria assassina nos olhos, sua mentira descarada sobre a mãe, a única mentira que jamais poderia ter feito à ela, e aquela arma, e Paezoa… E como tudo aquilo soava como ainda mais mentiras!
Ela poderia pensar quando estivesse longe dali. Poderia pensar com calma quando conferisse o telefone e enviasse uma mensagem para Shoto encontrá-la na agência. Poderiam conversar e resolver os problemas que tinham surgido com calma.
Marchando até o banheiro do quarto, puxou gavetas e abriu armários para pegar os itens básicos de higiene. Quando voltou, precisou segurar o grito de susto ao ver Hisashi no batente, com os olhos fixados na mala aberta sobre a cama.
Não havia nenhum sinal da violência e do ódio em seu rosto agora. Os ombros caídos do homem mostravam seu choque e tristeza com a situação, e sua boca abriu e fechou enquanto avaliava as coisas da filha espalhadas, ao mesmo tempo em que ela acabava de voltar com ainda mais pertences.
— O que você está fazendo? — perguntou ele, em um fio de voz. segurou o grunhido na garganta. Costurou o quarto em direção à cama, puxando a mala para perto de si e jogando os itens do banheiro em qualquer lugar — , me responda!
— Eu estou saindo daqui, não tá claro? — respondeu ríspida, agora apressando ainda mais a arrumação. Hisashi entrou no cômodo, erguendo as mãos para tocar em seu cotovelo delicadamente.
— Filha, me escuta…
— Eu não quero falar com você! — se desvencilhou do pai, dando passos para trás. Sua expressão era quase de desentendimento; e isso era absurdo! A arma e os olhos violentos dele haviam sumido como se nunca tivessem existido, mas isso não apagava o fato de que estavam ali antes, e viu, ouviu e sentiu toda a sua hostilidade para cima de Shoto. Pra cima dela mesma! — Eu não quero ouvir suas explicações, não quero ouvir suas mentiras, não quero tentar adivinhar como você estava com aquela… Aquela…
— Você está se referindo à Paezoa — ele a interrompeu, e o pulso de perdeu a força quando arregalou um pouco os olhos — Eu sei de tudo. Sei do perigo dessa coisa, sei sobre Rush, sobre as mortes qu causou e sei dos possíveis Nomus. Na verdade, todas as corporações já estão sabendo, . E tudo que eu faço é pra te proteger de tudo isso.
Os olhos de piscaram ferozmente. A brisa que entrava pela janela do quarto enchia o cômodo com o aroma de folhas e de água, um cheiro em que se concentrou por um instante, por mais que parecesse absurdo estar se concentrando em qualquer outra coisa diante de uma verdade daquelas. O pai se aproximou da garota paralisada pela informação, e repentinamente sentiu coisas crescendo dentro dela. Coisas em crescimento desde toda a cena lá embaixo, coisas secretas, como uma urgência de sair correndo, algo que gritava para ela para se afastar daquele homem imediatamente.
Mas não conseguiu. Seus pés pareciam fincados no solo.
— Tudo que eu quero é te proteger, . Mais do que qualquer coisa. Mais do que o sucesso, a prosperidade e a paz de espírito. Espero que passar mais tempo em casa e longe daqueles imbecis te faça perceber isso.
Agora o aroma tinha ficado mais forte, e Hisashi estava mesmo naquele quarto? A voz dele parecia estar vindo do lado de fora, vinda do andar debaixo, vinda do outro polo da cidade. tentou abrir a boca para respondê-lo, e jurou que estava vendo o rosto do pai na panorâmica, e jurou também tê-lo ouvido com a mesma animação com a qual conversavam ao telefone sobre “como andam suas aulas? Soube que no último ano elas tomam bastante tempo” e o respondia que sim, que não suportava as aulas de Geografia, mas nunca dizia o quanto queria um outro tipo de ação. O tipo de ação que tinha trabalhando para Endeavor. O tipo de ação que ela sabia que o pai não tolerava, mas nunca tinha ficado tão claro do quanto depois da conversa que tiveram no laboratório.
De repente, sentiu o vento gelado cessar e os olhos pesarem. Foi um tempo de milésimos de segundos e, então, ela os abriu de novo e sentiu-se desperta como antes. Mas Hisashi não estava mais ali. E ela se lembrava de que ele estava, mas por qual motivo mesmo? Para dizer que a buscaria depois da escola, como sempre fazia quando estava na cidade?
Virando a cabeça devagar, ela encarou a cama e as malas abertas, com as camisetas espalhadas pelo colchão e os sapatos jogados de qualquer jeito em cima delas. Por que ela estava arrumando malas? Ela tinha de fazer o dever de casa. Já tinha dito ao pai que não podia fazer aquela viagem de aniversário, já tinha dito que tinha compromissos e obrigações, que tinha trabalho a fazer, que tinha a missão…
A missão. Com Endeavor. Com Shoto.
Shoto, que estava ali há menos de 20 minutos atrás. Shoto, que tinha contado a história bizarra sobre seu irmão mais velho ter matado sua mãe.
Shoto, que foi alvo da arma de seu pai. Seu pai tentou matá-lo!
Demorou apenas 60 segundos para o mundo se abrir na frente de novamente. Uma sensação conhecida se fez presente, aquela mesma sentida na usina, aquela em que seu corpo e mente foram apagados e sua consciência foi transportada a um estado ilusório e dormente sem explicação.
Com um crescente pânico, olhou para a porta fechada e correu para ela, atestando o que imaginou: trancada. Sem a chave. Sem rastros. Grunhindo, ela se virou para a porta de vidro da sacada e viu o mesmo. As janelas estavam iguais. Hisashi havia trancado-a naquele quarto. E sabendo da composição da estrutura de toda aquela casa, decisões de Hisashi que jamais questionou, a ideia de sair dali não era mais uma possibilidade. estava presa.
Na mesma hora, procurou o telefone nos jeans, mas se lembrou que ele estava dentro de sua bolsa – a que largou na hora da raiva no meio da sala.
Não tinha mais nada. Absolutamente nada.
Tinha se tornado uma prisioneira. E seu carcereiro era um homem completamente desconhecido, um homem o qual chamava de pai.


Parte 17 – Salvação escarlate

Shoto teve certeza de que seu crânio foi aberto, revirado e fechado de novo.
A dor de um procedimento desses devia ser muito parecida com a que ele sentia agora. E, quanto mais ia se tocando desta dor, mais começava a, lentamente, perceber as outras, as fagulhas lancinantes espalhadas pelo corpo inteiro, com a possível e única exceção dos olhos. Eles foram os primeiros a serem atingidos pela luz amarelada que pendia do teto, balançando-se preguiçosamente para lá e para cá, indo e vindo como o relógio de um hipnotizador.
Com o cenário tomando forma pouco a pouco, Shoto tentou se mexer. Isso doeu. Fazer careta depois disso também. Tentou virar a cabeça para os lados, mas doía ainda mais. Tudo que enxergava além da redoma de iluminação fraca acima de sua cabeça era escuridão. Quatro paredes úmidas e geladas, cheirando a lodo e fuligem juntos. A lâmpada ainda balançava, insistente. Fora isso, nada. Apenas ele em uma cadeira pequena, onde tentou se mexer e se deparou com mãos presas e mais uma pontada de dor. Os pés estavam da mesma maneira.
Shoto xingou. O carro. Alguém tinha batido no seu carro. Ele tinha perdido completamente o controle da direção, mas não tinha sido apenas isso. Shoto conseguiria se livrar de um acidente daqueles facilmente, mas não. O carro tinha sido literalmente atirado pelos ares. Rolado como uma bola. Enroscado-se no fundo do barranco daquela estrada abandonada e desconhecida.
E agora, com mãos e pés atados, ele soube do motivo.
Poderia julgar que alguém o estava seguindo desde o início, mas não parecia verdade. Não era verdade. Shoto Todoroki não tinha chegado ao ranking dos melhores super heróis da atualidade se não fosse capaz de fazer o básico: perceber que estava sendo seguido. Isso nunca tinha acontecido. Nenhum vilão ou não vilão era capaz de passar batido pelos seus instintos, nem mesmo Risa com sua super velocidade.
E para não ter percebido tal coisa, ele só podia não estar sendo ele mesmo.
Merda! Mil vezes merda!
Teria todo o prazer do mundo de tentar decifrar aquele enigma no momento, mas agora precisava sair dali. Seja lá quem o tenha capturado, não deixou ninguém para trás de guarda, nem comida ou água, ou qualquer coisa que atestasse sua existência. Uma mancha de sangue seco obstruía um pouco da visão já embaçada do herói, e pelo latejar constante na cabeça, ele não tinha dimensão de seus ferimentos no momento, só sabia que tudo doía. Tudo.
Shoto respirou fundo. Estava prestes a fazer uma força além do normal para se desfazer um pouco das amarras quando uma voz adentrou, delicada e educada, no espaço vazio:
— Acho melhor não fazer isso, garoto.
Os ombros dele tremeram imediatamente com um sobressalto. A voz viera de algum dos cantos escuros do ambiente – um lugar afogado pelo breu, com a única iluminação sendo aquele pêndulo debilitado acima dele. Uma risadinha maléfica ecoou de algum ponto e Shoto trincou os dentes, movendo as mãos com mais rapidez, pronto para se soltar.
Mas nada aconteceu. Ele tentou novamente, cerrando os dentes com força a ponto de arrancar um pouco de sangue da gengiva, mas não adiantou. O que raios era aquela coisa? Parecia estar suprimindo os poderes de Shoto.
— É falta de educação falar sem mostrar o rosto — o herói murmurou, e todos os músculos faciais doeram com o ato. — Posso te garantir que não consigo ligar pra polícia.
— A polícia não te ajudaria aqui, fedelho — mais uma sequência de passos deslizou pelo chão empoeirado. O som causava um eco sobre todas as paredes ao redor, seja lá quantas fossem. Shoto se concentrou no som, forçando os olhos a focarem, a descobrirem uma direção — Aliás, ninguém pode te ajudar. Você está aqui por culpa sua, ou melhor… — o pedaço de um braço foi visto fracamente na escuridão, e um rosto começou a tomar forma quando disse, com um sorriso plácido e um pouco macabro: — Está aqui por culpa de seu pai.
Se dissessem a ele que esse dia chegaria tão rápido, Shoto demoraria para acreditar.
Mas à medida que aquele rosto ia se tornando mais visível, e ele notava como aquela voz era mais arrastada que o normal, mais densa e menos viva do que alguém naturalmente vivo, ele percebeu que esteve, inconscientemente, se preparando para aquele encontro desde o fiasco de Togoshi Ginza.
Pelos sete anos desde que pegou o diploma da U.A. e se consolidou como um herói profissional renomado, Shoto talvez já tenha pensado que enfrentaria uma celebridade do passado que todos achavam que estava morto.
Rush tinha a forma de um demônio inofensivo. Daqueles em que a aparência era sua maior arma, porque não servia para fazer as pessoas correrem, e sim para o completo oposto. Tudo que conseguia ver naquele rosto esculpido de uma beleza formal, requintada, os cabelos escuros em traços joviais demais para quem tinha a idade de seu pai, fruto de experimentos secretos e assustadores que Shoto não tinha coragem de perguntar no momento… era maldade pincelada nos olhos, porque os olhos revelavam toda a verdade.
Estou ferrado”, ele chegou a pensar, com um certo tipo de humor, fazendo mais uma careta de dor quando tentou mover os punhos. “Muito bem, Hisashi, você me ferrou, você conseguiu”.
— Então é você — murmurou o herói, e percebeu como as lascas de dor eram lançadas nas suas costelas. Talvez estivessem quebradas, assim como outros ossos do corpo que ele não sentia agora. Não sabia como tinha saído do Volvo nos braços de algum capanga do vilão e não ter gritado de agonia em nenhum momento. — Precisava ter me fodido desse jeito só pra ter uma conversinha?
— Uma conversinha que pode te matar.
— Que seja. Ficou preocupado de me enfrentar inteiro? — Shoto tentou dar uma risada debochada, mas que droga, doía ainda mais. — O acidente foi um ato de desespero.
— Foi uma lição, seu moleque — os dentes em uma carreira perfeita se fecharam com um rosnado e o homem de repente tinha se aproximado em um piscar de olhos, mirando Shoto não mais com divertimento, mas com uma raiva borbulhante. — Uma lição que me fez interromper os meus afazeres. Acha que tenho tempo pra isso, querido Todoroki? Acha que não estou fazendo nada de importante?
— Coisas importantes como usar pessoas inocentes para construir Nomus?
A face de Rush congelou com as palavras inesperadas, e Shoto abriu um meio sorriso no rosto ensanguentado, se dando conta do quanto era perigoso revelar as coisas dessa forma na situação miserável em que estava. Tarde demais. Não importava, de qualquer maneira. Aquele homem à sua frente havia matado muitas pessoas no passado, e estava se preparando para fazer a mesma coisa em um futuro bem próximo. Precisava saber que não teria qualquer simpatia do super herói meio a meio.
Quando o rosto se aproximou do seu e Rush começou a soltar risadas altas e graves depois do breve momento de surpresa, Shoto começou a sentir algo pinicando em algum ponto de suas entranhas, como se as risadas do vilão reverberassem pelo ar como minúsculas partículas de ferro, como lâminas invisíveis.
Que droga, ele não fazia ideia de quais ou quantos poderes Rush tinha agora. E ainda não conseguia se soltar das cordas.
— Ah, garoto! Você não é mesmo tão burro assim, não tanto quanto eu gostaria — o vilão estava chegando ainda mais perto, e à uma distância considerável de seu fronte, Shoto seria capaz de sentir a respiração dele em seu nariz. Mas não sentiu. Rush sequer respirava? — Então você sabe dos Nomus. Interessante. Não foi algo que saí divulgando por aí, o que é mais interessante ainda. E você ainda não parece com medo.
— Não preciso ter medo de algo que vou impedir — respondeu o garoto com toda a confiança e firmeza que conseguia reunir na voz debilitada, ainda que a aproximação do vilão o causasse calafrios. Ainda que sua mente não descansasse um segundo sequer enquanto ainda tentava ver saídas, portas, cadeados, barulhos, qualquer coisa que o pudesse dar um plano. Ainda que seus pulsos machucados tentassem se livrar das cordas malditas que suprimiam seu frio e calor completamente — Porque nunca vou deixar você conseguir o que quer.
O sorriso de Rush não era mais tão bonito. Era aberto, escancarado, acompanhado de pálpebras dilatadas que formavam uma expressão louca de alguém com desejo animal de queimar o mundo. Algo terrivelmente capaz de deixar Shoto Todoroki ainda mais tenso, tão tenso quanto a pressão daquelas cordas nos punhos.
— Ah, você vai deixar sim, querido Todoroki. Você e seu querido pai vão ficar de braços cruzados e bem quietinhos em algum lugar seguro enquanto esperam a vez de vocês.
Shoto comprimiu os lábios. Um dos pequenos nós tinha se desfeito. Não tirou os olhos de Rush por nenhum momento.
— Você tem uma fila de inimigos a destruir? Eu e Endeavor estamos em que posição?
— Vocês são privilegiados. Vão assistir a tudo de camarote — mais um sorriso esbranquiçado e animado. Shoto sentiu repulsa de qualquer milímetro daquele rosto — Suspeito de que nada na vida dos interessantes pai e filho será tão real e intrigante quanto terem a chance de testemunhar o meu grand finale do show da temporada.
— Exceto que esse momento não vai existir — murmurou o rapaz, movendo as mãos com um pouco mais de agilidade. Mais dois nós haviam se soltado em decorrência do primeiro, e Shoto começou a sentir de novo o sangue fervendo no braço esquerdo, assim como as fagulhas de gelo no direito. — É pra isso que me chamou aqui, senhor Nakasato? Pra me matar de tédio antes de me matar de verdade? Preferia que o carro capotasse mais 15 vezes.
Rush soltou uma risada alta, mas não parecia mais tão cheio de si do que há poucos segundos atrás.
— Muito engraçado, garoto. Eu me deliciaria com seu sangue se pudesse te matar agora — a voz grave se abeirou de Shoto mais uma vez, e Rush ergueu a mão com dedos longos e unhas pontudas em garras, flexionando-a conforme se aproximava do pescoço do herói, mas parando antes que o tocasse. Não havia calor nenhum emanando de seu corpo, apenas frio e um completo… Nada. — Mas não vou. Acredite, o que é seu e do seu maldito pai está guardado desde o início, incluindo toda a família Todoroki, mas a hora não tardará. Entenda, sempre sei onde estão, onde vão estar e sei onde você esteve antes de ser arrastado como um rato até aqui.
Um pequeno calafrio tomou a coluna de Shoto com a informação, mas não permitiu que o vilão percebesse isso. Tinha que se concentrar naquelas cordas, em sair dali e descobrir onde estava, e quantos mais deviam estar esperando longe de toda aquela escuridão. Que se dane se estivesse nas montanhas, ele congelaria e derrubaria aquele lugar inteiro, pedra por pedra.
— Você quer vingança — não era uma pergunta. Shoto precisava distraí-lo. Estava conseguindo desatar os nós mais rápido agora. — Tudo bem, eu entendo. Quer vingança pelo que Enji fez com você no passado, aquela batalha ridícula perto de Nethers. As pessoas falam sobre isso até hoje, sabia? Dizem que você fritou igual churrasquinho com o Punho Flamejante, e ele ainda estava desenvolvendo a habilidade. Foi patético. — Shoto esboçou uma risada curta pela garganta, e devia ser louco para provocar um vilão milenar que o encarava como se pudesse pulverizá-lo ali mesmo, naquele lugar remoto onde nunca achariam seu corpo — Mas é um pouco antiético envolver todo o país nessa merda de revanche, não acha? Devia se resolver com Endeavor sozinho, não precisava me envolver na história. Até porque nunca vou deixá-lo me salvar.
Rush o encarou por alguns segundos antes de explodir em uma gargalhada. Por um instante, o herói não entendeu a atitude. Ainda tentava cortar as cordas grossas, que pareciam labaredas vivas envolvendo seu pulso, mas franziu o cenho para o vilão entusiasmado, que espalmou as mãos no ar como se ele tivesse dito a piada do ano.
— Minha nossa, garoto. Acha que você está aqui por causa do seu pai? — e de repente, um impulso de alta velocidade levou Rush para perto dele novamente, tão perto que Shoto precisou imobilizar os braços antes que aqueles olhos cor de violeta reparassem nos movimentos — Acha que se eu estivesse com Shoto Todoroki, filho mais novo da família Todoroki na palma da minha mão, já não teria feito um espetáculo sobre isso? Acha que seu rosto já não estaria estampado em todos os outdoors da cidade e fora dela? Acha que o idiota do seu genitor já não teria movido céus e terra para dar um jeito de te resgatar?
— Você é tão carente de atenção? — Shoto tentou rir, mas aqueles olhos esbugalhados estavam deixando-o tenso. De qualquer maneira, se não fosse por Endeavor, então… — Por que estou aqui?
— Não prefere pensar que é por provocação?
— Eu sei que é — Shoto disse entredentes. Agora parecia, repentinamente, que aquele idiota estava zombando dele. Que algo estava acontecendo bem diante de seus olhos, que aquele crápula sabia de alguma coisa. E não importava se estivesse mentindo ou não, Shoto descobriria — Mas você me capturou e eu ainda estou vivo. Então fala logo, seu monte de merda. O que você quer com a minha família?
Rush voltou a se afastar para trás, com o mesmo sorrisinho debochado incrustado nos músculos faciais, mas agora estampando uma careta distorcida de ódio.
— Eu quero matar todos vocês.
— O quê…
— Aliás, eu vou matar todos vocês. Tenho planos, fantasias e sonhos com o dia em que puder esgoelar todos os membros da sua familiazinha de merda! Mas… — ele inspirou pelo nariz fortemente, e o sorriso foi gradualmente desaparecendo — Como vou ter minha vingança se você insiste em se meter com quem não deveria?
De repente, o rosto de Shoto foi estapeado com a força de um canhão. A palma queimou em sua bochecha como se fosse aço. A dor irradiou por todo o seu corpo, da mesma forma como já estava acontecendo desde que acordou. Apesar disso, o herói se limitou a fechar os olhos com força e não emitiu um grito sequer, enquanto Rush cerrava os dentes de modo audível, como um cão raivoso, perdendo o controle.
— É por sua causa, seu infeliz! Eu não matei o Endeavor ainda por sua causa! Como se atreve! — Gritou mais uma vez, de forma mais alta e aguda, trazendo o rosto de Shoto para encará-lo novamente. Ele lutava para não parecer tão desnorteado com a dor — Eu tinha tudo pronto. Tinha incluído todas as coordenadas do meu grande feito, o plano estava prestes a passar adiante e Enji Todoroki estaria ardendo nas próprias chamas antes que o mês findasse, mas você… Você! — ele deu um grito estridente, e Shoto sentiu a palmada de ferro do outro lado do rosto, mas não viu Rush chegar perto para dá-la. E aquelas mãos…
— Do que está falando? — ele perguntou com a voz falha de tanto segurar as cordas vocais para que não emitissem nenhum som. Rush estava longe dele àquela altura – a alguns vários passos de distância para ter conseguido acertá-lo daquele jeito. Como era possível?
Mas antes que procurasse as estranhezas da cena, o vilão disse em uma voz raivosa lotada de ódio:
— Graças a acordos milionários, não posso te matar enquanto estiver perto daquela garota! Fim da diversão! A execução do Enji adiada por causa do caçula idiota que está sempre se metendo nos problemas! Você é uma completa pedra no sapato, Shoto Todoroki, você e seu ar arrogante, seu…
Shoto parou de lhe dar ouvidos. A audição foi vedada à medida que seu cérebro ia encontrando as brechas daquela frase e encaixando tudo, entendendo tudo. Não posso te matar enquanto estiver perto daquela garota…
Aquela garota…
Com um solavanco irracional, o herói desatou o último nó em um movimento só e encontrou o olhar do vilão lendário com um fogo tempestivo nos olhos.
— O que foi que você disse?!
Por um milésimo de segundo, Rush se encolheu. O que saiu da garganta do rapaz meio-a-meio não parecia uma simples voz, e muito menos uma simples pergunta. Diante dele, os braços atados de Shoto tremiam compulsivamente e o olho esquerdo crepitava em chamas alaranjadas que anunciavam uma grande explosão.
Antes que o vilão tivesse a chance de pensar, Shoto deixou que a raiva estourasse em suas veias, anestesiando-o de toda a dor no corpo machucado e fazendo-o se livrar do restante das cordas com facilidade. O gesto surpreendeu Rush, que foi rápido em se afastar, mas não o suficiente para impedir que as pernas fossem presas pela rajada de gelo que deslizou do braço direito do garoto. O gelo que não deveria estar ali, o poder que deveria ser retardado graças às cordas embebidas com tecnologia apagadora de individualidades, vedando qualquer habilidade de Shoto.
Sem hesitar, o herói avançou sobre o vilão, pondo as mãos feridas em seu pescoço assim que conseguiu jogá-lo ao chão.
— Repita o que disse, desgraçado! — grunhiu ele no rosto de Rush. — Vocês estão vigiando ? O ataque no hospital foi culpa sua? Como se atreve a chegar perto dela?!
Puxando o colarinho do vilão para frente, Shoto empurrou seu corpo para o solo novamente, e de novo, e mais uma vez, concedendo inúmeros impactos na cabeça do adversário antes que ele tivesse a chance de revidar. O fogo ainda queimava no olho. Estava queimando seu corpo inteiro.
Rush não reagiu. Apenas levantava os braços para a frente do rosto em uma na tentativa desesperada de não ser asfixiado por Shoto, mas parecia fraco e patético. Um homem que nem estava tentando ganhar. Mas ele era Rush! De alguma forma, isso criava expectativas quanto às suas habilidades lendárias.
— Para! Para! — ele gritou embaixo de Shoto, e quando tentou erguer uma mão para empurrar o garoto, teve a mesma queimada pelo lado esquerdo do herói, ativado inconscientemente. — AH! Desgracado!
— É melhor você abrir a boca agora! Quem está relacionado com isso? Quem atacou minha namorada? Vocês…
E Shoto não conseguiu terminar a frase, porque teve o corpo lançado a vários metros de distância, onde rolou e rolou até bater com força em alguma parede empoeirada de concreto.
Agora a dor foi real e cataclísmica. Toda a lógica deixou a mente de Shoto à medida que sentia cortes se aprofundando, seu cérebro chacoalhando e ossos quebrando. Ele não se virou para ver o estado da parede atrás de si, mas com certeza deve ter afundado o cimento com a força sobre humana com que foi jogado.
Com isso, o herói tratou logo de fechar os olhos e tentar se levantar. Foram segundos suficientes para que ele, ainda com a mente embaralhada, escutasse grunhidos intensos e xingamentos vindos do vilão à frente, dizendo coisas desconexas como: “Ei, você precisa me ajudar aqui, porra! Ele quase me matou!
Ele é muito forte, droga! Conseguiu se livrar da corda e queimou a minha mão, a minha mão! Disseram que ele não era de nada comparado ao pai! Venham me buscar agora!
O quê? Matar ele? Se eu matá-lo, Rush vai ficar uma fera. A família Todoroki pertence a ele, que ideia de merda…
Ao ouvir o nome de Rush, Shoto sentiu as engrenagens voltando a funcionar, mesmo que em câmera lenta. Rush…
Aquele não era Rush?
A pergunta foi respondida por suas próprias lembranças. É claro! A falta de cheiro e hálito, o sorriso inquieto e os olhos esbugalhados, tentando manter um personagem mal feito que seu pai logicamente teria percebido na mesma hora. E Shoto ficou chocado com isso. Chocado com o truque barato em que tinha caído, na rede de armações em que tanto treinava para se livrar.
Não. Aquilo não era uma simples armação. A história não tinha toda essa simplicidade.
Tudo tinha começado na frente da mansão dos . Com Hisashi e sua arma… E com o esquecimento de Shoto… Sua mudança de direção temporária, o apagão bizarro que o levou aos confins daquele lugar sombrio.
Tudo isso o fazia ter certeza de que algo de muito estranho e muito perigoso estava acontecendo.
Agora com mais raiva de tudo, o herói se colocou de pé com dificuldade, tentando não se desequilibrar nos escombros, e antes que os olhos da cópia de Rush o notassem através da poeira, Shoto ergueu o braço direito – que com certeza estava quebrado – e gritou quando lançou o gelo cortante na direção do homem, modelando-se ao redor da cabeça e da mandíbula do sujeito, jogando-o para trás e impedindo-o que gritasse.
Mancando e arrastando os pés, Shoto materializou uma pequena adaga de gelo das mãos, e cada movimento doía como a morte em resposta. O homem se debatia continuamente no chão, certamente sem conseguir respirar pela focinheira gélida. O rapaz grunhiu quando se ajoelhou novamente, olhando-o com a mesma fúria de antes.
— Que patético — disse ele, lutando para manter a respiração estável. — Rush chegou muito perto de me matar há algumas semanas. Ele me atacou bem no meio de um almoço onde meu querido pai me dizia que tinha passado a Agência para o meu nome — Shoto balançou um pouco a cabeça para se livrar da tonteira repentina causada pela dor. — Sabe o que é isso? É o seu velho, que estragou a sua infância e grande parte da adolescência, tentando mais uma vez se redimir. Venho assistindo essas jogadas dele por anos, fingindo que não me afetam, ignorando a vontade que eu tenho de mandá-lo se isolar em uma casa na ilha e finalmente tirar a aposentadoria, porque aquele idiota não é mais o mesmo que quebrou a cara do seu chefe e isso me preocupa pra cacete! — gritou, afundando o braço com a adaga na perna direita do homem. Os berros abafados se espalharam dentro do gelo em sua boca, e seus olhos apavorados o transformavam em uma formiga indefesa — E naquele dia, eu confirmei isso. Endeavor agora corre perigo ao enfrentar monstros. Percebi que estava lidando com um monstro bem grande quando nem eu pude matá-lo, e pior ainda: não pude proteger o meu próprio pai. Mas sabe qual a pior parte disso tudo? — Shoto girou a adaga no fêmur da cópia, e o cheiro que subiu pelas suas narinas era característico, muito característico — O pior é que naquele dia eu estava realmente disposto a ouvi-lo. A aceitar suas gentilezas, a chamá-lo de pai pela primeira vez em anos e me dispor a conversar. Estava muito afim de me livrar de todo esse rancor entalhado no meu peito que é simplesmente insuportável de carregar, de esquecer do significado dessa maldita cicatriz, de aceitar o fogo, de afundar o passado de uma vez por todas. Portanto, fique ciente que estou mais do que pronto e disposto a matar o verdadeiro Rush assim que ele aparecer, porque se pensa que pode me atrapalhar e mexer com as pessoas que eu amo dessa maneira, ele pode voltar para o túmulo de onde saiu.
Por fim, Shoto afundou ainda mais a adaga, e pelo barulho que fez, tinha perfurado músculos e veias. A dor que o homem devia estar sentindo beirava a insanidade, e quando Shoto se virou para a perna, viu o que já imaginava ver: Paezoa.
O líquido arroxeado que fluía livremente para fora do corpo do homem que se debatia, espalhando-se com sua fumaça e toxicidade por todo o concreto.
A tonteira voltou a avisar Shoto de que ele precisava sair dali o mais rápido possível. Tinha ouvido claramente o pedido de ajuda do vilão, e tinha que admitir que seu estado não seria favorável a nenhuma luta.
Antes disso, o garoto estendeu a mão para o colarinho do homem e o puxou para perto apenas para sussurrar:
— Avise o seu chefe que da próxima vez que quiser me matar, que venha ele mesmo. Covarde de merda!
E jogou a cabeça para o chão, pondo-se de pé com dificuldade.
Todoroki arrastou o corpo em direção à escuridão, ainda sendo capaz de ouvir os gritos abafados e as pernas que lentamente perdiam vida do provável homem que deveria ser um experimento que dera certo. O herói engoliu em seco com a ideia. Os novos Nomus criados eram para ser parecidos com pessoas? Do que essa nova leva era capaz? Tinham novos poderes que não tinham antes?
Ao menos, a força parecia ser a mesma, e melhorada. Mas aquele cara não tinha ideia de como controlá-la. Se soubesse, Shoto provavelmente estaria morto.
Ele se guiou com as mãos escoradas nas paredes até achar uma porta. Estava desprotegida e destrancada, o que só adiantava o quanto aquele cara estava certo de que Shoto não conseguiria fugir. Puxando-a com a força desfalcada, Shoto apoiou os ombros nela até sair para o lado de fora e se ver cercado de… Árvores.
Muitas árvores. Gigantescas como sequóias, costuradas com imensas trepadeiras que pareciam arames, silenciosas como se prendessem a respiração.
O herói cambaleou até recostar em um tronco. A zonzeira tinha piorado, e as árvores se duplicavam à sua frente, fazendo seu corpo implorar para ceder à gravidade. Não sabia onde estava, não sabia quando estava – o céu tinha um tom arroxeado de inchaço, típico da aurora de Kamakura, a pequena cidade nos arredores de Tóquio onde a poluição e arranha céus não interferiam na visão das estrelas.
Mas Kamakura era muito longe e seu carro já era. Precisava se afastar o máximo possível de seja lá que cabana era aquela, precisava dar um jeito de falar com a Agência, precisava, precisava…
Suas pernas imploravam para parar a cada passo. A dor no braço quebrado tinha escolhido aquele momento para se manifestar com desespero. Quando deu um passo em falso e teve o corpo lançado ao chão de terra, Shoto se perguntou se era assim que finalmente morreria.
Ficava cada vez mais difícil respirar. As costelas quebradas apertavam seus pulmões. O coração batia cada vez mais devagar. A visão embaçada não captava mais um palmo à frente. Tudo estava desmoronando e desaparecendo, exatamente como imaginou que seria quando finalmente se encontrasse com a senhora morte.
Porém, um instante antes de se deixar levar pela inconsciência, um ponto escuro foi crescendo e crescendo até tocar o rosto de Shoto. Uma brisa suave passou raspando pelas suas bochechas. E um roçar suave de pluma tocou seu nariz ao mesmo tempo em que o vento aumentava.
A última visão que Shoto se lembra é de um vulto vermelho descendo dos céus como um cometa, e sua voz fraca e quase inexistente murmurar:
“Hawks…”

🔥❄️


Tudo o que gostava estava naquela bandeja.
Ela amava torradas com manteiga, waffles com mirtilo, leite queimado e iogurte de banana. O melhor café da manhã do mundo, em sua singela opinião. Coisa que fazia questão de comer em datas comemorativas, ou datas que a lembravam de sua mãe.
Mas naquele momento, a bandeja estava sendo oferecida como estratégia. Uma compra, ou uma ameaça.
— Tem certeza que essa é a única maneira? — perguntou ela, em voz baixa porém firme, erguendo os olhos bem devagar para cima.
Ouviu-se um inconfundível e suave grunhido junto com o suspiro que o homem emitiu. Hisashi não parecia nem um terço parecido com o homem enlouquecido e violento da noite passada; muito pelo contrário. Agora trajava seus ternos de corte inglês inseparáveis, gravata combinando com os sapatos, e a pasta de couro que levava para o trabalho, carregando sabe-se lá o quê.
Ele se aproximou da filha e da bandeja especial do café da manhã que tinha mandado preparar, estendendo uma mão para tocar em seu cabelo solto, mas fez questão de afastar o rosto.
— Acredite, , é a única maneira — disse ele, com explícita dor na voz, mas sem nenhum resquício de alguém que voltaria atrás — Estou tentando te proteger e vou fazer o possível e o desagradável para isso. Por isso, preciso te avisar que conversei com Chiyo e disse que você não vai trabalhar hoje. Na verdade, já adiantei que você vai terminar a escola em Hamburgo.
sentiu as próprias cordas vocais se espremerem quando emitiu um:
— O quê?
— É isso que você ouviu. Vou te levar de volta pra Alemanha.
Se antes estava cansada, agora reuniu energia em ambas as pernas para se colocar de pé no mesmo instante. O choque atravessava cada célula de seu corpo, agitando-as com a raiva posterior. Hisashi nem havia piscado ao dar a notícia. Por um mísero resquício de esperança, esperou que ele dissesse que estava brincando.
Mas depois de tudo que vira e ouvira ontem, não reconhecia mais aquele homem à sua frente.
— Pai, você não pode… — ela tentou, e a palavra soou como ácido na boca. Aquele homem nem parecia mais seu pai — Eu não quero voltar.
— Antigamente você queria…
— Isso foi antes! Antes do meu trabalho, dos meus amigos, de Shot…
parou frente à têmpora dilatada no rosto de Hisashi. Os olhos se estreitaram de tal modo que ele parecia prestes a incorporar toda a gritaria e loucura da noite passada.
Em vez disso, ele se aproximou da filha a poucos passos, erguendo um dedo ameaçador em sua direção.
— E é exatamente por isso que você vai voltar. Para retomar o juízo que aquele delinquente fez o favor de tirar de você — rosnou ele, afastando-se antes que tivesse o ímpeto de pegar aquela bandeja e acertá-lo — Vou pedir para Bertha arrumar suas coisas, não se preocupe. Você só vai precisar entrar no avião. Até mais.
— Não, pai! — guinchou quando o viu se afastando para a porta — Não me tranca! Pai!
Mas o trinco veio antes que ela alcançasse a entrada.
deu um tapa forte na madeira, segurando o berro de ódio no fundo da garganta, segurando lágrimas e um surto completo que queria causar naquela casa inteira.
Não podia voltar para a Alemanha. Não podia continuar como uma prisioneira. Pela primeira vez na vida, tinha algo mais importante para cumprir do que tirar notas boas na escola e seguir o roteiro dos sonhos de outras pessoas. Queria mais, queria a sua vida, os seus sonhos, os seus desejos. Era injusta a forma como tudo estava desmoronando, como toda a sua trajetória foi uma mentira por tanto tempo.
Quando estava prestes a deixar o corpo escorregar pela parede e permitir que o choro da impotência viesse, ouviu um som agudo do lado de fora da sacada. Um som que ela conhecia de tanto assistir filmes de ação com Satomi e jogar videogames com seu antigo vizinho Paco.
Era um som de luta.
Apesar de nunca ter visto batalhas épicas pessoalmente, como as quais certamente Shoto poderia narrar centenas, os gritos e ruídos de corpos se chocando pareceu muito real e grande o suficiente para que a garota se levantasse correndo do chão e espremesse os olhos pelo vidro da porta igualmente trancada.
Não havia nada à vista. O quarto de ficava bem localizado no segundo andar, que graças ao pé direito imenso da propriedade dos , era mais alto do que a maioria das outras casas. Ouviu os seguranças tentando alertar perigo, o grito característico de Bertha da cozinha, e outro som. Aquele som. Um som que não estava acostumada a ouvir antes, mas desde ontem… Ah, desde ontem, não havia como não saber.
Hoje, sabia exatamente que som uma pistola fazia quando a trava de segurança era removida.
Porém, nenhum tiro veio. Em vez disso, um estrondo parecido com uma rajada de vento violenta passou pelo céu em um piscar de olhos, ofuscando a luz do sol e a visão de por um segundo, assustando-a por completo.
Antes que tivesse tempo e oportunidade para gritar por ajuda, o parapeito da sacada estremeceu quando os pés de Hawks se empoleiraram na grade, com as grandes asas vermelhas abertas de uma ponta a outra da varanda.
— E aí, ! — a voz dele soou abafada do outro lado do vidro. , ainda tremendo um pouco, piscou os olhos repetidamente até engolir em seco — Preciso da sua ajuda!
se aproximou novamente da porta, quase encostando a testa ao dizer:
— Eu estou presa!
— Quê? — Hawks franziu o cenho. suspirou e balançou a porta ao tentar abri-la em demonstração.
— Eu estou presa! — repetiu, balançando a porta mais uma vez — Meu pai levou a chave. Ele…
Ela comprimiu os lábios, tendo certeza que aquela história não devia ser contada naquela hora e naquela ocasião.
Hawks não disse nada por um minuto. Apenas um palavrão baixo, tomando seu rosto totalmente aborrecido.
Girando o pescoço para trás por um momento, ele se colocou de pé no piso e balançou as mãos para ela, dizendo:
— Afaste-se.
levou quase um minuto inteiro para entender o que ele pretendia. Quase gritou para que ele não fizesse aquilo, que deveria existir outra maneira, mas que loucura era aquela? É claro que aquela já era a outra maneira.
Ela se distanciou o suficiente da porta de vidro e só viu o montante de penas se soltarem das costas do herói número 2 e irem de encontro à fechadura, trabalhando de uma forma inteligente até fazerem o clique soar como um estrondo, como se tivessem implantado uma pequena bomba na fechadura.
Pelo menos não tinham explodido a porta inteira.
Hawks logo estava dentro do quarto, e parecia mais agitado do que antes.
— O que houve com você? Estamos tentando te ligar há horas, e quando pisei aqui, aqueles seguranças…
— Desculpe, meu pai pegou meu celular. Nós tivemos uma briga ontem, ele… — ela engoliu em seco, percebendo que a realidade do que tinha acontecido ainda era difícil falar quando não tinha sido nem digerida — Ele enlouqueceu.
Hawks murchou os ombros, sentindo que havia algo a mais para se saber, para perguntar, mas a urgência em sua postura indicava que teria que ficar pra depois.
— Tudo bem, não importa. Precisamos ir à Agência agora. O Shoto, ele…
— O que houve com o Shoto? — imediatamente sentiu os músculos endurecerem. Um medo pavoroso atravessou sua coluna, como se tivesse uma arma pressionada contra a pele. — Hawks, o que aconteceu com o Shoto?
Acima das sobrancelhas do herói, um vinco se formou na testa. nem percebeu que tinha pegado em seu antebraço e apertado sua pele – as mãos e unhas tão frias a ponto de parecerem afiadas.
Ele apenas engoliu em seco e assentiu levemente.
— Junta suas coisas. Vou te levar lá agora.
nem pensou. Não saiu correndo pela chance única de conseguir fugir daquela prisão de luxo do quarto no segundo andar, mas pela possibilidade terrível do que poderia ter acontecido com Shoto. O coração martelava há mil quilômetros por hora enquanto ela cruzava o cômodo inteiro em busca de uma única mochila, jogando todo o básico que conseguia reunir: roupas, escova de dente, o caderno de anotações da pesquisa e o pen drive que deixava embaixo do travesseiro com todos os seus resultados. Puxou o edredom para cima de uma almofada para fingir por um momento que estava ali, nem que seja para Bertha, para atrasar seu pai. Hawks, claramente confuso com a arrumação, não recebeu respostas, porque murmurou um “depois eu explico” e exigiu que saíssem dali o quanto antes, porque tentar adivinhar o que houve com Shoto era como uma bala entrando em seu crânio.
Não é o que eu estou pensando. Deus, que não seja isso. Que Shoto não tenha encontrado a morte em vez do caminho de volta pra casa ontem a noite.
Ela nem precisou perguntar. Na varanda, deixou que Hawks a pegasse no colo e alçaram voo como um foguete em direção ao céu pálido da manhã.
Ao olhar para baixo, enxergou as silhuetas espalhadas dos homens abatidos no jardim da frente da propriedade.

🔥❄️


Aquela não era a agência de Endeavor.
Nenhuma única parte da parede se parecia com a estrutura a que já estava acostumada a frequentar nas últimas semanas, mas estranhamente, não pediu explicações a Hawks. O herói número 2 pousou na grande cobertura como um jato e de repente já estava descendo e descendo as infinitas escadas, com em seu encalço, o coração pesando tanto dentro do peito que seria capaz de afundá-la no próprio chão caso cedesse à gravidade.
Quando viraram em um corredor estreito onde uma placa enorme dizia “Enfermaria – Agência Hawks”, pensou em puxar os braços do herói número 2 e exigir que ele lhe adiantasse um pouco do que poderia estar acontecendo antes que ela não aguentasse.
Mas não fez. Em vez disso, continuou seguindo-o, um pouco dopada e anestesiada por dentro, sentindo o medo e a esperança lutando no estômago sobre quem levava a melhor, quem acertaria o que de fato tinha acontecido.
Quando pararam na frente de uma porta branca, ele se virou rapidamente para ela antes de dizer, um pouco ofegante:
— Precisamos ser rápidos.
E abriu a porta, entrando em um impulso para dentro do cômodo.
Assim que ele ultrapassou o batente, teve a visão completa do que havia ali. E soube imediatamente que o medo tinha massacrado a esperança.
O sangue estava por toda a parte. Dava pra ver que Hawks ou qualquer outra pessoa havia tentado limpar um pouco a região do rosto e da testa de Shoto, mas só havia deixado ainda mais evidente todas as outras feridas, e o resto… Todo o resto era delirantemente assustador e sangrento! Aquele corpo estava… Era ele! Shoto Todoroki em uma situação como se tivesse flertado com a morte.
Com um grito sufocado na garganta, correu até a maca onde o corpo mole e desacordado do namorado estava sendo mantido. O rosto dele só não estava mais destruído do que os membros; os dedos do braço direito estavam levemente torcidos, as costelas um pouco afundadas, uma das pernas em uma posição seriamente afetada, e aquelas feridas no rosto…
Quando viu, já estava chorando, abrindo mão de todo o controle que havia trabalhado tanto para conquistar para não mostrar àquele Shoto Todoroki inicial de como era uma garotinha.
— O q-que aconteceu? — ela tentou perguntar com a voz totalmente embargada. Colocou dois dedos em seu pulso, assim como na glote, averiguando a respiração fraca, porém ainda existente.
Hawks engoliu em seco, e parecia tão nervoso, agitado e preocupado quanto ela.
— Eu não sei. Eu simplesmente não sei — respondeu ele, e começou a andar de um lado para outro — Eu senti uma vibração, um… um tipo de alerta que tenho por causa das penas. Coloquei algumas nos apartamentos e nos carros do Endeavor, Shoto, Fuyumi, de toda a família Todoroki depois do ataque do Rush. Uma delas vibrou como louca e quando fui averiguar, estava voando até Kamakura para achar o Volvo todo fodido na base de um barranco — Hawks soltou um suspiro forte. o encarou com os olhos se arregalando. — Ele sofreu um acidente. O carro capotou umas mil vezes na encosta da ladeira, mas… Ele não estava no carro. Passei quase 5 horas procurando para achá-lo quase do outro lado da floresta no sul. Estava há mais de 60km do local do acidente, deitado, quase morto. A única coisa que conseguiu dizer foi pra não contar para o Endeavor — Com mais um suspiro, ele acrescentou em um sussurro: — Você precisa curá-lo.
desviou os olhos do herói, incapaz de tentar imaginar o horror que deve ter sido para ele encontrar o amigo daquele jeito. Prontamente, ela correu para o primeiro armário que viu, puxando os primeiros itens que encontrava: álcool, gazes e bisturis. Fungando, ela secou as lágrimas com as costas das mãos e juntou os cabelos em um coque.
— Você vai precisar segurá-lo pra mim.
Hawks apenas assentiu e se aproximou da maca. Em um instante, suspirou fortemente e depositou uma palma sobre a região da costela de Shoto, lamentando que ele estivesse prestes a conhecer um novo tipo de dor.

A quem tivesse perguntado: os gritos misteriosos que abalaram as paredes do subterrâneo da agência do herói número 2 eram apenas um experimento de confidencialidade máxima com intuitos curativos.
Shoto havia desmaiado pelo menos 3 vezes desde que tudo começou. A dor era forte o suficiente para fazê-lo acordar, suar, gritar e não conseguir dizer nada a tempo desse combo de coisas fazê-lo apagar. pelo menos poderia contá-lo depois que ele havia aguentado muito bem, melhor do que se esperava, e manteria em segredo o fato de que ela mesma não conseguiu segurar as próprias lágrimas ao vê-lo sofrendo como estava.
Depois de 1 hora e o corpo pingando de suor, o garoto meio a meio tinha apenas as cordas vocais doloridas, e um grande formigamento queimando levemente por todo o corpo. Mas os olhos estavam se abrindo lentamente, e sentia que podia mover as pernas de novo, e os braços, e a própria boca finalmente.
A primeira pessoa que viu foi Hawks, logo ao lado da janela.
Em outra situação, teria sido um prazer enorme para o herói número 2 caçoar do garoto por ter sido tão destruído por um acidente de carro, mas não. Quando o enxergou no meio de toda aquela floresta densa, sabia que não tinha sido apenas isso. E que um grande segredo estava guardado bem ali, nas memórias de Shoto Todoroki, um que ele faria questão de resolver assim que ele estivesse apto a começar a contar.
— E aí, amigão — Hawks disse com a voz abafada, aproximando-se do garoto, que apenas piscou os olhos devagar e logo virou a cabeça para o outro lado, na direção onde secava as lágrimas teimosas de novo, ainda que os olhos vermelhos fossem totalmente indisfarçáveis.
Shoto não soube descrever o que sentiu ao vê-la. Ela abriu um sorriso mínimo para ele, e seus dedos tremeram quando os colocou na sua testa.
— Você acordou — disse ela, e parecia pior do que Hawks. Shoto automaticamente tentou se sentar, mas tudo ao redor girou tanto que o corpo, pesado como chumbo, foi bruscamente devolvido para a cama pela gravidade. apoiou as duas mãos em seu peito, olhando-o de cima e dizendo:
— Não, você ainda tá fraco, precisa descansar por algumas horas. Vou preparar uma infusão intravenosa, e daí você pode…
Ela teve os dedos agarrados por ele antes que desse algum passo para longe dali. A respiração de Shoto era irregular demais, sua garganta estava seca demais e todos os seus ossos pareciam pequenos pedaços fragmentados colados com cola ainda molhada, que só secariam e se tornariam firmes depois de uma boa soneca. Sua mente ainda embaralhada não o permitia argumentar coisa alguma, e ele se sentia tão, mas tão cansado, que não reagiria caso tivesse uma arma apontada para a cabeça.
Ainda assim, sabia da reação imediata que o coração estava tendo no momento, e que se tivesse de dormir ali e acordar só no mês que vem, ainda precisava colocar aquilo para fora, precisava que ela soubesse que ele faria de novo, precisava se dar ao trabalho de abrir a boca e dizer:
— Estou… muito feliz — ele tentou apertar o dedo dela, mas o gesto foi mais fraco que o normal — Muito feliz de ver você. , eu…
Shoto tentou erguer uma mão para acariciar o rosto dela, mas o gesto lhe cedia muito trabalho, e seu corpo voltou a afundar no sono profundo.


Parte 18 – O massacre da alvorada

A forma como Shoto acordou poderia facilmente fazê-lo pensar que todo aquele pesadelo tinha sido apenas isso: um pesadelo.
A luz do sol entrava por feixes aleatórios nas persianas, e uma brisa fresca fazia com que elas se chocassem entre si, causando um barulho mínimo, mas que foram o suficientes para acordar o garoto, que se remexeu e remexeu no colchão confortável até abrir os olhos e se deparar com um teto de forro de madeira angelim-pedra, da onde pendia um lustre refinado e surpreendentemente estável.
Ele piscou os olhos por alguns minutos, tentando fazer a imagem focar, sentindo-se ainda grogue não apenas de sono, mas por outra coisa. De exaustão. Foi a mesma forma que se sentiu quando acordou em seu apartamento depois da batalha de Togoshi Ginza, depois que passou pela cirurgia mais dolorosa porém mais eficaz de sua vida vindas das mãos novatas de , e depois uma bateria de sessões com a Recovery Girl para que ela conseguisse consertar sua cabeça.
Sim, era verdade. Era exatamente daquele jeito que estava se sentindo. Mas Shoto não tinha um lustre de cristal.
Não tinha um teto forrado de madeira brilhante.
E por Deus, sua cama era muito confortável, mas não confortável daquele jeito.
Antes que terminasse de acordar, ele já estava erguendo as costas para se sentar, olhando em volta com a perspicácia e a urgência de alguém que tinha sido sequestrado há menos de 48 horas. As paredes do quarto eram feitas da mesma madeira, assim como o piso e a mobília, como os chalés da montanha Mitake. Cobertores grossos cobriam seu corpo na cama anormalmente grande, e o resquício das últimas faíscas de fogo queimaram nas pedras abaixo da lareira. Mais alguns móveis refinados o fizeram ter certeza de que tinha sido sequestrado de novo, porém realocado para um cativeiro bem mais aconchegante.
Colocando-se de pé, Shoto precisou se apoiar na mesinha de cabeceira por um segundo pela zonzeira inquietante que tomou sua cabeça. Erguendo as mãos para o cabelo, ele sentiu um fino curativo grudado na lateral da testa, um lembrete de sua experiência de quase morte que não aconteceu graças à…
Hawks. O brilho escarlate ofuscante. A dor insuportável varrendo todo o resto de sua sanidade. Ele viu Hawks, tinha certeza disso. E depois…
Depois não se lembrava de mais nada.
O herói marchou para a primeira porta que encontrou, saindo por um corredor igualmente revestido de madeira, trotando os pés descalços até o alto de uma escadaria em espiral, sentindo o aroma de algo que se parecia com café e arroz cozido. E, à medida que foi descendo os degraus com a velocidade que sua ainda tonteira permitia, foi sentindo também o cheiro de ovos e um pouco de cebolinha.
Ao alcançar o andar debaixo, Shoto precisou se apoiar novamente no corrimão, mas não exatamente por se sentir zonzo. Estava mais para se sentir fraco.
Era incrível como ele, hoje, a reconheceria de qualquer lugar, e de qualquer ângulo. Os ombros dela tremiam pelo movimento constante nos braços enquanto batia algo em um recipiente, os cabelos estavam presos em um coque alto e era a primeira vez que ele não a via de calças. Em vez disso, usava uma blusa grande demais para o seu tamanho e shorts pequenos demais para qualquer uma. Qualquer preocupação de ser um prisioneiro novamente sumiu da cabeça do herói. Qualquer tipo de pensamento válido também.
O que é isso? Estava sentindo o coração martelar nos ouvidos pela mera imagem da nuca exposta de ?
Depois de eternos minutos não contados em que ele apenas ficou ali como um idiota, se virou na bancada para pegar alguma coisa e finalmente topou com o garoto imóvel ao pé das escadas, levando um pequeno susto.
— Nossa, você está aí — sorriu ela, causando mais um pico de delay na mente de Shoto — Que bom que acordou, o café tá quase pronto. Descobri uma coisa diferente naquela despensa que fica delicioso no curry, mas Hawks também disse que é algo muito útil na bruxaria. Dá pra acreditar? Ele falou que-
Em um impulso cego, Shoto cruzou todos os metros da escada até a cozinha conjugada e simplesmente envolveu o corpo de em seus braços, como se ela estivesse prestes a evaporar como um sonho ou ser puxada por alguma corda invisível para longe dele. tentou respirar pela boca, atônita com a atitude, podendo sentir o bater descontrolado do coração de Shoto Todoroki contra seu próprio peito.
Afastando-se devagar, ele ainda se manteve bem próximo, sem tirar as mãos dos braços e ombros dela, como se quisesse atestar o calor real de seu corpo, o cheiro familiar, o rosto dela por inteiro. Deus, como ele estava feliz! Feliz e aliviado! Toda aquela loucura de dor, escuridão e medo de antes tinham se transformado em poeira apenas pela imagem de bem e à salvo.
— Desculpa, eu… — sua voz era mais fraca que todas que já tinha escutado. Ele puxou o ar pelo nariz, alisando cuidadosamente a pele dela dos braços — Estou muito feliz. Que você esteja bem.
— Shoto… — largou o bowl com os ovos batidos em cima da bancada e não viu qualquer motivo para ficar longe dele. Aproximou-se mais um pouco, levando as duas mãos para o rosto do rapaz, que estava sem nenhum arranhão ou inchaço, mas a exaustão e vazio daqueles olhos explicavam as feridas que jamais poderia curar — Tá tudo bem. Você está seguro agora.
Shoto quase riu pelo nariz. A preocupação não era ele. O medo não era por estar de volta àquele lugar que cheirava a uma pilha de defuntos. Não era ser surrado e amarrado com cordas anti-individualidade de novo. Shoto aguentaria mais uma sessão de toda aquela palhaçada se soubesse que eles jamais tocariam no nome de de novo.
Ela estava segura. E isso era tudo que importava.
— Que lugar é esse? — perguntou ele, quase se esquecendo desse fato. Não havia barulho urbano para além das janelas. Só passarinhos e brisa fresca, muitos passarinhos.
deu um meio sorriso, como se isso já explicasse tudo.
— Casa de campo do Hawks. Em algum lugar das montanhas fora de Tóquio. O herói número 2 ganha mais dinheiro do que eu imaginei.
Shoto ergueu uma das sobrancelhas, ainda confuso.
— Por que estamos aqui?
Chegou a vez de franzir os lábios e suspirar baixinho, torcendo os dedos das mãos em um breve nervosismo.
— O Hawks… ele foi me buscar ontem de manhã. Disse que você estava com problemas. Ele estava desesperado.
— Ele foi te buscar? Mas…
— Eu não apareci na agência — ela cortou, engolindo em seco — E provavelmente não apareceria mais caso ele não tivesse aparecido na minha janela e detido os seguranças.
Shoto novamente franziu o cenho, e não soube dizer qual dos dois olhos parecia estar mais confuso.
E então, contou tudo à ele. Das partes essenciais à não essenciais, como toda a loucura de seu pai por literalmente trancá-la depois daquela noite, a promessa de levá-la de volta para a Alemanha e principalmente sobre ela ter falhas de memória como…
— Como na usina Takamaki — Shoto completou antes que ela terminasse, parecendo ligeiramente assustado — , isso… Meu deus, isso é uma loucura.
— O que foi, Shoto? — perguntou quando o viu se afastar dela e da bancada, começando uma vagarosa caminhada entre idas e vindas — Do que você…
— O seu pai. Qual é a individualidade dele?
— É parecida com a do diretor Nezu. Ele é bom com números, enxerga as situações de forma matemática, aprimora gráficos, e…
— E consegue convencer os outros muito bem, não é? — sugeriu ele, com a expressão pensativa — Ele tem o cérebro potencializado que o ajuda a visualizar melhor as situações, melhor do que qualquer outro cidadão com individualidades, então pode ser que consiga fazer isso com as mentes das pessoas. Mexendo com suas percepções.
Parecia um absurdo sem tamanho, até mesmo para Shoto, o grande herói profissional que já tinha enfrentado uma gama de espécimes das mais loucas individualidades desde que entrou no curso de heróis. , ainda parada e imóvel, franziu o cenho para ele com notória confusão e choque, repetindo incansáveis “não, não, não” direto na mente.
— Você não pode estar falando sério — disse ela, ainda que Shoto não parecesse não estar falando sério — O que ser bom com números tem a ver com toda a confusão que nos colocou aqui? Não faz sentido, Shoto. Meu pai nunca…
— Seu pai nunca te machucaria? Consigo acreditar. Mas isso não anula as coisas que ele é capaz de fazer. As coisas que nós dois vimos — Shoto se aproximou da garota perto da bancada, e sentia uma dor inconveniente no peito ao ver o semblante dela ir se transformando em algo pálido e amedrontado, mas precisava se concentrar nos detalhes maiores e mais significativos daquele caso — Ele tinha Paezoa, . E sei que tudo isso é novo, mas sabemos que não se pergunta a alguém porque tem uma coisa perigosa dessas guardada na gaveta não esperando uma resposta minimamente suspeita. Ainda não sei qual o papel do seu pai nisso tudo, mas ele…
— Não, Shoto! — deu um passo extenso para trás, balançando a cabeça repetidas vezes, reiterando a negação para si mesma — Eu preciso de um argumento melhor do que esse. De provas melhores! Não é porque meu pai, por algum motivo bizarro e desconhecido, estava guardando uma arma mortal na gaveta que devemos considerá-lo como o super vilão da história. E eu sei que a coisa da amnésia é igualmente esquisita, eu também estou com medo, principalmente porque não estou entendendo nada, mas eu…
— Ele mexeu com a minha mente também.
parou onde estava, enrugando a testa em uma explícita onda de choque.
— O-o quê?
Foi a hora de Shoto abrir a boca e contar toda a história, pelo menos as partes em que se lembrava, que já narravam um terror insano, como só ter o corpo e a consciência roubada poderiam oferecer. Quando terminou, soltou uma expiração pelo nariz, como se estivesse prendendo-a esse tempo todo, horrorizada com as coisas a que Shoto foi submetido enquanto ela descansava calmamente em sua cama.
Tudo bem que não estava exatamente calma, não depois de toda aquela confusão imprudente onde seu próprio pai, seu amoroso pai, parecia estar retirando uma máscara que ela nem imaginava que poderia existir, revelando um homem violento e assustador por debaixo dela, enquanto tentava matar o cara que ela amava. Ainda assim, ela tinha conseguido fechar os olhos depois de longas horas e dormir confortavelmente em sua cama, enquanto Shoto estava…
Ah, Deus!
Ela mal notou quando seus pés diminuíram novamente a distância entre eles, e as duas mãos voaram direto para o rosto ainda fatigado do herói, mas felizmente agora, um rosto curado.
— Eu não fazia ideia… — murmurou ela, quase em um sussurro — Quando te vi naquela maca daquele jeito, eu… Achei que não dava mais tempo. Achei que eu não ia conseguir resolver.
— Mas você resolveu — Shoto retribuiu o toque, acariciando a bochecha de — Você salvou minha vida. De novo.
Ele revirou os olhos com ironia, rindo logo em seguida, como se o fato agora não pudesse ser negado, não importava o quanto ele ainda fosse orgulhoso.
Ela permaneceu parada, encarando os olhos bicolores com o medo retornando, aceitando coisas que não queria aceitar, bisbilhotando formas na própria mente de que nada daquilo fosse real.
— Ele vai tentar de novo — murmurou com uma voz que mal se ouvia, deslizando as mãos fracas para o lado do corpo — Rush vai vir atrás de você e tentar de novo. O Rush verdadeiro dessa vez. Ele pode…
— Ele não vai tentar de novo. Não enquanto eu estiver perto de você — a revelação saiu da língua de Shoto como um chicote, e ele logo continuou antes que ela perguntasse: — O Rush falso disse algo sobre acordos milionários, e que eles são o principal motivo do porque eu e Endeavor ainda estamos vivos. Eu não tinha me atentado nisso enquanto estava lá, e depois tenho várias falhas de memória até acordar no andar de cima, mas não estou fazendo uma acusação ao seu pai à toa, . Temos uma pista e uma possibilidade sobre Hisashi. Ou precisamos urgentemente nos preocupar com outros homens ricos do Japão que estejam guardando Paezoa no fundo de alguma gaveta, nem que seja para se prepararem para uma futura guerra.
Não havia mais desespero restante para salpicar o rosto de . As reflexões de Shoto a atingiram como uma vara no meio do peito, dolorosa e violenta, mas certeira e quase científica. Havia poucos argumentos para ser usado contra, se é que havia algum. E isso era o que mais doía, era o que ela não conseguia aceitar, porque sua vida inteira agora parecia a vida de outra pessoa.
se manteve imóvel até sentir os braços de Shoto ao seu redor novamente, de uma forma agora mais calma e acalentadora, deixando claro o quanto dizer o que estava dizendo e destruir as percepções da garota sobre o pai e a própria vida, não estava sendo uma tarefa nem perto de fácil.
— Desculpa… — o herói disse com os lábios virados para a testa dela, pegando nas laterais de seu rosto — Sei o que você deve estar pensando, sei que…
Shoto parou de falar quando levantou o queixo e deixou seu nariz próximo ao dele. E, aproveitando-se da janela já aberta com os braços e com todo o sentimento atribulado de medo, raiva e frustração por todas as mentiras que pincelavam sua vida, se agarrou ao sentimento mais limpo e bonito de toda aquela tralha, o sentimento que a levou a estar ali naquele momento, o deleite que enxergou no par de olhos de Shoto assim que ele se viu novamente consciente naquela manhã, e que ele deixou claro até mesmo no momento de dor daquela maca e o beijou.
Gratidão. Paixão primitiva, primordial. A fonte de todas as intenções de para o futuro, um futuro que ela esperava construir um mundo melhor.
Shoto se deixou levar pelo beijo como nunca se deixava levar por qualquer outra coisa. Os braços dela pareciam o único lugar certo de se estar naquele dia, naquela cidade, naquele mundo! Por um momento, não existiam passados traumáticos e nem futuros nebulosos, pessimistas, ou uma linha do tempo que levava a um inevitável caminho de corpos decorrentes de uma guerra de vingança em que o herói meio a meio tinha a vida como um preço a ser pago. Não existiam perguntas e nem respostas. Nada além do cheiro de se embrenhando em suas narinas e a certeza de que o que estavam sentindo ali não tinha nada de mentira.
Movendo-se para o lado para apoiá-la na bancada, Shoto se afastou dela o suficiente para encará-la com intensidade, fazendo uma breve leitura de sua expressão para pescar permissões, consentimentos, declarações e tudo que ele mesmo já estava demonstrando por si só. O mesmo desejo salpicando os olhos bicolores. Coisas que ele de vez em quando já se via fantasiando no meio da noite e jamais teve coragem de dizer.
— Você é linda — um sussurro delicado beijou os olhos de quando ele acariciou sua têmpora, instigando uma onda elétrica por todo o seu corpo — Nunca vou deixar nada de ruim acontecer com você.
sorriu automaticamente a centímetros ridículos da boca dele. Mesmo que Shoto Todoroki não fosse Shoto Todoroki, o super herói com duas individualidades e conquistador de muitas batalhas, ela ainda acharia muito fácil acreditar nele. Em absolutamente tudo que saísse de sua boca.
Ela esticou os pés para lhe dar mais um beijo, e desta vez sentiu os dedos se apertarem com mais força na sua lombar, causando um arrepio maravilhoso em toda a extensão de sua pele.
— Mesmo que eu não mereça — Todoroki encerrou novamente uma possível sessão de amassos que nem sabia que estava desesperada para ter. Ele a encarou com a boca entreaberta, e os olhos hesitantes — Eu… Não queria que nada disso estivesse acontecendo. Queria ter te conhecido antes, queria não ser parte da tragédia que aconteceu na sua família, queria… — ele prensou os lábios, parecendo engolir a próxima frase inteira — Queria não ter que carregar o fardo de ser irmão do assassino da sua mãe. Talvez eu concorde com seu pai nessa parte; eu não deveria ter me aproximado de você. Mas…
— Não fala besteira — o interrompeu com um beijo direto. Por Deus, não era o momento para desculpas, era o momento de beijos. De sentir aqueles dedos em sua cintura de novo. De sentir várias coisas.
Mas Shoto ainda estava agitado demais para se entregar, afastando a cabeça minimamente e sorrindo com pouco caso.
— Estou falando sério — reiterou, umedecendo os lábios já inchados e sedentos dela — Se formos em frente com isso, preciso que você saiba que já era pra mim. Fui entrar nessa brincadeira de te namorar de mentira e tive o coração completamente roubado. Não está mais comigo, , e sinceramente, não o quero de volta. Se as coisas forem demais pra você em algum ponto por causa de todo o caos que existe à nossa volta e eu precisar te perder, saiba que você vai ficar com ele, querendo ou não. É a parte de mim que bate e queima, que me faz lembrar que estou vivo — baixando os olhos, Shoto agarrou a mão esquerda da garota com a sua, e imediatamente suas células ardentes remexeram dentro do organismo, esquentando levemente o contato — Fazer isso nunca foi tão fácil e tão difícil. Fácil porque desde que você tocou em mim naquela enfermaria, nunca senti o fogo queimar e fluir tanto. Ele corre nas minhas veias com agitação, com espera. Como nunca esteve antes: curado. Não vai existir nenhum trauma ou lembrança ruim que me impedirá de usar meu lado esquerdo para te proteger — e aproximando-se brevemente de uma agora incapaz de falar, Shoto disse: — E o difícil é acalmar tudo isso para não incinerar essa casa quando estou perto de você. Tudo queima, tudo explode. Você causa um incêndio dentro de mim. Eu quero você, . Eu amo você.
provavelmente deveria dizer alguma coisa, mas não tinha energia o suficiente pra isso. Em um momento, achou que estivesse de pé graças ao braço dele que a ancorava pelas costas. A bancada com o preparo do café da manhã também ajudava. Mas quem seria responsável por fazê-la voltar a respirar?
À sua frente, Shoto não parecia exatamente à espera de uma resposta. Parecia à espera de um gesto, um sinal de que poderia continuar, de que poderia levá-la para o mesmo quarto no andar de cima e ficar lá o dia inteiro, fingindo que não tinham um país inteiro para salvar.
Por um instante de loucura, ela achou que fosse começar a chorar, mas a mão quente dele ainda estava sobre a sua e se era daquele tipo de incêndio que Shoto estava falando, se encontrava na mesma situação.
Ela acordou em um estalo, e tratou de passar os braços pelos ombros dele e selar um beijo tão forte nos lábios do herói que não deixaria dúvida sobre absolutamente nada.
Mesmo assim, ainda era interessante reforçar:
— Eu também te amo — declarou ela no mísero espaço entre uma boca e outra — Muito. Antes do que você. Tenho certeza que foi antes de você.
Ele riu pelo nariz, voltando a beijá-la. Na realidade, não tinha certeza sobre o tempo que levou para aquele sentimento agora afoito ter aparecido em seu coração, mas desconfiava que uma sementinha travessa tinha se abrigado nele desde que o viu entrar na sala do pai naquele primeiro dia em que ela tinha sido chamada para a missão secreta contra Rush, mesmo que ele a tenha olhado como se olha para uma pedra no asfalto.
Bom, ela nunca teve muita experiência com garotos, então era saudável e sensato não pensar demais em alguém que claramente te olha daquele jeito.
Mas aquilo…. Aquele beijo, aquelas mãos, aquele gemido ruidoso da garganta do herói enquanto a beijava com paixão, fez entender que toda a experiência do mundo não a preparariam para aquele momento. Para aquele cara.
E ignorando o café da manhã, ela aceitou a mão estendida de seu namorado de verdade e se deixou subir até o segundo andar, sentindo-se amada e protegida, esperançosa e feliz. Tantas coisas juntas que era difícil explicar com palavras.
E Shoto, crescendo como um garoto sem expectativas ou planos para amor e relacionamentos, se viu arrastando perspectivas pessimistas e verdades absolutas cultivadas sob o teto de Enji para longe e passando a aceitar o coração puro e sereno de , alguém que agora igualmente guardava uma parte dele, alguém que tinha lhe devolvido uma parte dele.
Alguém que o regenerou.

🔥❄️


Sair dos braços de Shoto naquela manhã pálida de um dia útil qualquer foi apenas a primeira de uma série de coisas erradas e caóticas que esperavam .
Ela pensou que dormia bem a vida inteira, mas depois daquela noite, aquele bem parecia uma ofensa ao verdadeiro bem que cabia naquele mísero espaço ao lado de Shoto. A luz do Sol ainda nem tinha se levantado devidamente no céu e Shoto, dormindo sereno e tranquilo como certamente não se permitia dormir em outro lugar que não fosse em sua própria cama, parecia tão bonito e plácido que não se conteve em parar e olhar. E ficou nessa posição até suspirar e se tocar da realidade. se sentiu mais calma, e também lisonjeada com a visão.
Mas ela precisava ir.
A garota se arrastou para fora da cama devagar, vendo como Shoto ainda resmungou e balançou um dos braços cegamente pela falta do peso da cabeça de , o que a fez quase desistir da ideia, mas não pretendia demorar. Tinha sido um extremamente bom toda aquela tarde e noite que passara com ele sem se preocupar com as demais consequências, mas Shoto ainda tinha dito as coisas que disse e ela ainda sentia as coisas que sentia sobre aquilo, o que significava que precisava agir.
não estava ofendida por ver seu namorado acusar seu pai de ter ligação com o vilão que planejava destruir o país. Ah não, ela tinha plena consciência de que se chegasse ao ponto louco de perguntá-lo sobre aquilo, Hisashi não teria uma resposta não-estranha para lhe dar. Ao passar o choque inicial, percebeu que um pouco de desconfiança era necessário, sem distinção de laços ou sangue, e que a partir do momento em que eliminasse isso, começaria a descobrir alguma coisa.
Ao terminar de se vestir, o céu agora tinha a coloração roxa de hematoma. Os primeiros sons da natureza começavam a se fazer presentes, prontos para iniciar o dia, e Shoto ainda dormia tranquilamente, alheio a qualquer problema que precisavam enfrentar.
olhou para ele por um último momento e suspirou, dando as costas logo em seguida e saindo pela porta da frente.
Precisava fazer a única coisa que estava sendo capaz de fazer em toda aquela missão: criar uma solução. Há onze meses atrás, jamais pensaria que estaria fazendo algo em missão nenhuma, quanto mais algo que soava tão banal quanto seus tubos de ensaio, cultura de células na geladeira e béqueres borbulhantes no laboratório da Agência Endeavor, mas que agora pareciam tão importantes quanto o Hell Flame do herói número 1.
Antes de aceitar o convite de estadia na residência do herói número 2, Hawks olhou para a garota agarrada à maca de Shoto na enfermaria com pesar, ainda com os olhos inchados de chorar e um mundo de possibilidades assustadoras na mente sobre como ele tinha ido parar onde estava, com todos aqueles ferimentos sem explicação. O herói esperou alguns minutos e perguntou se ela gostaria de acompanhar o garoto para sua casa com todas as despesas pagas, mas ao ver que não estava respondendo a estímulo nenhum, precisou exigir que ela fosse junto com ele.
Ao menos, não faltaria nada para enquanto ela estivesse ali. Talvez um celular e todas as coisas que pudessem fazer com que Hisashi e seu dinheiro conseguissem localizá-la de algum jeito, mas no que dizia respeito a um bom teto e boa comida, isso não lhe faltaria.
Mas ela ainda tinha uma pesquisa em andamento. Uma pesquisa que poderia salvar aquela missão, salvar o país.
Não foi difícil encontrar homens a postos na porta da frente no primeiro andar, tão acordados e alertas quanto estavam quando ela chegou no dia anterior. não tinha certeza de quais ordens aqueles seguranças haviam recebido do herói de asas, mas arriscou tudo quando disse, em tom casual:
— Preciso ir à Agência do Endeavor.
E pronto. Estava entrando no banco de trás de um grande conversível executivo em menos de 5 minutos.
Isso era o que ela chamava de usar todos os meios à sua disposição, principalmente o que o poder de um herói no top 3 poderia oferecer.
Quando o carro estacionou no meio fio, as portas do edifício ainda estavam devidamente fechadas, o que entregava o quão cedo era. Mas não conseguia achar outra brecha no tempo que fosse seguro o suficiente para ela e toda a situação com seu pai para averiguar o que precisava averiguar naquele laboratório, e tinha certeza de que a mesma coisa não era segura para Shoto igualmente.
No entanto, assim que conseguiu achar a porta dos fundos e remexer na fechadura com a única chave que tinha conseguido pegar das coisas espalhadas de Shoto do hospital, ela conseguiu entrar para os corredores gelados e iluminados pela luz pálida do início do dia, e imediatamente topou com o cabelo rebelde de Nanase e sua máscara que deixava à mostra apenas os dois olhos.
— Senhorita ? — perguntou ela, franzindo o cenho. — O que faz aqui tão cedo?
engoliu em seco. Não esperava encontrar a sombra de uma única alma viva naqueles corredores naquele horário, e não tinha interesse algum em bater papo com a secretária de Endeavor naquele momento, por mais simpática que ela fosse.
— Eu… tenho umas amostras para pegar — não era uma completa mentira. As razões de se ter zanzando por aqueles corredores era conhecida integralmente apenas por Endeavor e Shoto no começo, fornecendo-a todos os recursos de que precisava para trabalhar em uma missão de nível confidencial, e toda essa aparente liberdade tinham levado-a a tomar a decisão de investigar a possibilidade de seu sangue sozinha, por mais que Shoto tenha se mostrado tão do contra quando a ouviu pela primeira vez. A essa altura do campeonato, Nanase sabia, pelo menos, que a garota tinha começado pesquisas, sejam elas quais fossem. E sabia que se os resultados fossem promissores assim como seus cálculos, toda aquela loucura poderia terminar antes mesmo de começar.
Com isso, não foi difícil para que Nanase levantasse uma sobrancelha de compreensão e assentisse com a cabeça.
— Ah, é claro. Mas seus horários no laboratório são sempre fixos e avisados com antecedência. Eu me esqueci de anotar os novos? — Nanase parecia genuinamente preocupada com o fato. , procurando um modo de escapar, riu pelo nariz e disse:
— A ciência não escolhe hora pra me dar resultados, Nanase. Infelizmente, trabalhamos com tempo de estufa e pipetas, então é um pouco incômodo pra mim, como pode ver. Mas se você quiser me acompanhar pra ver junto comigo, garanto que posso te explicar cada passo do nosso experimento.
sorriu com gosto enquanto a secretária abria uma amostra de dentes, sem um pingo de interesse por seja lá o que a garota estava mexendo naquelas coisas.
Tinha sido a reação esperada. achou que Nanase a deixaria ficar se fosse intimada a ajudá-la de alguma forma, o que a fez balançar a cabeça e dizer:
— Tudo bem, preciso ir preparar a papelada para o chefe. Divirta-se com suas… coisas.
E então já estava saindo, deixando e seu suspiro aliviado para trás. Por mais que soubesse que Nanase não entenderia alguma coisa de suas fórmulas para dar com a língua nos dentes para Endeavor mais tarde, ainda não seria legal ficar sob os olhos dela. sabia que soava com bastante estranheza, mas no fundo, Nanase também não queria se meter com a namorada de seu outro chefe.
E assim, aceitando que o tempo estava corrido, ela apressou o passo e correu para o laboratório.

🔥❄️


tinha a mesma expressão de espanto há quase 1 hora.
Dentro dos tubos delgados de vidro, o líquido levemente azulado era incrível. Com apenas alguns litros de seu sangue, retirados em um revezamento inteligente distribuídos em vários dias e horários diferentes, agora tinha em mãos os primeiros protótipos de um soro neutralizador de Paezoa, uma substância mortal que servia de base para mudanças celulares tão profundas a ponto de transformar um humano normal em uma criatura assustadora, mas que tinha certeza – uma certeza maluca e sem nenhuma prova –, que o processo poderia ser reversível. Que nunca mais precisaria cruzar com o tipo de monstro que encontrou na enfermaria naquele dia. Ou com algum corpo totalmente dilacerado em qualquer outro lugar.
Um pouco mais feliz, ela começou a reunir as pequenas amostras em uma estante, fazendo planos internos sobre quando poderia começar as testagens, de quantos ratos precisaria, quanto tempo levaria e quais seriam os possíveis resultados, ignorando parcialmente que sua diversão no laboratório estava sob circunstâncias muito diferentes de quando tinha começado suas pesquisas. A primeira delas era que, teoricamente, deveria estar entrando em um avião para a Europa naquele exato momento. E a segunda era que não havia como iniciar uma agitação tão grande no laboratório sem que o CEO soubesse do que se tratava. E levando em conta de que Endeavor poderia ter a mesma reação ou até pior do que Shoto, não tinha boas expectativas sobre a continuidade de seu projeto.
Contudo, antes que começasse a desanimar ou a preparar um plano em que ela conseguisse entrar e sair quando quisesse do laboratório e tomar notas adequadas dos dados de seu soro sem causar nenhuma alarde, uma voz grossa e autoritária surgiu no espaço amplo de paredes brancas, dizendo um alto e sonoro:
— Bom dia, .
se virou com um susto, sendo engolfada imediatamente pelo calor natural emanando do homem, mesmo sem as chamas.
— Bom dia, senhor Todoroki — ela tentou fazer a voz soar menos baixa e fraca. Discretamente, deu um passo para trás até encostar o quadril na bancada, bem na frente da pequena estante com os tubos de ensaio — Aconteceu alguma coisa?
Parecer casual era a primeira reação para não parecer suspeita, ainda que não soubesse fingir muito bem. Ela segurava um pequeno caderno de notas, que foi fechado instantaneamente assim que ele se aproximou mais, e se preparou para perguntas de todo tipo, como por exemplo: “Por que Nanase me disse que você está aqui desde às 5:30 da manhã?”,
O que há de tão importante para se ver qui esse horário em um final de semana? Você encontrou alguma coisa?”, ou a pior delas:
Você sabe onde está o Shoto?
No entanto, nenhuma dessas coisas saíram da boca de Endeavor. Na verdade, quando relaxou mais um pouco e encarou devidamente o rosto do herói, ele parecia hesitante e desconfortável, trocando o peso de uma perna para outra enquanto travava o maxilar em uma expressão dura.
Era um tipo de expressão que ela nunca tinha visto nele.
, eu… — ele começou, mas logo parou. franziu levemente o cenho, acenando com a cabeça em um pequeno “sim?” — Eu sei de tudo. Sobre o Toya. Digo… Sobre o Dabi.
Por um momento, uma onda de alívio tomou conta de . Não pelo fato do que Endeavor sabia, mas do que não sabia. E principalmente, naquele instante específico, a deixou feliz não ter recebido uma exigência do homem sobre como andava sua agenda no laboratório e, repetindo: por que ela estava ali em um horário de portas trancadas?
Mas a dor nos olhos dele a trouxe imediatamente para a realidade, fazendo-a se esquecer de toda a tecnologia e ciência para que se lembrasse de um fato doloroso como a morte de sua mãe, um fato excruciante e imutável, não importava quantos equipamentos de ponta tivesse.
Os ombros de cederam e um pequeno suspiro foi a única resposta que foi capaz de dar.
O herói número 1, já parecendo perturbado o suficiente, talvez ainda mais perturbado do que Shoto, se aproximou mais um pouco da garota, abrindo e fechando a boca algumas vezes antes de falar:
— Eu não sei o que dizer. Quando fiquei sabendo, eu juro… Achei que eu nunca mais iria ser capaz de te olhar, . De falar com você, como estou fazendo agora. E sinceramente, não sei como você ainda está aqui, olhando para mim, trabalhando, como aceitou essa missão… — a voz de Endeavor encontrou uma falha muito grande para continuar. Uma de suas mãos se ergueu no ar, prestes a tocar os ombros de , retornando logo em seguida. A garota, ainda um pouco atônita, igualmente não sabia como responder. Aquela verdade ainda não tinha sido digerida completamente; ela ainda estava ouvindo o discurso de Hisashi, ainda ouvia as lamentações de Shoto, ainda ouvia a própria voz da mãe dizendo coisas banais como “vamos tomar um sorvete?” em uma tentativa insana de sua mente de manter sua imagem ainda viva dentro de . Mas a questão não eram os seus sentimentos naquela hora; ela teria tempo de processá-los mais tarde. A questão era…
Como ele soube disso?!
— Senhor, eu…
— Não, eu entendo — interrompeu ele, balançando uma palma no ar — Talvez você tenha pensado nos sentimentos de Shoto, ou até nos meus, porque saber que tem um membro da família preso no Tartarus não é algo a se gabar, mas… Sei que Toya e seu histórico já atingiram várias pessoas dessa cidade, sei que ele é perigoso e não vai voltar a ser um homem de bem, mas eu não imaginava que ele tinha feito… isso com você. Com a sua família. Não tenho o menor direito de ficar contra o seu pai naquela decisão.
— Senhor, não é o que está pensando — tentou dizer com cuidado, e viu Endeavor balançar ainda mais a cabeça, rejeitando previamente qualquer tentativa dela de dizer o tão temido “está tudo bem” — Eu não sabia da verdade quando aceitei sua proposta. Não fazia ideia de que meu pai…
— Isso é pior ainda — Endeavor trincou os dentes audivelmente, gesticulando com um dos braços — Você soube da verdade logo depois e ainda está aqui. Aqui, . Eu… não sei o que pensar sobre isso. Não sei como posso te compensar.
Um vácuo de tempo infinito e silencioso se passou enquanto Endeavor, o grande herói número 1, dono de uma força surpreendente e da melhor agência de heróis do país, ficou ali, estático enquanto olhava para , uma estudante curiosa mas uma estudante curiosa que amava seu filho mais novo e que, obviamente, também era amada por ele, revelando algo que ele só havia revelado em uma cama de hospital há 7 anos atrás, quando o Japão estava à beira do caos por causa de Tomura Shigaraki e ele se viu fraco e impotente pela primeira vez em muito tempo por causa de um motivo sólido:
Família. A única coisa capaz de desestabilizar a fortaleza de fogo de Enji Todoroki era a sua família.
E, por mais que tenha passado os últimos anos em uma intensa tentativa de remediar seu passado catastrófico como pai, ouvir sobre o crime de Toya o fazia se sentir tão culpado quanto. Talvez até mais.
sentiu um grande pontada de compaixão por Endeavor, aproximando-se discretamente dele, esquecendo do que estava tentando esconder para dizer a ele que as ações de seu filho mais velho eram apenas de seu filho mais velho, e que não devia sentir nada além de alívio pelo assassino de sua mãe estar preso atrás das grades como deveria, afastado de toda uma sociedade que não poderia mais fazer nenhum mal. Ela ergueu o queixo e pensou em dizer essas e mais outras coisas, mas não teve a chance de emitir uma única palavra, porque atrás dos ombros largos do herói, as paredes e lâmpadas estremeceram quando um estrondo agudo atingiu algum ponto cego ao longe deles, e abafou um grito de susto.
Endeavor imediatamente virou a cabeça para trás, fazendo brotar as chamas na palma das mãos grossas em preparo para um ataque. Em um segundo, a gritaria se iniciou pelos corredores, junto com uma cortina de fumaça e poeira que colocou as pessoas em total correria.
— O que foi isso? — disse para si mesma, encarando a agitação pelas janelas de vidro. Endeavor resmungou um “não sei” e rapidamente seguiu para a porta, entrando no corredor empoeirado e agora quase abarrotado de pânico.
correu até ele, esperando ver a causa da explosão, mas quando o barulho do alarme de incêndio disparou junto com uma sequência de sons grotescos como concreto sendo despedaçado, berros de terror e rosnados animalescos, ela soube que algo a mais estava acontecendo.
E o algo estava chegando perto, dobrando o final do corredor estreito, causando tremores no chão e nas paredes antes que a figura de um homem baixo com jaleco branco aparecesse correndo, com olhos saltados de terror quando gritou:
— Socorro! Um herói, socorro! Me ajud-
E ele não teve tempo de completar, porque garras afiadas e cortantes, saindo de punhos extremamente grandes e grossos, enfiaram-se em suas costas, atravessando seu tronco até vazarem pelo outro lado, respingando sangue nas paredes brancas e roubando o último fôlego do funcionário.
O pavor se infiltrou no cérebro de ao mesmo tempo em que sua garganta liberava um grito.
Tudo aconteceu rápido demais.
Antes que pudesse avaliar a situação, teve o corpo empurrado para dentro do laboratório novamente pelas mãos grandes e pesadas de Endeavor, que não disse nada além de “se esconda!” antes de fechar a porta e ser atacado por aquele… Aquela… coisa!
Tremendo da cabeça aos pés, arregalou os olhos para o vidro amplo da janela ao lado da porta, enxergando algo que a deixou tão aterrorizada que as pernas viraram chumbo e o coração espancou seu peito com o mais puro medo.
Um monstro, com pelo menos 2 metros e meio de altura, com garras afiadas do tamanho de adagas, dentes brilhantes como lâminas organizados dentro de uma boca gigante que comportaria uma cabeça humana e um torso robusto duro como titânio estava indo para cima de Enji com a fúria cega de um ser irracional. Um ser envolto com ódio, sede de sangue, carne putrefata e completamente criado para a destruição.
Nomus.
não precisou de muito tempo para saber o que eles eram. Quando viu as chamas de Endeavor queimarem no Punho Flamejante direto para o corpo do bicho, ela ouviu os guinchos inumanos de dor e incômodo escaparem da besta, junto com filetes de líquido roxo que atingiram o piso e o vidro da janela, corroendo a superfície sólida tal qual apenas Paezoa era capaz de fazer.
Um só golpe não era o bastante para derrotá-los. E os gritos e demais sons grotescos que escapavam da garganta dos monstros soando ao redor, revelavam o verdadeiro caos que tinha se instalado em questão de minutos.
Uma invasão. Um ataque em massa. Tudo que e sua missão secreta estavam tentando prevenir.
A porta do laboratório tremeu e quase abriu com uma tentativa brusca de arrombamento. conteve mais um grito, se esforçando para mover as pernas e tentar pensar no que deveria fazer. O vidro lá fora agora mostrava fogo, ácido e sangue, com Endeavor recebendo mais de um ataque por vez, o que o deixaria claramente cansado em algum momento e não dava para saber se alguém havia conseguido emitir um chamado de emergência para mais heróis.
teve um estalo. Mais heróis.
Mais um empurrão brusco na porta agora tinha deixado um grunhido animalesco entrar, e a garota finalmente moveu as pernas, correndo até a bancada de seus experimentos e agarrando o mesmo caderninho que tinha em mãos há alguns minutos atrás, folheando as páginas com a caligrafia nada caprichada, passando por anotações rotineiras sobre horas, dados, datas finais de publicações, datas de almoços e consultas até chegar em um número de telefone que tinha recebido há menos de 2 dias e que foi orientada a usá-lo em caso de extrema emergência.
Aquela situação se parecia muito com uma.
Ela puxou o bloco e correu novamente até o telefone fixo preso na parede ao lado da janela oposta, que mostrava o céu agora se tornando cada vez mais pálido e um pouco amarelado. esperava que o número funcionasse sem um telefone móvel, e que, quaisquer pessoa do outro lado da linha, entendesse a situação em poucas palavras.
Com os dedos trêmulos, ela discou os números relativos à grande ajuda no teclado do telefone, indo o mais rápido que conseguia, olhando para a porta e as primeiras linhas de rachaduras na madeira, mostrando o quanto elas não aguentariam por muito tempo.
Três toques arrastados e infinitos soaram até que uma voz robótica soasse do outro lado da linha:
— Emergência?
mal ouviu a palavra. Captando todo o ar do mundo nos pulmões, ela respondeu em meio à uma voz agitada e rouca pelo medo, correndo contra o tempo:
— Alô! Por favor, estamos sob ataque, o Endeavor não vai aguentar por muito tempo, os Nomus estão entrando por todos os lados, não tenho certeza da quantidade, temos baixas entre funcionários, temo-
A voz de foi interrompida por mais um grito quando uma sombra gigante obstruiu toda a luz ao lado de seu rosto, e vidro se espatifou para dentro do laboratório quando as garras cortantes do bicho perfuraram a janela, sustentando o corpo esguio e forte no ar, há pelo menos 15 metros do chão.
não o viu chegando. Não havia absolutamente nada no céu. Foi como se aquilo tivesse literalmente escalado as paredes, fincando suas unhas mortais em cada bloco de concreto do edifício, avançando e avançando até…
Até matar todos. Até matar Endeavor. Ou até que ele ficasse fraco o bastante para que Rush terminasse o serviço.
A besta soltou um berro agudo do outro lado da janela e automaticamente largou o telefone, deixando as demais palavras pela metade, inundando-se novamente do medo e do pavor que travaram suas pernas há pouco. Mas a porta ainda estava sendo esmurrada, ela não fazia ideia do que estava acontecendo no corredor e a janela externa não duraria mais dois minutos à medida que o corpo do Nomu pressionava ainda mais o vidro.
Ela estava cercada. Completamente.
nunca tinha visto um Nomu fora dos livros de história, e não pensou que Rush os recriaria com tanta precisão, mas, reparando em suas formas por dois segundos onde a mente dela tinha parado, percebeu que eles eram tudo que haviam dito por aí. Dito, não mostrado. Eram tudo o que relatos amedrontados e traumatizados contavam, incorporações vivas e assustadoras do horror e agonia, prontos para matar e dilacerar, tornando quem sobrevivia a tal interação uma exceção notável.
Os alunos da 1-A de 7 anos atrás, por exemplo. A turma de Shoto Todoroki. Os grandes heróis do ranking daquela época.
Eram dessas pessoas que deveria ter anotado nome e telefone no bolo de informações de seu caderno a partir do momento em que deduziu os planos de Rush, mas o tempo de pensar e se martirizar tinha passado. Agora precisava pensar em como não seria morta.
Só que, da posição em que estava, era praticamente impossível que saísse daquele lugar viva. Ainda que cultivasse algumas poucas habilidades de combate, provenientes das várias aulas práticas e treinamentos da U.A., não fazia trabalho de campo. E certamente não daria conta de duas criaturas com força imensurável que não a dariam tempo de pensar.
Sentindo o nariz e olhos arderem, ela respirou fundo com os lábios trêmulos, encarando as rachaduras do vidro como um anúncio de seus últimos minutos de fôlego. Imediatamente, a garota pensou em Shoto, e em como não conseguiria se despedir dele. Como ele, mesmo ainda um pouco fraco, congelaria a cidade inteira até que encontrasse Rush e os demais, descartando qualquer empatia ou misericórdia que não funcionava mais quando se tratava de vilões megalomaníacos.
não queria vê-lo desse jeito. Algo dentro dela se contorcia, berrava por uma ação, implorando para que ela não desistisse naquela hora. Não era hora de pensar e se martirizar. Se morreria, pelo menos morreria tentando alguma coisa, tentando…
Os músculos dela se afrouxaram. Mais uma epifania atingiu-a como um soco. Havia algo que podia fazer, uma última e única tentativa que acarretaria em sua morte caso não desse certo, mas não havia tempo para pensar nisso. Movendo-se de imediato, se lançou para a bancada de antes, puxando sua mochila jogada ao lado da cadeira e, com apenas uma mão, agarrou a estante de tubos de ensaio com suas amostras e os jogou para dentro da bolsa, deixando apenas um deles em cima da superfície de pedra. A sua tentativa.
Em seguida, puxou a primeira gaveta abaixo da bancada, retirando de lá uma pequena seringa descartável dentro de um saco plástico, desfazendo-o o mais rápido que seus dedos estremecidos permitiam, ouvindo o “crac” do vidro reforçado da janela ir se desfazendo cada vez mais, apesar de que seria mais provável que o Nomu da porta entrasse primeiro.
De uma forma quase insensata, respirou fundo, implorando a si mesma para que parasse de tremer tanto e conseguisse puxar o soro para a seringa. Pequenas gotículas de suor desciam por sua nuca, e ela precisou apoiar o pulso no mármore da bancada para conseguir manter o tubo estável, ao mesmo tempo em que inseria a agulha do lado de dentro e sugava o líquido para cima.
Foi no exato momento peculiar em que a última gota do antídoto foi recebido pela seringa que o estouro aconteceu. Na entrada, a porta de madeira branca foi violentamente arrombada e jogada até a outra extremidade da sala, e um monstro louco entrou bufando pela abertura agora escancarada.
Demorou apenas um segundo para que ele enxergasse , paralisada com o susto da invasão repentina.
Mas agora seu cérebro estava mais ligado. Àquela altura, já tinha aceitado seu possível destino e estava determinada a fazer o que fosse preciso para testar sua última teoria, uma que Shoto conhecia muito bem, e que, caso funcionasse, ele poderia pegar o restante dos tubos e entregá-los nas mãos de cientistas confiáveis, que replicariam a fórmula e salvariam muitas vidas. Infelizmente, Shoto talvez precisaria pegar os tubos ao lado do corpo morto e estripado de , mas ela esperava que ele entendesse e continuasse.
O monstro rugiu em sua direção, voando para cima dela em meio à fúria transtornada, esbarrando e destruindo vidrarias, mesas e cadeiras como se não passassem de peças de Lego, os olhos grandes e loucos focados apenas na figura humana parada na sala, empunhando uma agulha patética como uma arma, tentando desesperadamente não chorar.
Atrás do monstro, não se via mais o fogo de Endeavor ou quaisquer presença de outros heróis. A janela de vidro rangeu de novo, mas tinha ossos, músculos e pele enrijecidos demais para se importar, aguardando a coisa que se aproximava, apertando a seringa nas mãos com tanta força que seria capaz de quebrá-la.
Em um piscar de olhos, ela viu o momento em que o braço longo e fétido se avolumou em sua direção, e tentou manter a atenção em qualquer ponto de pele do pescoço dele, onde seria um ótimo lugar para a perfuração. No entanto, a coisa era mais rápida do que ela havia previsto. Um grito agudo de medo queimou sua garganta quando ela sentiu as mãos fortes em torno do corpo, e os pés serem impulsionados para cima a uma velocidade vertiginosa.
se preparou para morrer. Viu a si mesma sendo devorada por aqueles dentes, tendo braços e pernas separados do tronco e o cérebro engolido como prato principal. Viu um cenário de sangue e dor tão ofuscante que ela seria grata apenas se tudo acabasse rápido.
Mas a grande aflição e tortura não vieram. A feição hedionda e assassina da criatura se anuviou de repente quando trouxe o rosto de para mais perto, tão perto que ela podia ver enormes veias grossas e arroxeadas contornando a pele lotada de músculos, e fez algo que ia contra todos os cenários mortais que a mente de fantasiou.
A criatura inspirou seu cheiro. E, logo depois, afastando-a um pouco para a frente de seu corpo, abriu a enorme boca não para despedaçá-la, mas para fazer um som, emitindo um ruído grave e quase ininteligível, soando algo parecido como:
— Protegida. Cheiro. Da. Protegida.
Se não estivesse tão apavorada e com o coração batendo nas orelhas, ela poderia se dar ao luxo de achar aquela atitude sinistra, e talvez até mesmo dizer alguma coisa em resposta, já que seu corpo ainda estava enclausurado no meio daquelas garras e o hálito quente e podre da boca do monstro a atingiam como fumaça fumegante, alastrando-se em sua pele até vibrar de forma rápida, porém real no tornozelo antes vítima de Paezoa.
O medo e a incompreensão bagunçaram as percepções de até que se lembrasse da seringa nas mãos, e ela estava prestes a ignorar a proximidade da besta tão perto, que mesmo estando em um estado estranhamente catatônico e não demonstrasse intenção de um ataque, ainda não era tranquilizador e muito menos seguro e atingi-lo com a ponta da agulha quando uma outra explosão aconteceu a metros de seus ouvidos.
O vidro havia estourado, liberando a segunda besta para dentro. sentiu os braços do primeiro se mexerem e chacoalhar seu corpo por inteiro, esquecendo-se dela, ou esquecendo-se que ela era a protegida. No entanto, antes que o segundo sequer se virasse em sua direção e ela ser partida em duas pelas criaturas, um estampido reto e limpo surgiu da porta, atingindo o monstro da janela bem no pescoço, fazendo-o urrar e guinchar de dor quando impulsos elétricos pareceram tomar todo o seu corpo, derrubando-o no chão como uma marionete.
A primeira criatura abriu os dedos, soltando , que despencou no chão com um baque surdo enquanto ela se virava para a direção do som. Antes que tivesse a chance de tentar se levantar e correr para o mais longe possível, paralisou novamente todos os ossos do corpo, desta vez pela visão terrivelmente nítida da pessoa parada ao batente, com as mãos unidas na frente do corpo enquanto segurava uma arma que vibrava de energia e ainda expelia um pouco do líquido arroxeado quando gritou para o monstro de pé, furioso:
— Saia de perto da minha filha, seu desgraçado.


Parte 19 – Do ácido ao sangue

Agora Shoto parecia um pouco arrependido por ter negligenciado o café da manhã.
Não que fosse uma escolha muito inteligente escolhê-lo quando se tinha o cheiro, a boca e o corpo de enroscado no seu por horas e horas, sem quaisquer preocupações sobre o mundo lá fora e outras necessidades fisiológicas. O que importava era ali, dentro daquele quarto e daquela casa distante que ele se certificaria de agradecer muito intensamente à Hawks quando o visse.
E, claro, por ter buscado e garantido que ela ficasse segura no seu tempo de inconsciência. A situação de sua namorada com o pai devia ser desconhecida e um tanto perigosa no momento, mas Shoto não deixaria absolutamente nada perto de ruim acontecer com . Era o mínimo que podia fazer depois de todas as declarações profundas que havia soltado no dia anterior. E que repetiu muitas e muitas vezes nas últimas horas.
Mas uma luminosidade familiar se esparramava pelas suas pálpebras fechadas, acordando seu cérebro e todo o resto do corpo, avisando que o conto de fadas tinha acabado e ele precisava voltar a ser o homem que salvava o mundo.
Antes de abrir os olhos de vez, Shoto esticou o braço sobre o lençol bagunçado, preparando-se para murmurar para que também acordasse. Mas o lado oposto da cama estava frio e vazio, e Shoto se sentou rapidamente, observando aquela ausência com um sentimento que ele ainda não sabia dar um nome, mas que se apertou forte e sem sentido.
Falta. Saudade. Seja o que fosse, era incômoda e ruim. Ele teria de dizer à que, com uma noite, já tinha estragado-o pelo resto da vida.
Certo de que ela deveria estar batendo outros ovos e tentando reaproveitar o que não conseguiu terminar do café da manhã do dia anterior, Shoto buscou as roupas pelo quarto, bagunçou o cabelo em uma tentativa de arrumá-lo e escovou os dentes no banheiro grande da suíte tomada por madeira do chão ao teto. Parecia uma grande casa de pássaro, se fosse ser sincero – uma grande referência certeira. Mas não tinha problema algum. Se o mundo não estivesse ruindo lá fora, ele ficaria trancado naquele cômodo com por 1 semana inteira.
Minha nossa, quem diria que esse tipo de pensamento cruzaria a mente de Shoto Todoroki algum dia? Ele estava literalmente entregue.
Pena que o mundo ainda estava acabando. E ele soube disso quando escutou o apito intenso e as batidas em uníssono na porta do quarto, com gritos variando em vocalização humana e vocalização de ave, fazendo um escândalo sem igual antes de, em um estouro alto, abrirem a porta com violência.
— Todoroki! — A voz rugiu por entre as paredes enquanto Shoto corria de volta para o quarto, percebendo não uma, mas duas presenças à sua frente – e uma delas não era exatamente uma pessoa.
— Tokoyami? — perguntou o herói ao outro, com um olhar esquisito e ainda assustado. — O que está fazendo aqui? Como entrou aqui?
não o tinha visto passar pela porta?
— Seu pai está tentando falar com você, toda a Central, e ninguém estava conseguindo! Graças ao Hawks, eu soube…
— O que aconteceu? — Shoto sentiu a garra de gelo da antecipação descendo pela sua espinha, trazendo-lhe o nervosismo padrão de uma situação que não gostaria de escutar. Imediatamente, o garoto se lembrou que tinha um celular e tinha um pager para chamados de emergência, e que não fazia ideia de onde estava nenhum dos dois.
Tokoyami engoliu em seco por meio segundo, certamente se preparando para lançar más notícias.
— Os Nomus. Eles invadiram a Agência, cercaram o perímetro, entraram por todos os cantos…
— Quê? — Shoto imediatamente arregalou os olhos — Nomus atacaram? E o Endeavor, e o…
— Eles estão lutando. Shoto, não é só isso. A sua…
A voz do herói híbrido falhou, e até mesmo Dark Shadow se encolheu ao lado do dono. O cérebro de Shoto entrou em um estado frio de imobilização até que se aproximasse do antigo colega com os dentes trincados, o fogo interior subindo e queimando como nunca queimou.
— Onde. Está a ? — a pergunta foi feita em uma voz que mal se ouvia, porque ele precisava controlar tanto pensamentos quanto seu próprio medo, que insistia em fornecer cenários que ele tentava não pensar quando o assunto era . Os olhos bicolores de Shoto faiscaram em um brilho violento. Tokoyami respirou fundo.
— Parece que ela apareceu cedo para ir ao laboratório, e… E não sabemos de mais nada. Mas o lugar está infestado deles. Principalmente…
Shoto não esperou. Sequer pensou no que estava fazendo. Nem precisava mais questionar como o colega tinha entrado na casa aparentemente segura de Hawks sem que visse, porque ela não estava ali. E não estava ali há um bom tempo – o lado frio do colchão ao seu lado denunciava o fato escancarado. Laboratório! Meu Deus, !
Um pavor crescente se instaurou no peito de Shoto como uma bigorna. O peso de um edifício inteiro.
Uma chama quente e flamejante já queimava tanto na palma esquerda quanto nos olhos quando ele deixou seu refúgio.

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Quando Rush surgiu, Enji Todoroki tinha 17 anos. Ele ainda não era Endeavor e não tinha um nome definido de herói, mas sabia de uma única coisa:
Ele seria o próximo herói número 1. Ele superaria aquele cara chato e desnecessário que se autodenominava Símbolo da Paz, All Might. A origem de toda a ganância e inveja de Enji, transformando-o em um homem incapaz de ser bom, de ser amável, de ser um pai e marido decente.
Portanto, quando o Japão era assolado pelo super vilão há quase 30 anos atrás, Enji não podia apenas abatê-lo. Não podia apenas deixá-lo no hospital. Ele precisava fazê-lo desaparecer. Precisava matá-lo.
Quando pensou que tinha conseguido esse feito na grande batalha sangrenta na Center Gai, a polícia passou os próximos 30 dias procurando por ele. Na surdina, foram 2 anos. A polícia de Tóquio e a polícia de todo o país. Porque Rush não era algo para se manter em dúvida – não podia constar nos registros como um “será”. Ele tinha que estar morto. E Enji, quando ouviu as autoridades dizerem que morto era a única possibilidade plausível para o homem depois de ser atingido tantas vezes pelo Hell Flame, ficou verdadeiramente em paz por ter livrado a sociedade de um monstro. E, claro, ter alcançado um novo patamar no ranking dos heróis, chegando ao top 10.
Mas Rush, com o que restou de si mesmo em algum canto escuro e negligenciado pelas autoridades, jurou vingança plena sobre aquele que o derrotou. Que atacaria toda a sua casa, dizimaria suas gerações e não iria embora de novo antes de conseguir o que quer.
Yuma Nakasato levou anos para reaver o seu corpo. A maioria de seus seguidores na época tinham dado no pé, e os que restaram, morreram no processo perigoso e cansativo de ajudá-lo a remexer em um produto que deveria ter sido considerado extinto, um produto que ele mesmo não gostaria de entrar em contato, mas era como se diz: situações desesperadas pedem medidas desesperadas.
Ele precisava de Paezoa. Ou poderia dar adeus ao restante de vida que morava em sua própria deformação.
Mas ninguém havia dito que conseguir aquele protótipo era tão difícil. Rush acreditou que ainda existia um pouco na antiga usina Takamaki, o lugar responsável pela criação do ácido, o lugar de sua primeira morte, o lugar que o tinha criado! Sangue e ácido venenoso corriam pelas veias do vilão, e ele acreditava que ainda estava vivo exclusivamente por causa dele. E descobrir a fórmula de recriar aquilo que primeiramente lhe deu a vida não deveria ser tão complicado, já que ele sabia que não era atingido pela radioatividade do lugar, que afastava as demais pessoas da antiga usina mal assombrada nos arredores de Tóquio.
No entanto, quem acreditaria que mais pessoas estavam interessadas no produto?
Alguém que havia, inicialmente, cercado a área. Um homem rico e curioso, pacientemente à espera da desfiguração do antigo vilão, como um povo hebreu à espera do Messias.
Eu nunca poderia derrotá-lo sozinho”, disse aquele Hisashi , um homem jovem e meramente louco que foi o primeiro a ser avisado quando sirenes e outros barulhos indicaram que sua usina tinha sido invadida. Sua! Invadida por um homem quebrado, sem forças para lutar e muito menos para falar quando perguntaram o seu nome.
Bastou um olhar atento de Hisashi para que soubesse quem ele era. Em uma forma diferente, em outra configuração da cabeça aos pés, mas aquele era realmente o grande Rush, o vilão que havia chegado mais perto de matar Endeavor.
O homem que, com alguma ajuda, poderia fazer a mesma coisa de novo. Pra valer dessa vez.
Essa tinha sido a primeira dúvida do empresário. “Você ainda consegue derrotá-lo?
Rush, velho e destruído, tentou responder: “Estou trabalhando pra isso.”, ainda que suas feridas e seu corpo destroçado não passassem a menor confiança do progresso. Hisashi avaliou a situação em questão de segundos. Seu grande cérebro era bom nesse tipo de coisa: considerar possibilidades, traçar planos de A a Z e colocar em prática com eficiência.
O estado físico de Rush não o trazia muita esperança, mas logicamente falando, o antigo vilão só estava precisando de um pontapé especial.
Não que te importe, mas preciso me vingar”, disse ele com firmeza. “Endeavor e sua família tiraram tudo de mim e ele merece pagar pelo que fez. Caso queira matá-lo com seus próprios meios e motivos, fique à vontade. Esperei durante todo esse tempo que você retornasse. Sabia que não estava morto, e sabia que tentaria reaver Paezoa para construir seu corpo novamente. Sei que você não tem um plano sólido para sua matança, mas posso te ajudar com isso. Posso te ajudar com o que precisar se me prometer que matará o Endeavor.”
Rush ficou sem palavras por um momento longo. Ele era um morto vivo ambulante. Tinha sido abandonado por parceiros e não tinha mais aliados; sentia que estava morrendo mais a cada dia que passava. Nada em seu corpo o dava alguma esperança de conseguir viver por mais 1 ano, quanto mais 20, tempo necessário para recuperar toda a sua antiga glória.
Mas Yuma queria matar Endeavor mais do que tudo. Queria voltar a ser Rush, queria o pânico nos olhos da população mais uma vez. Queria mais do que tudo.
E na situação em que estava, por que iria recusar uma ajuda? Aquele homem estranho e com poder aquisitivo queria a mesma coisa que ele, seja lá qual fosse a tal coisa que Endeavor o tinha tirado. Não tinha a menor importância.
Foi assim que a parceria improvável começou.
Foi assim que Hisashi se aliou a um dos piores vilões da história do Japão.
Foi assim que ele, diligentemente, financiou pesquisas clandestinas para a fabricação e uso de Paezoa para um ataque em massa, um desejo de Rush, em troca de que ele e sua família ficariam bem.
Em troca de sua filha ser poupada de toda destruição.
E até mesmo Rush, que não temia ninguém, sabia manter uma palavra quando percebia que um homem estava realmente falando sério.
Depois de todos esses anos em laboratórios, com dor e tortura, refazendo pedaços esfolados, órgãos putrefatos e individualidades que não existiam, Rush estava de volta, mais forte, mais temido e mais determinado a terminar o que começou há 20 anos.
Começando por Enji Todoroki.
Começando pelo seu império.
Originalmente, o plano foi adiantado porque Shoto Todoroki, aquele fedelho nascido de Endeavor, se recusou a morrer como foram as ordens de Hisashi, naquela cabana escura onde jamais achariam o seu corpo. Se recusou a ceder às amarras anti-individualidade e ainda destruiu tudo ao redor, inclusive o clone de Rush que servia apenas para que o próprio não gastasse suas forças até precisar enfrentar Endeavor novamente.
Foi a gota d’água. O garoto tinha descoberto tudo. Era hora de agir.
E Rush sabia exatamente onde Endeavor estava. E como iria acabar com ele.
Quando pisou naquele saguão agitado daquela manhã, ninguém o reconheceu de imediato. Ninguém sabia quem era o homem imponente usando vestes negras e cabelos cor de areia, com cicatrizes leves pelo rosto que não foram arrancadas com os diversos procedimentos. Não havia como saberem – havia tantos gritos, tanto sangue e tantas pessoas morrendo. Sendo dilaceradas. Como reparariam nele? Seus Nomus estavam fazendo um show e tanto.
Quando se desvencilhou de pessoas e corpos jogados pelo chão, ele seguiu o cheiro das chamas já gravada em seu cérebro, o novo cérebro que respondia a menor das evidência de Endeavor e levava o vilão até ele, localizado em um cômodo mais abaixo, mexendo-se e se agitando como ele esperava, se cansando mais rápido, se preparando para receber o golpe fatal que Rush estava louco para dar.
Ele o encontrou na curva de um corredor, há poucos metros da entrada, onde o corpo de um Nomu cruzou o ar na direção do Rush recém chegado, um corpo que foi partido ao meio pelas mãos do vilão antes que o atingisse. Quando a besta foi dilacerada, a visão se abriu e de repente Endeavor paralisou na outra extremidade, arregalando os olhos pela aparição.
O herói número 1 parou de correr imediatamente. Dava para perceber que tentava chegar à entrada do edifício, que tentava sair para buscar ajuda de outro colega herói, que tentava salvar as vidas que via pelo caminho. Mas muitas pessoas já estavam mortas. De que adiantaria aquela correria toda?
— É você, seu desgracado — Endeavor trincou os dentes com fúria. Sangue escorria da lateral de sua testa. Outros ferimentos deviam estar espalhados sem que ele estivesse sentindo no momento por causa da adrenalina.
— Enji Todoroki — disse o vilão, com gosto — É um prazer revê-lo no seu último dia de vida. E de ser o responsável por isso, é claro. Você não perde por esperar.

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Hawks pousou no capô do Volvo assim que o carro estacionou na frente do edifício, cantando os pneus no asfalto.
Em dias normais, Shoto conteria um riso e usaria uma palavra muito feia para xingar aquele pássaro vermelho maldito que insistia em subir em cima de seu carro como se ele fosse uma mesa de parque pública, a qual Hawks usava quando se cansava o suficiente de voar por aí.
Mas naquele dia, os pés de Hawks mal foram ouvidos por Shoto. O garoto simplesmente estacionou e pulou pra fora do carro, seguindo em frente na direção da aglomeração de pessoas e bagunça, com a polícia, a imprensa e seja lá quem mais fosse maluco o suficiente de deixar a curiosidade vencer o medo de Nomus.
— Ei! Shoto! — Hawks chamou, mas o garoto já avançava com os pés rápidos. — Garoto! Espera!
— Cadê a ? — Shoto se virou de súbito, o rosto totalmente retorcido de aborrecimento. Uma de suas mãos agarraram o colarinho do herói número 2, reforçando sua pergunta: — Fala, Hawks!
— Você ainda não tá totalmente recuperado… — Hawks parou de falar imediatamente ao ver a pequena faísca no olho esquerdo de Shoto tremular e a área de seu pescoço, onde o garoto tinha apertado os dedos, ficar perigosamente mais quente — Tudo bem, tudo bem! Tokoyami disse que a viu no laboratório do terceiro andar, ele se livrou dos Nomus que estavam subindo as paredes, mas o vidro da janela não cedeu, eu não sei…
Shoto o largou com brutalidade, rangendo dentes e garganta, caminhando a passos largos para a lateral do prédio até fazer algo que não estava acostumado a fazer.
Algo que tinha aperfeiçoado em um de seus muitos treinamentos avançados no Reino Unido depois da escola, em um certificado ou outro que nunca usou de verdade. Ao voltar para o Japão e aceitar o emprego na agência de seu pai, Shoto pegou uma época agitada de mudanças no edifício. Reformas que Endeavor tinha adiado e que estavam finalmente saindo do papel.
Um engenheiro habilidoso tinha dado a belíssima ideia de revestir o QG do número 1 com o tipo mais resistente de vidro: aquele que é feito com fogo. Cristalino e impenetrável. A forja impecável nascida do próprio Hell Flame, testada e usada de inúmeras formas diferentes.
É, o Hell Flame queimava muito. Mas Shoto queimava mais.
E assim, como se nunca tivesse adormecido aquele lado, Shoto canalizou cada mísera célula quente na palma das mãos, impulsionando as chamas com a força da raiva, despertando uma linha de dinamite pelas veias, adiantando uma explosão interna que seu corpo teria o maior prazer em reproduzir.
Uma parede de gelo escapou da ponta de seus dedos direitos até o antebraço, indo de encontro à gravidade até que ele pousasse os pés em cima dela e, então, que se erguesse no ar pelo geotropismo negativo, empunhando o fogo quase engatilhado à medida que subia e subia.
Faltando menos de 3 metros para a janela, Shoto firmou os pés no gelo e esticou o braço para o vidro, sentindo a força intensa de um empurrão quando a explosão escapou de sua palma, formando uma redoma quente ao redor, atingindo o vidro com precisão e força, um soco de violência.
Durante um minuto inteiro, ele precisou se concentrar em aumentar a intensidade do fogo ao mesmo tempo em que mantinha a produção do gelo abaixo de seus pés, derretendo gradativamente à medida que o fogo ardia ao redor. Foi um minuto eterno de irritação e dor. Shoto não saberia dizer se aquela estratégia realmente daria certo, mas estava disposto a aguentar o tempo que fosse preciso.
Quando o vidro explodiu, ele se impulsionou para dentro da sala antes que a torre de gelo se desfizesse por inteiro e bateu os pés no chão com um baque.
Shoto encarou o ambiente por inteiro. E levou menos de 1 minuto para avistar .
— Shoto! — Ela soltou o grito sem perceber. Parecia assustada e surpresa demais apenas pela presença dele ali. Lágrimas brilhavam em seus olhos enquanto suas mãos se apoiavam na pele grossa e arroxeada do monstro que a segurava, um monstro que virou a cabeça bem devagar para a invasão repentina, a face monstruosa imperturbável.
Shoto nem pensou.
Uma estalactite de gelo se formou em questão de segundos e foi lançada no ar direto no ombro do bicho. A criatura guinchou agudamente e finalmente soltou os dedos ao redor de , que caiu em um impacto grogue no chão enquanto segurava algo em torno da mão. O Nomu não ficaria muito tempo parado e logo se colocou de pé, avançando sobre Shoto com urros e gritos da mesma forma que ele se lembrava de anos atrás: com ódio. Com maldade. Com poder absoluto que ele não poderia lidar sozinho.
Isso não importava.
Ele faria algo simples, porque tudo que estava pensando era em tirar dali imediatamente.
Quando o monstro veio pra cima dele, Shoto desviou e empunhou a mão esquerda para cobrir o bicho em um manto de fogo ardente, tirando-lhe urros desesperadores de dor e agonia, urros que Shoto sabia porque ele não tinha a menor ideia da potência que seu fogo estava chegando no momento, mas sabia que o machucaria. Que estava machucando mais do que o normal. Que estava machucando mais do que Endeavor machucaria.
Shoto não fazia ideia se a força atual de seu fogo tinha alguma relação com ter ficado mais forte em outras partes nos últimos anos, mas o que importava era de que parecia muito que ele estava prestes a matar um Nomu sozinho, incinerando cada pedaço de pele vergonhosa daquela coisa que estava tentando matar .
Algo parou o fogo.
Algo o atingiu de raspão no ombro.
Algo o fez se desequilibrar para o lado ao mesmo tempo que a criatura cedia ao chão em um impacto barulhento.
— Pai, não! — ele ouviu a voz de em algum canto, enquanto sentia a dor lancinante no lado esquerdo, vinda das costas, da frente, de todos os lugares onde pudesse sentir. Um jorro quente e vermelho empapou a camiseta à medida que ele se virava na direção do grito e via algo que não viu antes.
Hisashi estava parado à frente da porta trancada, com a mesma pistola de duas noites atrás, apontada para Shoto em um mar de calma e fúria, um verdadeiro paradoxo.
Ele tinha acabado de lhe dar um tiro?!
— Para agora mesmo! — se colocou de pé imediatamente, imitando a mesma posição defensiva de antes: colocando-se na frente de Shoto, erguendo as mãos para a frente, cruzando a linha da sensatez quando se tratava daquele maluco — Você não pode fazer isso! Ele acabou de salvar nossas vidas! Ei!
— Eu já disse que não quero você perto da minha filha — disse o homem, e Shoto franziu o cenho de irritação.
Como?! Ele queria falar disso agora?!
Antes que Shoto demandasse, o mais gentilmente possível, que aquele homem parasse de loucura e entendesse que precisavam sair dali, um grunhido assombroso veio logo ao lado do trio, onde aquela massa meio queimada do Nomu começou a grunhir e se mexer, ao mesmo tempo em que ficava automaticamente… um pouco menos queimado. Cada vez menos queimado.
Se regenerando.
— Droga — Shoto agarrou a mão de imediatamente, colocando-se à frente dela em um movimento protetor automático — Precisamos sair daqui! Precisamos…
Outro tiro veio, mas desta vez, Shoto estava preparado. Ele desviou para o lado à medida que sentia ser puxada para longe, forçada por Hisashi a sair de perto dele.
— Seu desgraçado…
— Você tá louco?! — Shoto grunhiu com raiva. tentava se desvencilhar da mão do pai, mas não estava sendo capaz de tal coisa — Não podemos resolver isso agora, precisamos ir embora. Esses monstros…
— Levante-se! — gritou Hisashi, sem tirar os olhos de Shoto. — Levante-se agora!
Levou um tempo absurdamente longo para que o herói percebesse que ele não estava se referindo à ele. Até onde sabia, ele estava de pé. Mas então, os grunhidos do monstro vindo logo atrás de suas costas ficaram mais presentes e reais, e o entendimento da situação foi praticamente imediato.
O Nomu, mais lentamente do que antes, começou a erguer o corpo até firmar as pernas no piso, coberto de fumaça que fazia seus ferimentos desaparecem e envolto em uma aura de morte. Ele ergueu a cabeça na direção de Hisashi e sua arma apontada para o herói, como se esperasse confusamente uma ordem vinda dele.
— Traga esse garoto junto conosco. Coloque-o junto do pai pra morrer no andar debaixo.
O bicho automaticamente virou a cabeça devagar, muito devagar, ainda ligando pontos que precisavam ser ligados para fazer uma coisa daquele tamanho funcionar, e foi o tempo exato para que arregalasse os olhos na direção do pai, pasmos e aturdidos, amedrontados com a possibilidade do que ele estava falando enquanto Shoto se preparava para deixar a raiva quente dentro de si ser jorrada para fora direto no homem louco ao lado de sua namorada.
Mas, não necessariamente distraído, mas perigosamente focado em outro ponto, Shoto teve um dos braços torcidos para trás, o braço esquerdo, soltando um urro de dor pela pressão na bala, ouvindo o grito de ser sufocado pelos braços fortes do homem e por mais uma ordem:
— Vamos.
foi arrastada por Hisashi para fora da sala, seguidos pelo Nomu que arrastou Shoto com a força impressionante que se lembrava que as criaturas tinham, resmungando palavrões e tentando a todo custo ativar seus poderes que tinham sido… temporariamente desativados. Algo estranho e extremamente perigoso. Até que Shoto se lembrou da bala, e da fumaça, e…
Droga. Ficar sem poderes naquela situação significava morte.
No entanto, Shoto ficou ainda mais perto de ver a morte quando chegaram há alguns metros da porta do laboratório, em uma curva aleatória daquele labirinto de corredores, onde o corpo grande e robusto de Endeavor foi atirado de algum ponto e enfiado dentro do concreto da parede mais próxima.
Shoto hesitou e parou imediatamente. Seu pai era uma colcha de retalhos de ferimentos. Sangue jorrava de cada ponto de seu corpo, e seu lábio rachado viraria mais uma bela cicatriz no futuro, mas o garoto não conseguia pensar em cicatrizes naquele momento. Cicatrizes vinham de feridas curadas, e feridas curadas precisavam de tempo, e naquele momento louco e inédito, Shoto de repente sentiu que Endeavor não tinha muito tempo!
— Droga! Endeavor! — ele gritou, automaticamente se mexendo com mais força para escapar da constrição do Nomu. Mesmo que fosse verdade que Hisashi pretendia matá-lo, estava tudo bem, mas envolver seu pai nisso? Não.
Não.
Era um pouco estranho admitir que não queria que Enji morresse, mas Shoto certamente já estava mais do que pronto para impedir que isso acontecesse a todo custo.
Contudo, o despertar de seu desespero por ver outra pessoa querida em um estado de perda total não durou muito, porque logo o choque tomou cada célula de seu corpo quando viu a pessoa que se aproximava do pai enterrado no concreto.
Ele não teve uma certeza imediata, mas aquela postura entregou tudo. A postura imponente, marcada de beleza etérea e olhos sombrios, um rosto que escondia cicatrizes e modificações hediondas responsáveis por sua variação de individualidades e pelo massacre de tantas vidas inocentes.
Aquele era Rush. O verdadeiro Rush. Shoto teve certeza disso, assim como tinha certeza do novo pico de ódio que era despertado em seus dois lados simultâneos, o mesmo ódio que sentiu naquele maldito ataque de Togoshi Ginza.
E Rush parecia muito disposto a matar o seu pai, se já não tivesse tido sucesso em fazer isso.
O herói número 1 ainda não estava totalmente inconsciente, mas não foi capaz de se mover e nem de dizer algo diante do grito desesperado de Shoto.
— Endeavor… — agora lançava em um fio de voz, encarando o herói em uma situação que não se esperava ver. Usando a lógica, Endeavor estava a um fio de uma derrota total. Pela primeira vez, ele não era páreo para alguém.
Shoto ficou com ainda mais raiva quando o vilão notou a balbúrdia nova no batente do outro corredor, virando-se para os novos integrantes com um sorriso debochado no rosto.
— Ora, ora, você o trouxe — os olhos brilhantes focaram imediatamente em Shoto, mas não parecia estar falando com ele — Agora podemos completar o show.
Assustada, tentou focar nos olhos diabólicos do vilão para entender aquele jogo de palavras. Hisashi se mexeu minimamente do seu lado e de repente estava abrindo um sorrisinho temeroso nos lábios, um sorrisinho voltado para aquele grandalhão que estava matando Endeavor, e de repente o mundo de pareceu ruir ainda mais – e ele já tinha ruído o suficiente.
Não. Não, mil vezes não! Pelo amor de deus, não!
— Pai — ela chamou, sem tirar os olhos de Rush, que não tirava os olhos de um Shoto trêmulo com a raiva — Por que ele está falando com você?
Por que parece que vocês dois se conhecem?, ela queria completar. Ninguém discordaria que existia algum nível de acordo ali no meio, e isso apavorava, horrorizava .
Shoto, ainda grunhindo de ódio, olhou do vilão para o sogro, que ainda mantinha a arma seguramente apontada para ele, o que era um pouco engraçado porque significava que prestou bem atenção ao que o garoto tinha feito àquele monstro no andar de cima, e por isso poderia repetir a dose e acabar com toda aquela palhaçada.
No entanto, Shoto encarou os dois percebendo a mesma coisa que , e um pouco de fúria deu lugar ao choque completo.
— Só faça o que tem que ser feito — Hisashi respondeu ao homem, ignorando e suas dúvidas e o início de uma crise de pavor e de choro — Ele está aqui, e você vai matá-los. E eu quero ver isso, quero garantias disso.
Por um momento, pareceu que ele estava prestes a apontar aquela arma para a frente do rosto de Rush, mas se controlou. A ordem explícita em seus olhos era bem mais assustadora. O vilão abriu um sorriso divertido e, em um piscar de olhos de uma super velocidade, ele estava perto do grupo, especificamente na frente de Shoto.
Antes que qualquer um abrisse a boca, Rush fechou os dedos longos no pescoço do garoto, erguendo-o para cima como se fosse um boneco.
— Vejamos — disse ele em uma análise do rosto contorcido do garoto meio a meio, que se debatia com fervor, sem sucesso — Ele é forte. Bem forte. Se não o tivesse atingido com essas malditas balas, talvez eu estivesse lutando com ele agora mesmo. E talvez eu tivesse que intercalar entre ele e o pai, mas vejo que não vai ser necessário. O que você acha, Hisashi?
sentiu o peso de um soco no diafragma. Todos os músculos de seu corpo já doloridos foram enrijecidos e queimados com o choque. Seu pai abriu um outro sorriso para o vilão e murmurou com satisfação:
— Eu também vejo isso. Ele é todo seu.
E de repente Rush estava rindo. De repente, estava tirando Shoto de perto do Nomu e carregando-o para perto de Endeavor. De repente, a realidade estava se tornando nebulosa e sôfrega, mostrando uma faceta de terror que só tinha imaginado nos pesadelos. Nos piores cenários da missão.
Não, não, não…
— … Não! — ela berrou, e jogou o corpo para a frente em um impulso. Mesmo que Hisashi tenha conseguido segurá-la para mantê-la no lugar, sentia a histeria do desespero, o desespero acordando dentro dela em vários níveis — Não, larga ele! Shoto! Larga ele agora! Seu desgraçado, solta…
— Fica quieta, ! — Hisashi puxou seu corpo com tamanha violência que a garota sentiu as costas baterem na parede pelo desequilíbrio. O mundo estava desabando na mente dela. Se bateu na parede mais algumas vezes não sentiu, porque a visão de Shoto com os pés fora do chão e sem poderes a trouxe um pavor fora do comum — Calada, eu vou te levar pra casa…
— Adorável o desespero da criança — a voz melodiosa de Rush agora se referiu a junto a seus olhos. Aquela voz linda que a dava um nojo absurdo a cada hora que passava. Shoto pareceu se mexer ainda mais em suas mãos, murmurando coisas incompreensíveis entre os dentes, mas que deixava claro que Rush estava totalmente proibido de olhar para — Queria que o envolvimento de sua filha com nossos alvos fosse meramente uma brincadeira de criança, mas como essa foi uma realidade que fomos descuidados em não prever, é a nossa consequência, creio eu. A sua de presenciar o sofrimento da sua filha e a minha de ter que aguentar o seu mau humor por causa disso.
travou. O mundo rebobinou e se distorceu por completo em sua cabeça à medida que ia sendo atingida não pelas palavras vagas de Rush, mas pela simplicidade com que foram ditas. Pela cumplicidade, proximidade. Seu pai, minha nossa. Hisashi
— Eu não posso acreditar… — ela deixou sair em um fio de voz, e teve certeza de que tinha lágrimas rolando pelos olhos, mas que se dane. Aquela verdade era mais urgente e pior para se lidar — Eu não creio que você trabalhou com… Meu deus, pai, como pode trabalhar pra ele? Como pode…
— Eu não trabalhei pra ninguém — Hisashi tentou dizer, agarrando imediatamente nos ombros de , trazendo seu rosto choroso, suado e machucado para mais perto, os olhos turvos de agitação — , não trabalho pra ele, você não entend-
— Não é pra mim que ele trabalha — Rush riu e bateu com as costas de Shoto na parede ao lado do Endeavor desacordado, fazendo poeira e granito se espalharem. Ao causar o primeiro golpe de dor, justo no machucado da bala, o vilão continuou, virando-se especificamente para — Ele trabalha para ele mesmo. Eu também. E assim, nós trabalhamos juntos. Por objetivos em comum. E um deles envolve as cabeças dos Todoroki heróis empaladas em cima desse edifício.
Hisashi grunhiu na direção do parceiro, repreendendo-o pela confissão inoportuna no pior momento, porque foi tomada por uma palidez pior do que já estava, e sua boca tremeu e tremeu até conseguir balbuciar:
— Não… — ela balançou a cabeça. Um fio de esperança, muito fino e imaginário, torcia para que seu pai negasse tudo aquilo e dissesse o que claramente qualquer pessoa sã diria: aquele vilão era louco. Oras, ele era um vilão, desde quando essa gente diz coisas que fazem sentido? Hisashi devia estar fazendo algo para que ele soltasse Shoto, devia estar fazendo algo para capturá-lo, mas…
Hisashi abriu e fechou a boca várias vezes, claramente juntando uma explicação, que não saía. E ele ia ficando nervoso com esse fato. Não existia uma única coisa que Hisashi , com sua individualidade e intelectualidade muito alinhadas, conseguisse expandir e explicar, mas naquele momento, o olhar de dor de doía em algum ponto de seu peito, por mais que estivesse totalmente certo do que estava fazendo.
, as coisas não são como você pensa… Ei! — ele puxou o braço dela mais uma vez quando a viu tentar fugir — Eu fiz tudo isso por você. Por nós! Pela sua mãe! Eles mataram a sua mãe, ! Toda essa corja…
— Não! Eles não mataram ninguém! — enfurecida, o empurrou com a força reunida no braço, uma força que ela não sabia da onde vinha, a força da repulsa que sentia de estar a menos de 100 quilômetros do pai — Shoto e Endeavor não mataram ninguém. Nem Fuyumi ou Natsuo, nenhum deles tem nada a ver com mamãe! Dabi fez isso, seu louco de merda! Dabi, um vilão perigoso e insano! Como pode deixar seu ódio te levar a isso?!
Com um empurrão impulsionado pelo ódio, moveu o pé para um dos joelhos de Hisashi, golpeando-o e conseguindo que ele afrouxasse os dedos o suficiente para que ela escapasse de seus braços, fervendo da cabeça aos pés, sentindo-se quente e magoada de um jeito que nunca se sentiu na vida. sempre havia sido uma pessoa com difíceis habilidades de sentir raiva, e nunca achou que ferver os nervos era uma escolha inteligente para resolver problemas, mas aquilo… Aquilo era inaceitável ao ponto de fazê-la repensar sua vida inteira. Suas atitudes e personalidade desde muito nova, moldadas por aquele crápula que mentia e mentia. Uma nova estava nascendo daquele ódio intenso, e quem quer que o despertasse daqui pra frente, não seria mais favorecido com uma tentativa de controle.
Sem pensar, ela correu na direção de Shoto, sem considerar que ainda existia um ataque em massa acontecendo nos outros andares, e gritos acontecendo ao redor, e o mesmo Nomu que havia descido obediente sendo mais rápido do que ela ao avançar pelo cômodo e segurá-la diante da ordem explícita “segura ela!
foi erguida no ar na mesma constrição, e olhou para Shoto com a raiva e o medo que sentia. Olhou Shoto e suas feições vermelhas enquanto lutava para não sufocar pelos dedos de Rush. Qualquer pessoa normal não aguentaria. Qualquer pessoa normal já teria morrido com aquele tiro idiota. E qualquer pessoa normal se deixaria ser levada para bem longe daquela confusão de monstros e vilões, porque não era inteligente assistir seu namorado servindo como sacrifício quando você não podia fazer nada sobre isso, mas e Shoto não eram pessoas normais. Eles eram parceiros de missão. E, além disso, se amavam como não amaram outras pessoas.
Não se abandonava algo assim.
— Shoto! Aguenta, Shoto! Endeavor! — histérica, se contorceu nas mãos do bicho, inutilmente tentando usar chutes, unhas, qualquer elemento que alguém não favorecida com habilidades de combate poderia fazer para se virar. Sua cabeça estava focada apenas em Shoto e sua tentativa incessante de se livrar de Rush, que continuava pressionando sua ferida enquanto o vilão olhava a garota como um programa de entretenimento — Shoto, você precisa se livrar da bala! Queimar, Shoto! Você precisa queimar!
! — Hisashi gritou, interrompendo a próxima fala da filha desesperada, mas o ignorou. Precisava se livrar daquele monstro. Precisava chegar até Shoto. Ele ainda estava fraco, ainda não estava totalmente recuperado, e ela odiava pensar que ele não fosse tão sortudo ao tentar se livrar da bala — Leve-a pra fora agora. Leve-a para o carro!
— Não! Me larga! — gritou com mais força quando o Nomu começou a se mover, afastando-a de Shoto, afastando-a de tudo — Me solta! — ela puxou uma perna para chutar o tórax robusto e nojento do Nomu, totalmente regenerado, o que o causou uma careta de puro incômodo, e uma faísca de raiva cortante que brilhou naqueles dentes, uma faísca de algo que não hesitaria em atacá-la se ela continuasse, porque aquelas coisas tinham um pouco de… cérebro. Pelo que ela sabia, pelo que tinha pesquisado por todo aquele tempo, os novos Nomus eram feitos a partir de humanos e não eram apenas comandos destruidores e…
Os novos Nomus.
Novos Nomus que precederam de pessoas, pessoas normais que viviam uma vida física em qualquer apartamento, pessoas comuns que eram transformadas em monstros, mas que mantinham uma configuração genética base de um humano.
Em um pico de loucura, se lembrou da bolsa e de suas amostras.
Se lembrou que aquele monstro poderia não ser capaz de levá-la até o carro como Hisashi queria porque era um ser totalmente instável. E se lembrou de que precisava se livrar dele com a única tentativa que tinha.
Agindo em um piscar de olhos, puxou a seringa cheia do bolso de trás e enfiou-a na lateral do pescoço da criatura.
No instante seguinte, ela teve o corpo solto no chão, caindo novamente em um baque, mas que pela adrenalina, não sentiu dor nenhuma. Aproveitou a oportunidade para ficar de pé no mesmo instante e se afastar do que agora parecia uma montanha de músculos berrando e berrando em desespero horrorizado, levando as mãos para tirar o que seja lá que o picou e rodopiando e rodopiando como se estivesse pegando fogo.
prendeu a respiração ofegante. Por um minuto, parecia que todos no recinto tinham parado para observar aquilo. O estrondo do corpo animalesco caindo no chão deu lugar a mais berros quando fumaça ascendeu aos céus e as partes do corpo do monstro começaram a convulsionar, a diminuir, a derreter diante dos olhos de , a ir virando nada e nada até que… Até que um rosto se tornasse visível.
Um rosto ligado a um pescoço, a um tronco, braços, mãos, dedos, pelve, pernas… Um corpo inteiro. Um corpo humano. O corpo de um homem que teve sua essência completamente transfigurada por um ácido misturado com a ganância, e que agora…
estava mais horrorizada pelo fato de que sua teoria sobre os Nomus estava correta do que pelo fato de que seu soro tinha dado… certo? Bem, ter um corpo nu de um homem jogado no meio do cômodo parecia muito melhor do que vê-lo virando líquido roxo como naquela sala da enfermaria. Aquela experiência mostrou para que ela tinha feito isso. Seu sangue conseguia fazê-los voltar a ser humanos. Tinha dado certo!
Ela contaria isso como uma coisa muito favorável para o seu currículo, mas não era o momento de pensar. Após os segundos longos em que o cérebro dos outros captavam o espetáculo da transformação, se virou na mesma direção de Shoto e correu novamente.
Mas coisas aconteceram antes que ela desse um passo. A primeira delas foram os braços de seu pai em prontidão para puxá-la, e desta vez sentiu um segundo toque, a sensação de algo gelado e duro na lateral de sua cabeça ao mesmo tempo que as feições de Rush saíram de divertidas para extremamente furiosas.
— Mas… o que foi que você fez?! — ele berrou, e pareceu apertar o pescoço de Shoto ainda mais — O meu Nomu! Sua desgraçada, o meu Nomu!
— Não se aproxime, Yuma — Hisashi gritou de volta, apertando a arma na cabeça de novamente — Não se aproxime, seu desgraçado. Ela não sabe o que está fazendo. Ela não sabia.
— Ela destruiu O MEU NOMU! — furioso, Rush trouxe a cabeça de Shoto para mais perto, uma cabeça que agora exibia ferimentos na boca e na bochecha, e correu um dedo pensativo sobre a clavícula de Shoto, que já não tinha muita força para continuar lutando — Ela destruiu minha criação. Muito bem. Que tal retribuir a essa pirralha com a cabeça do namoradinho…
Subitamente, o corpo de Shoto foi lançado ao chão.
O corpo de Rush foi lançado ao chão.
E uma voz, fraca e longínqua, ofegante e reconfortante, foi se levantando devagar ao mesmo tempo em que faíscas de fogo voltavam a brilhar:
— Saia de perto… do meu filho.

🔥❄️


Shoto não estava certo da sequência exata dos acontecimentos nos primeiros 3 segundos que recebeu o oxigênio.
Primeiro, a pancada em seus pulmões foi muito maior do que aquela que recebeu nas costelas e na cabeça, e ele tossiu intensamente até sentir o ar em volta, e tinha certeza de que as marcas dos dedos daquele desgraçado estavam bem delineadas em sua pele do pescoço. Depois, ele notou um silêncio vago que perpassou as paredes e todo aquele complexo por exatos 5 segundos até que fosse capaz de forçar o corpo e se virar para o lado, percebendo a silhueta do vilão a alguns metros dele, o que o fez imediatamente arrastar as pernas para longe. Não iria favorecer aquele idiota com uma fraqueza ridícula novamente, mas nem deu tempo de pensar nisso. Ele apenas ouviu a voz familiar atrás de si e virou para trás, enxergando a montanha de músculos que era o grande Endeavor se segurando no último fiapo de fôlego para ameaçar o vilão.
Shoto não soube o que sentiu. Mal teve tempo de sentir alguma coisa. Em um segundo, Endeavor se abaixou na direção de Rush e o pegou pelo colarinho, correndo por alguns metros até lançá-lo na próxima parede com uma força inimaginável.
— Corram! — Endeavor gritou para os demais, mesmo que não os olhasse realmente. Shoto notou suas pernas enormes tremendo, e seu lábio rachado, e todo aquele sangue que o transportavam para uma lembrança antiga e muito dolorosa, muito traumática e muito repulsiva. A lembrança de quando Enji teve o corpo retirado dos destroços da maior guerra do Japão, causada pelo chefe do mal de seu filho mais velho. Uma situação muito específica onde Shoto teve certeza de que ficaria sem o pai.
E agora isso parecia estar se repetindo.
Ele grunhiu e tentou se levantar, olhando diretamente para Endeavor e o embate prestes a acontecer, já que Rush já estava se livrando dos escombros da parede como se nem tivessem lhe feito cócegas. O vilão ganhava cada vez mais presença, enquanto Endeavor a perdia. Shoto se sentia mais fraco a cada minuto, mas ainda seria capaz de fazer alguma coisa, de tentar, de…
— Shoto! — ele sentiu uma mão se fechar na curva de seu cotovelo, fazendo seu corpo parar antes de continuar o trajeto. Ele nem percebeu que havia levantado. Nem percebeu que estava andando — Shoto, precisamos correr. Precisamos nos afastar…
— Mas ele… — Shoto se voltou para , permitindo de má vontade que ela o arrastasse para mais longe, incapaz de tentar algo com tamanha dor em várias partes — , não posso deixá-lo! Ele vai matá-lo!
— Ele vai matar você também!
— Se um de nós puder sair vivo dessa, eu preciso… — ele abriu a boca e não continuou, porque uma dor lancinante o fez piscar os olhos e se desequilibrar, sendo apoiado por imediatamente — Eu preciso tentar. Preciso que você saia daqui, , preciso que procure o Hawks e fique à salvo, aquele Nomu que você…
— Não vou a lugar algum — o interrompeu e imediatamente agarrou seu braço esquerdo, olhando apressada para trás para ver a que ponto seu pai já estaria recuperado. Ela não deu tempo de Shoto raciocinar; não era necessário. Em um segundo, ele sentiu os dedos dela por cima de sua ferida e sufocou um gemido de dor — Vou tirar essa bala e você vai queimar. Tá me ouvindo, Shoto? Você precisa queimar e ajudar o seu pai! Ele…
O grito de Endeavor tornou as coisas intensas e desesperadoras. tirou as mãos de Shoto em uma puxada só, arrancando-o um berro que o fez se ajoelhar, tremendo compulsivamente pela dor, mas tremendo igualmente por todo o fogo acumulado que começou a fluir e fluir como uma corrente elétrica pelo corpo, pinicando o substrato de sua pele e tomando todos os seus órgãos.
se abaixou ao lado dele, olhando para os lados e enxergando a confusão ao redor, a batalha de Endeavor e Rush se tornando ainda mais violenta, os gritos do herói número 1 em súplica para que os garotos fossem embora, o pai de se recuperando e ainda com aquela maldita arma na mão, e mais Nomus… muito mais Nomus, tão agressivos e sangrentos quanto o primeiro, prontos para matar o que vissem pela frente.
Uma centelha ardente escapou do dedo de Shoto, e sua pupila escura brilhou igualmente, o corpo atestando seus poderes de volta.
Ele ergueu a cabeça para , e desta vez, parecia ainda mais forte do que jamais havia visto.
— Se esconde — disse ele em voz grave, e se colocou de pé em um segundo, ardendo em chamas da cabeça aos pés.
A visão de Shoto Todoroki preso em uma camada de fogo pela metade do corpo causou um grande nervosismo, mas também uma grande alegria e esperança em . Ela se sentiu, de alguma forma, ligada à ele quando queimava. E teve certeza absoluta de que ninguém – absolutamente ninguém – havia tido o privilégio de ver o herói meio a meio queimar em uma redoma de fogo tão forte, tão intensa a ponto de sentir um pouco na própria pele, levantando-se rapidamente e correndo para o outro lado na mesma hora em que Shoto se lançou sobre Rush.
A temperatura de suas chamas se mostraram mais fortes do que o próprio pai quando Shoto as lançou para cima de Rush, que gritou condenadamente ao deixar as pernas cederem, e se afastar para longe enquanto usava uma habilidade de vento para dispersar. Shoto se colocou à frente do pai, cansado e abatido, perigosamente ferido, e ofegava insistentemente como se estivesse cansado, mas ele não se sentia cansado. Pelo contrário, se sentia mais forte, mais dedicado, determinado a não permitir que Endeavor fosse um sacrifício, que ele não se entregasse assim como chegou perto de se entregar à Toya há anos atrás.
As chamas cauterizaram seu ferimento no ombro. O gelo formou pilastras nascidas do piso, separando-os do resto da confusão. E o pai se colocou ao lado do filho, a respiração entrecortada, os sulcos de ferimentos doendo a cada passo, mas conseguiu dizer em voz arrastada:
— Tem muita coisa que não sabemos sobre ele.
Shoto apenas assentiu.
— Então é muito mais prático o impedirmos de fazer qualquer outra coisa.
E Endeavor pareceu soltar uma risada engasgada antes de partir pra cima do vilão junto com Shoto.
Em uma explosão de fogo, gelo, vento e lasers, e outras individualidades que não sabia identificar, a garota tentou se afastar o máximo possível apenas para não ser atingida, sentindo a cabeça girar e girar à medida que tentava pensar em um modo de saber a localização de Hawks, de chamar a polícia e o restante dos heróis, de ajudá-los de outra forma que não fosse ficando parada.
Porque algo a dizia, de uma forma muito constante e preocupante, que Shoto e Endeavor poderiam morrer se seguissem em frente com aquela luta por muito tempo.
Quando estava longe o suficiente, o corpo de Shoto foi novamente lançado à outra parede. E Endeavor era resumido em cortes profundos e sangue escapando dos poros, incapaz até mesmo de sustentar o Hell Flame por mais de dois minutos.
Minha nossa. Eles não iriam sobreviver!
Desesperada, teve um estalo repentino. Um estalo que não foi pensado ou ponderado, acontecendo ao mesmo tempo que suas pernas se moviam na direção do combate, mas não foi em frente por mais um passo. Seu cotovelo foi agarrado por uma mão firme e puxada com violência para trás.
— Estou te dizendo pra parar com essa loucura agora, — Hisashi estava de volta, desta vez com os resquícios do que era uma camisa social branca e com o rosto contorcido de fúria, segurando sua arma novamente, desta vez apontada devidamente para o chão — Você vai embora comigo agora mesmo e vai entrar naquele avião, e nós…
— Me larga! — se soltou imediatamente, sentindo-se trêmula de novo, um pouco doente por estar perto daquele homem que não se parecia com seu pai — Você ficou maluco? Eles estão enfrentando um vilão perigoso, e vou ajudar como eu puder! É pra isso que me matriculei na UA, é pra isso que treinei esses 3 anos e é pra isso que participei da missão. Não vou abandonar nenhum deles, porque sei que nunca me abandonariam.
— Chega de besteira — o homem estava próximo de novo, e agarrou com a brutalidade que ela nunca viu — Cale a boca e vamos embora!
— Eu não vou embora…
— Você vai embora comigo agora, e nós vamos…
Hisashi estava pronto para vomitar mais uma centena de ordens no meio de um caos, e estava pronta para lutar contra o próprio pai e fazer valer seu objetivo, seu único objetivo de tentar repetir o feito no Nomu transfigurado em homem há alguns metros. No entanto, sem nenhum ajuda, estava à mercê da força esmagadora e desconhecida daquele homem, e teria sido arrastada aos berros daquele lugar se um vulto vermelho e muito veloz não aparecesse por de trás dele, puxando-o para o mais longe possível de .
— Hawks! — arfou com a aparição repentina.
— Me larga, seu desgraçado — Hisashi apertou a pistola entre os dedos, pronto para virá-la para o herói número 2 sem hesitar, mas Hawks não era conhecido como o herói mais rápido por nada. Uma de suas penas desacoplou a arma das mãos do empresário em um toque, deixando-o ainda mais furioso.
— Então esse é o cara que te prendeu? — ele perguntou com um sorriso enviesado. não respondeu — Realmente, as primeiras impressões geralmente não enganam. O senhor tá com uma péssima reputação por aqui.
O homem tentou se debater, mas Hawks o segurava com apenas uma das mãos. O herói encarou a bagunça mais à frente, e travou o maxilar de nervosismo ao ver Shoto rolar pelo chão mais uma vez.
— Você precisa sair daqui agora, . Vá pela porta da esquerda, limpei os Nomus de lá e deixei uma equipe, Tokoyami vai te levar…
— Não! — a exclamação dela veio acompanhada de um salto para longe, preocupada de ele também usar suas penas para levá-la — Não posso ir agora. Tenho que testar uma coisa.
— Olha, sei que você é nerd, mas não é hora de testar coisa nenhuma, caramba. Não vê o que tá acontecendo? Tem monstros por todo lado. Até os heróis profissionais estão levando um pau, será que você…
— Eu posso ajudá-los. Eu fiz aquilo — ela apontou para o homem ainda desacordado, mas estranhamente não pálido para alguém que estava aparentemente morto. O que só mostrava que ele poderia estar, graças a deus, fatidicamente vivo. Hawks franziu o cenho, e não estava disposta a esperar que ele entendesse — O meu soro funcionou, Hawks. E tenho uma teoria que pode funcionar, só preciso chegar perto do Rush.
! — Hisashi berrou com pânico nos olhos, e Hawks o apertou com ainda mais força, agora forçando penas vermelhas voadoras a invadirem sua boca como uma fita para que se calasse. O herói número 2 grunhiu e agitou o braço.
— Chegar perto do Rush? Para de loucura, ! Anda, nós vamos lá pra fora agora mesmo, vou colocar o maluco do seu pai atrás de um camburão e você vai tratar esses machucados enquanto eu vou tentar salvar os… HARUKA!
Que se dane, ela pensou. Achou que Hawks já tinha entendido que quando ela estava decidida por alguma coisa, nada a impediria. Tanto faz o número que estampava no ranking de heróis – ela precisava tentar, tinha certeza que precisava.
Se Hawks tentou dizer mais alguma coisa, ignorou. Ele estava ocupado demais tentando manter Hisashi parado. Ver o pai desesperado de medo com sua morte não a causou sentimento nenhum – pela primeira vez na vida, ele não era o que mais importava, não era a única coisa que a restava. Ela mal o reconhecia. E isso tornava ainda mais fácil tomar decisões por si própria, sem se preocupar com a reação dele ou com suas queixas.
Perto do combate, o sangue espalhado vinha de todas as direções, podendo perfeitamente ser de Shoto e Endeavor juntos, e mais uma massa arroxeada viscosa que provavelmente vinha de Rush e seus agora cortes em exposição. “Fomos feitos para durar”, ele tinha gritado à Endeavor quando o atacou com uma nuvem de eletricidade, denominando-se a si mesmo como invencível e imortal, carregando dentro de si partes de outras pessoas e dejetos de poderes que pareciam inofensivos na unidade, mas quando se misturavam… Poderiam ser mortais.
Poderiam ser uma bomba atômica.
Mas se Rush era feito da mesma coisa que os Nomus, então ele podia morrer.
Ele devia poder morrer.
Sentindo a próxima seringa nos bolsos, puxou o objeto enquanto corria, torcendo para que o coração martelando não a deixasse travar, torcendo para que seu pai distraísse Hawks mesmo que indiretamente, torcendo para que tudo aquilo não acabasse com uma visão de Shoto e Endeavor destruídos, assim como todo o Japão.
Ela não sabe quantas vezes pisoteou aquele piso manchado de sangue antes que visse o rosto ferido de Shoto em sua direção e ouvisse seu grito:
! — ele gritou com choque evidente, um medo pavoroso se embolando nos olhos bicolores — O que tá fazendo? Sai daqui! Sai daqui agora!
Tudo aconteceu rápido demais.
Endeavor, já muito fatigado e ferido no chão, parecia ser um entretenimento quase fustigado para Rush. Ele era o banquete final, que seu filho, Shoto Todoroki, não o estava permitindo de aproveitar. Quando naquele mísero segundo, Shoto virou a cabeça pela presença de , Rush concentrou uma quantidade inimaginável de magma azulado na palma da mão, pronto para lançá-lo no garoto distraído.
— Shoto, cuidado! — gritou apavorada. Shoto olhou na direção do vilão, mas parecia tarde demais.
Era tarde demais.
A bola de fogo vulcânica, que não era um fogo normal e puro como o de Shoto, mas sim um fogo perturbado, um fogo maculado e cheio de elementos distintos que o tornavam podre, atingiu o ombro do garoto de raspão, que escapou por muito pouco de ter sido perfurado completamente por aquela massa, e Shoto caiu para o lado, urrando com a textura petrificada daquela coisa que queimava mais do que seu fogo, que corroía sua pele, que deixou um ferimento em carne viva por toda a extensão de sua clavícula.
Antes que ele desabasse no chão, Rush usou sua super velocidade adquirida para se aproximar e voltar os dedos no pescoço do garoto, que buscou o outro braço para afastá-lo, mas a dor era tão imensa… tão estranha. Tirava muita coisa dele. Deixava-o ainda mais fraco. Endeavor, apenas um dedo e grunhidos por debaixo de pedras de concreto, pareceu se revirar no montante de poeira, sentindo-se cada vez mais impotente por não poder ajudar o próprio filho.
— E agora, tesourinho nacional — Rush se aproximou do rosto de Shoto, tremendo com a raiva abundante, provavelmente porque não esperava ter sido atingido — Você vai morrer. E vou te matar na frente do seu papai, mesmo que eu pretendesse fazer isso aos seus irmãozinhos primeiro. Mas você já está aqui e está me irritando… — ele apertou ainda mais o pescoço de Shoto, que esbugalhou os olhos e moveu os braços em busca de oxigênio. Ele sentia o sangue ser expulso de dentro de seu corpo pela ferida, e tudo queimar e queimar — Está me irritando muito. Parece que você achou que pisar no meu esconderijo era um programa de turismo, e fiquei tão perto de matar você naquele dia, se não fosse pela garota e pelo acordo, você não estaria mais…
Rush grunhiu de dor um segundo depois com o golpe na nuca.
Shoto não foi solto imediatamente, mas sentiu o ar passar com mais facilidade quando o vilão afrouxou os dedos em seu pescoço. O homem gritou e gritou, virando-se para trás a tempo de empurrar o peso que o tinha tocado, topando com o corpo de deslizando para longe, ficando zonza por um momento até erguer a cabeça.
— O que… O que é isso? — desesperado, o vilão levou uma das mãos para trás da cabeça, puxando uma agulha afiada fincada em sua pele, distraindo-se com suas dúvidas. Shoto, aproveitando-se disso, levantou uma perna para chutá-lo no meio do peito, livrando-se de sua mão com rapidez, tentando não ficar tão tonto quando desabou no chão e se levantou rápido, travando os pés de Rush com gelo duro e que seria facilmente quebrado pelo vilão, caso ele estivesse… menos desesperado — Que porra você fez? Vadia desgraçada, isso é…
— Shoto! — , levantando-se o bastante para puxar a bolsa, jogou algo no ar na direção do herói meio a meio.
Shoto pegou a coisa no vento com destreza e não pensou. Não precisava pensar, não precisava questionar, precisava apenas confiar.
E ele confiou. E correu na direção do vilão novamente, saltando perfeitamente na direção dele, com o punho voltado para o peito, cravando nele outra agulha afiada de .
Um segundo de silêncio mortal adiantou o pior grito que já ouviu.
Uma queimação extrema começou a tomar o corpo do vilão em cadeia. Uma reação que foi, ao mesmo tempo, pavorosa, assustadora e nojenta. Algo que fez se encolher nos destroços e fez Shoto dar vários passos para trás quando notou que o homem estava… derretendo.
Rush estava literalmente derretendo.
Ele era… Ácido. Um homem que se intitulava como sagrado, como uma inovação da natureza, transcendendo regras e a própria ética, era uma junção de fumaça e líquido corrosivo, que desprendeu seus dois glóbulos da cabeça, retirou o nariz e, antes que desatasse a língua da própria boca, permitiu que o vilão dissesse:
— Vocês… vão… paga…
E ele não tinha mais boca. Não tinha mais queixo, pescoço, tórax… Nada. Tudo ia sumindo e se espalhando pelo chão, assim como tudo parecia ficar um pouco mais quente, e os membros restantes de pé começavam a convulsionar doentiamente, a tremer e se contorcer de uma forma não natural. Diferente do Nomu de antes, transformado em homem. Shoto não sabia se Rush voltaria a ser Yuma Nakasato, nem se o corpo natural de Yuma Nakasato gostaria disso, mas a explicação veio bem rápida. E a tempo.
Rush não tinha um corpo humano para voltar. Ele estava além disso.
Portanto, toda aquela reação só poderia significar…
— Merda! — Shoto gritou em um susto e correu com todas as forças na direção de , puxando-a para cima pelos ombros — Temos que correr, temos que correr agora! — disse ele, perguntando apenas pelo olhar se ela estava bem, sem esperar sua resposta porque formou um enorme cajado de gelo e correu para Endeavor, afastando todas as rochas e pedras que podia em um tempo recorde até que visse seus ombros para puxá-los para cima — Ei, velhote! Acorda! Você precisa levantar! Ei!
Endeavor não o respondeu imediatamente. Seu rosto era uma apoteose de feridas, algo que deixaria qualquer ser humano normal morto, mas em meio ao chacoalhar de Shoto, o homem tomou um pouco de fôlego e abriu levemente os olhos.
— Shoto…
Nervoso, Shoto grunhiu os dentes e puxou o pai para os ombros, sem se preocupar com conforto ou coisa parecida, olhando para o corpo de pé do vilão com explícita urgência.
, vamos! Ele vai explodir!
não precisou ouvir duas vezes. Despertada para a urgência da situação, ela correu junto a Shoto para a entrada do corredor, onde ainda estava Hawks e Hisashi, agora preso com demais penas em volta dos pulsos, ainda debatendo-se.
— Hawks! — gritou, apontando para o lado — O homem. Precisamos pegá-lo, precisamos correr…
Hawks mal teve tempo de franzir o cenho. Sem a boca, Rush não estava mais grunhindo, mas a fumaça e o som de seus ossos e membros se desfalecendo foi o suficiente. O herói de asas se moveu a uma velocidade alucinante na direção do homem nu no chão envolto por Paezoa, voltando e agarrando no colarinho de Hisashi e acompanhando os outros para o mais longe possível do saguão.
Levou apenas 1 minuto para a explosão intensa e assustadora tomar o espaço.
Foi tão forte que as paredes tremeram em revolta, fazendo-os frear os passos e se segurarem na pilastra de granito. Shoto gritou para que continuassem, e com algumas curvas e corpos no chão, conseguiram chegar ao saguão de entrada, o pico do maior embate, a reunião de todos os Nomus que haviam sido jogados ali mais cedo.
Shoto, fraco e dolorido, estava pronto para continuar lutando. Hawks igualmente. também não seria um fardo. Todos eles, uma única equipe, dispostos a lutar e salvar quem estivesse na frente.
No entanto, ao chegarem no local, descobriram que… não havia mais Nomus. Encontraram apenas poças espalhadas e fumegantes de Paezoa, queimando e queimando, misturando-se a gritos de dor e urros de desespero vindas das gargantas dos bichos, que derretiam e derretiam simultaneamente, não transmutados em humanos, mas sim acompanhando a mesma sequência de morte de Rush.
Todos eles retornando a uma gosma pútrida, sem nenhuma chance de salvação.
Ao avaliar que tanto Nomus do lado de dentro quanto do lado de fora simplesmente estavam morrendo, a porta arrombada e quebradiça da frente recebeu uma enxurrada de policiais e paramédicos, junto de outros heróis profissionais, como Best Jeaniest, Kamui Woods, Mirko e até Tenya Iida, que foi o primeiro a se aproximar do grupo, arfando de preocupação.
— Minha nossa, Endeavor! Precisamos levá-los ao hospital agora. Você, Shoto, isso tá muito feio! Precisamos da Recovery Girl! Ei! — o garoto arrancou o peso de Endeavor do filho sem nenhum esforço, e Shoto sentiu ainda mais dor no ferimento da clavícula, esquecido por alguns minutos por causa de toda a adrenalina.
— Leva ele. O velho tá muito machucado — ele disse com a voz mais firme do que se esperava, virando-se para automaticamente — Leve também a…
Só que ele não teve tempo de perguntar verbalmente se ela estava bem ou de pedir qualquer outra coisa, porque de repente, estava enxergando tudo duplicado, e a visão começava a embaçar e uma dor que ela não estava sentindo até o momento começou a se fazer presente, como se ela também estivesse carregando um Endeavor nas costas e não percebesse. De repente, a perspectiva turva fez seu corpo desequilibrar, e em um instante, a fraqueza tomou conta de si e a fez desabar para o lado.
! — Shoto gritou, segurando seu corpo antes que tocasse ao chão, abaixando-se com ele até ajoelhar no piso.
— O que ela tem? — Iida perguntou, afobado com mais uma possível morte.
— Eu não sei, chama os paramédicos! Hawks, leva o Endeavor!
— Mas…
Vai!
não viu as asas do herói número 2 ou quaisquer coisas ao redor que não fossem os olhos bicolores e assustados que a observavam. Uma tonteira e exaustão sem limites tomava cada canto de seu cérebro e ela sabia que iria apagar, mas nem isso impediu que um pequeno sorrisinho brotasse de seus lábios. Um sorriso totalmente fora de contexto e estranho para o momento, que fez Shoto franzir as sobrancelhas de confusão, mas ela precisava admitir: estava feliz. Muito feliz.
. Ei, . O que aconteceu? O que foi?
E ainda sorrindo, respondeu antes que apagasse:
— Acabou.


Parte 20 – Futuro regenerado

Antes que percebesse a luz, Shoto puxou seu rosto para bem perto dele.
Foi delicado e ao mesmo tempo intenso. Os olhos dela estavam embaçados e os ouvidos entupidos, mas o oxigênio entrava pelo nariz e o ar frio arrepiava levemente seus pelos, o que a permitia constatar que estava viva e que provavelmente tinha os órgãos em ordem, funcionando perfeitamente, tal qual era necessário para que inspirasse aquele montante de ar e não sentisse dor.
Mesmo com essas e outras anormalidades temporárias, sabia que era ele. Mesmo que ainda estivesse voltando à órbita da realidade. Isso porque a imagem dele foi a última coisa a se infiltrar em sua mente antes de apagar, e permaneceu girando e girando eternamente até que ela se encontrasse naquele momento do presente: acordando. Sabe-se lá depois de quanto tempo.
Ela não o escutou por quase 5 minutos inteiros, mas sabia que era ele. Conseguia sentir a vibração de sua voz por cima de sua pele, sentindo as palavras ao invés de ouvi-las. desmentiria todos os estudos e artigos científicos que lesse daqui em diante que tivessem a ousadia de dizer que precisava de algo além do coração para se reconhecer a pessoa que ama.
O coração de estava muito bem intacto, e sentiu uma espécie de alívio dobrado ao finalmente ver as imagens tomando foco e uma heterocromia familiar ser a primeira coisa a desabrochar em sua panorâmica.
— Shoto… — a boca não emitiu som algum, e não precisou tentar por muito mais tempo. Em um segundo, os braços dele a envolviam com delicadeza, provavelmente guiados por um impulso impensado, mas que era mais forte do que ele. Era necessário que a abraçasse, que sentisse que ela estava ali, bem e viva. Pretendia até mesmo abaixar a cabeça e colar o ouvido no peito de , atento a qualquer batimento fora do padrão, a qualquer parte de seu corpo que não estivesse quente o bastante.
Quando ouviu um leve grunhido escapando da garganta dela, Shoto se afastou um pouco, mas sem tirar a mão de seu pulso caído ao lado da cama. Um pulso que, com a graça de todos os deuses e divindades, estava começando a pulsar mais rápido.
— Desculpa, me empolguei. Não acredito que você acordou — balbuciou, dedilhando um pouco as maçãs do rosto de , afastando alguns poucos fios de cabelo — Quero dizer, eu sabia que você ia acordar. É claro que ia acordar. Mas você dormiu por 2 dias, e não vou mentir que já estava enlouquecendo.
Com a mente ainda letárgica, se mexeu na cama para tentar erguer as costas para cima. Quase imediatamente percebeu que foi um erro e desabou ligeiramente na superfície molenga em que estava deitada.
— Ei, não faz força ainda. Sei que você se regenera rápido, mas as coisas não foram tão simples dessa vez. Pega leve.
Ele se inclinou rapidamente para o lado, mexendo em coisas que não conseguia virar a cabeça e acompanhar, fazendo um barulho de vidro e líquido soar, seguido por outro zunido bem abaixo dela, que logo sentiu uma outra vibração mecânica à medida que a superfície atrás de suas costas era lentamente erguida e curvada para a frente.
— Aqui, toma um pouco de água — Shoto puxou seus dedos e os colocou em volta de um copo de vidro morno — Consegue beber sozinha?
Ela pensou em dizer que ele estava maluco de perguntar uma coisa daquelas, porque é claro que ela estava bem! Da onde se viu tratar como uma inválida?
Mas ao segurar aquele copo e perceber que ele cederia se Shoto não tivesse reflexos tão bons, ela franziu o cenho em frustração pela fraqueza e fez mais um pouco de força, levando o líquido até os lábios e desfrutando da água.
Foi um gole de exaltação. Um chute no estômago. O fôlego de vida. arquejou e tossiu, assustada de repente com o status de sua saúde e piscou os olhos várias vezes até firmar as próprias mãos na cama e ajeitar as costas, pondo-se um pouco mais ereta.
— O que… aconteceu? — ela perguntou com a voz tenebrosamente seca e arranhada. O mundo voltava a entrar em foco com lentidão. Shoto sabia que era uma questão de tempo até que ela se lembrasse de fato, mas ainda assim, pegou em sua mão pálida e acariciou sua pele fria.
— Você teve algumas queimaduras leves durante o combate — disse ele, temeroso. — Mas tá tudo bem, já que suas células se regeneram e tudo mais. Mas ainda vou te pedir desculpas, porque bem… Algumas delas podem ter sido por minha causa. Eu estava tão desesperado, tão louco, tão…
apertou sua mão na dele imediatamente, trazendo a atenção de Shoto para ela com um olhar de carinho. Sabia o que ele tinha passado naquela agência; sabia das coisas que precisou abrir mão para que salvasse a todos, incluindo ela mesma. sabia de tudo, e soube que Shoto Todoroki devolveu o favor de salvar sua vida tão logo as palavras deixaram sua boca.
— Isso não importa — ela o deu um sorriso convincente, um que serviu para aliviar as costas pesadas e culpadas de Shoto — Como está o seu pai?
O garoto hesitou um pouco, mas logo respondeu:
— Ele está bem.
— Não olha na minha cara e minta pra mim.
Shoto respirou fundo e apertou sua mão ainda mais.
Agora ele está bem. Fisicamente bem. O velho é forte, não é qualquer coisinha que vai dar conta de destruí-lo. É só que… Ele quase morreu — seus ombros despencaram um pouco, como se o peso de sequer pensar em “seu pai quase morreu” fosse demais, fosse assustador — Na verdade, eu já o estava considerando quase morto. Fiquei esperando gritarem isso no corredor do hospital quando o levaram para uma cirurgia. Mas foi um sucesso e ele estava acordando no outro dia. Só ficou de repouso por algumas horas e depois estava arrancando as infusões e exigindo um carro para casa. Acho que ele golpearia quem tentasse impedi-lo.
Shoto riu levemente pelo nariz, mas seus olhos distantes indicavam a da verdade: ele estava aliviado. Estava passando pela fase do alívio após um medo desconcertante, e ela nem queria imaginar como era sentir isso ao ver seu pai e sua namorada em situações tão críticas.
Provavelmente, em dias normais, ele jamais demonstraria o que estava demonstrando agora, mas isso era bom. Isso era confiança. Shoto Todoroki estava ficando lento demais para proteger o coração dos outros, principalmente de .
— E… O Rush?
Agora parecia um terreno mais tranquilo e comum, onde Shoto se virou mais um pouco na direção dela e franziu os lábios.
— Ele se foi — afirmou ele, e quando a mão esquerda de Shoto atingiu seu antebraço, ela sentiu fisicamente o outro alívio — Ele e os outros Nomus. Eles provavelmente eram humanos por trás do experimento, e humanos que poderiam ser salvos pelo seu soro, mas pela primeira vez na vida… Eles estavam interligados pela medula principal. A cabeça era Rush e quando ele morresse… Não havia nada a ser feito.
engoliu em seco e assentiu tristemente. Quando se lembrava daquelas horas terríveis no laboratório, lembrava-se do Nomu sendo mais que uma montanha de perigo e mais como um sentimento: esperança. Enxergar monstros e torcer para que haja uma segunda camada sempre foi uma mania expressiva e constante de , portanto, salvar aquelas criaturas tinha se tornado sua missão pessoal. Uma que não tinha falhado, não totalmente.
— E o cara? — ela se lembrou imediatamente — O que conseguimos salvar?
Foi a hora de Shoto, finalmente, abrir um sorrisinho e acariciar seus dedos novamente.
— Ele está bem. Acordou meio desnorteado, com dor de cabeça como se tivessem atingido um martelo na sua têmpora, mas está bem. Se lembra do próprio nome e de como sumiu repentinamente do seu futon debaixo da Ponte Nihonbashi.
— Ele morava na rua? — lutou para se equilibrar na maca novamente, e Shoto assentiu.
— É, parece que esses eram os alvos do Rush: criminosos, mendigos e qualquer um que as pessoas não sentiriam muita falta. Quase indigentes. O cara da fábrica usava nome falso e era imigrante ilegal. Os outros… Bom, acho que não estampam nenhuma lista de desaparecidos.
soltou o ar devagar e refletiu sobre o plano descabido do vilão, admitindo internamente que aquela seleção não era uma bondade. Usar pessoas desconhecidas servia apenas para agir em silêncio, e isso não o impediu de cair.
Era nisso que devia focar: ele caiu. Errou em não considerar todas as possibilidades, ou foi geniosa até demais para os padrões de inteligência de Rush.
Era um motivo para estar feliz. O único motivo.
No entanto, a felicidade e alívio de não duraram muito quando se lembrou de mais uma questão pertinente, uma que já trazia uma nova dor de cabeça.
— E… o meu pai?
Foi um pouco mais que um sussurro, e ela viu Shoto ficar tenso na mesma hora. Sabia que ele se lembrava das catástrofes daquele dia, do escândalo e brutalidade de ter Hisashi tentando matá-lo enquanto Nomus brotavam de cada parte das paredes, e muitas outras coisas devem ter acontecido depois de começar a ficar tonta e ver todas as cores se combinando para formar o branco que a levou em algum momento.
Hisashi agiu como um vilão naquele dia, mas ainda era pai de e devia ser difícil para Shoto dizer o que estava prestes a dizer.
— Seu pai foi preso, . Em flagrante — admitiu ele, mas ela já esperava a resposta. O que não deixou de doer, de lhe chocar. A dor sibilava dentro de sua cabeça — Ele estava mesmo em conluio com Rush por todo esse tempo, financiando toda aquela loucura e todos os experimentos para, no fim, chegar à minha família. Chegar à Endeavor. E o pior é que nem éramos os alvos finais dele — ele soltou o ar forte, voltando a falar em seguida — Acreditamos que Rush queria destruir o herói número 1 e estremecer a sociedade para chegar ao que tanto queria: o Tartarus. Libertar os prisioneiros, acabar com a segurança e… chegar ao Dabi.
piscou os olhos rapidamente, engolindo uma e duas vezes.
— Meu pai queria matar o seu irmão?
— E eu não posso julgá-lo por isso. Eu mesmo queria matar o meu irmão.
assentiu em um movimento mecânico, sem saber ao certo o que deveria responder. Parecia repentinamente que teve o corpo escorregando até o chão e não conseguia se lembrar em que momento, em que segundo, tudo tinha desandado. Como seu pai tinha se transformado naquela pessoa, ou se ele sempre tinha sido e ela nunca percebeu. Se tudo foi realmente por causa de sua mãe ou se ela mesma já notava sinais que por baixo da poeira externa de Hisashi , existia um lugar sombrio e assustador.
Ela sentiu os dedos delicados de Shoto delinearem seu rosto até secar o que pareceu uma lágrima silenciosa que rolou pela bochecha toda até o lado da boca. Isso a assustou por um momento, mas logo estava erguendo os ombros e limpando a garganta, colocando em funcionamento de novo todos os mecanismos para respirar e se portar.
— Tá tudo bem, tá tudo bem — repetiu ela, mais para si mesma. — Eu imaginei isso. Era o que devia ser feito. Não tenho dificuldades em abrir os olhos para a realidade. Meu pai… fez coisas terríveis. Ele pretendia coisas terríveis. Merece o que está acontecendo.
— Não precisa…
— Preciso sim. Aprendi a ver o lado real da família com você, Shoto — ela respirou fundo de novo, e acariciou o dedo dele — Vi que eles não são perfeitos e que podem errar e muito, e nem assim deixamos de amá-los ou cuidar deles. E ah, de protegê-los quando estão com problemas.
Shoto sentiu a bochecha esquentar com o diagnóstico de . Não gostava da posição de proteger Endeavor, ou de amar Endeavor, ou de qualquer outra coisa que o colocava em um rótulo de pai, mas quando ele menos esperava, sempre estava agindo como um filho. Um filho que perdoa o pai, que ficava atrás do vidro de seu quarto no hospital tanto quanto ficava atrás do vidro do quarto da namorada, repetindo várias vezes internamente um: “Vamos lá, velhote. Abre esses olhos. Volta a queimar. Volta a ser o número 1.
Ele jamais diria ao pai nenhuma dessas coisas, mas gostava de saber que poderia dizer à . Mesmo que não verbalmente.
— Você está se sentindo bem? — perguntou ele, se aproximando um pouco mais. deu de ombros.
— Só um pouco cansada. Mas acho que é de tanto dormir. Já quero ir pra casa — ela começou a sorrir, mas logo uma sombra tomou a lateral de seu rosto — Quero dizer… Não para aquela casa.
Aquele lugar não se parecia em nada com sua casa dos últimos anos, em cada detalhe, até mesmo nos centímetros de tijolos levantados. Shoto ergueu um sorrisinho de canto, assentindo.
— Então vou te levar pra minha casa.
abriu um sorriso automático. Um sugestivo, um que combinou com o sorriso de Shoto e um que significava uma porção de coisas, até mesmo quando passou uma língua tímida nos lábios e se aproximou rapidamente da boca dele, roubando um selinho rápido que era o máximo que ela estaria disposta a dar depois de tanto tempo naquela cama.
— Então vai conseguir uma alta pra mim.
Shoto riu pelo nariz e beijou sua testa antes de se levantar e sair do quarto. E sentiu que, sinceramente, se aquela fosse sua nova vida, não se importaria de vivê-la contanto que Shoto Todoroki estivesse presente.

🔥❄️


Shoto e andaram devagar até a porta da frente, não porque a garota estava precisando se apoiar nele por estar fraca demais ou coisa parecida. Era porque, em cada mísero segundo de corredor vazio ou portas com salas ainda mais vazias, Shoto a puxava para perto e a beijava por quase 3 minutos inteiros.
Era o tipo de aventura e quebra das regras que o herói, conhecido por ser um poço de exemplo, estava se submetendo ultimamente, assim como decidiu que não iria mais ficar pensando o tempo inteiro. Iria agir, e agir conforme o seu querer, principalmente quando se tratava de sua namorada e das outras pessoas importantes da sua vida.
Assim que atravessaram a porta automática da entrada do Hospital Geral de Tokyo, conseguiram andar por menos de 100 metros antes de trocarem um beijo rápido na calçada e desistirem por um segundo até se virarem e verem a caminhonete do herói profissional – que voltou a alegremente ser misturada nas ruas depois de seu Volvo ter sido completamente destruído –, antes estacionado ao lado de uma placa de PARE, ocupado por uma montanha flamejante e asas escarlate recolhidas contra o vidro.
Shoto diminuiu os passos, olhando primeiro para Endeavor. O homem não parecia mal, mas também estava longe de alguém que teve uma boa noite de sono. A cicatriz recebida há alguns anos pela mesma luta contra os mesmos monstros estava ainda mais evidente e brilhante, destacada com uma faixa branca de gaze contornando a cabeça enquanto uma bota ortopédica fazia seu trabalho de melhora em uma das pernas. A lesão na região tinha sido tão intensa que nem mesmo o tratamento da Recovery Girl tinha sido de grande ajuda. Pela primeira vez, Enji Todoroki se viu tendo que aceitar que tinha sido quase dizimado. Muito quase.
Do outro lado, Hawks tinha ferimentos leves muito bem tratados e quase totalmente desaparecidos pelos braços e rosto, já que teve uma vantagem maior contra os monstros em comparação com os heróis que lutaram por terra.
Todos eles exibiam uma cicatriz ou outra que provava seu envolvimento na batalha. Mas a maior marca de todas era com certeza o alívio por tudo ter acabado – e acabado bem.
— Hawks! — se soltou de Shoto e andou até o homem com um sorriso grande e grato, abraçando-o sem nenhuma preocupação com conveniências sociais — Obrigada.
Hawks retribuiu o abraço com certo receio, franzindo as sobrancelhas com confusão.
— Ei, garota, que isso. Quem te carregou até o hospital foi o seu namorado, não eu — ele respondeu divertido. se afastou dele com os olhos semicerrados.
— Você salvou o Shoto. Salvou a mim naquela casa, me resgatou, me ajudou a salvá-lo e salvou a todos nós quando prendeu o meu pai. Sem você, não estaríamos aqui.
Hawks sentiu imediatamente as bochechas corarem e assumirem uma cor muito parecida com suas asas. Endeavor abriu um pequeno sorriso de canto, concordando com enquanto Shoto, logo atrás, fazia a mesma coisa. Um tipo de prêmio de funcionário do mês entre o departamento dos heróis deveria ser doado àquele cara sem papas na língua que, literalmente, fez um pouco de tudo e foi uma peça fundamental na missão.
— Que isso, gente, assim vocês vão me fazer chorar. E chorar é brochante demais, me dá um tempo.
riu pelo nariz e em seguida olhou para o lado, para o homem de quase 2 metros de altura que estava queimando menos que o habitual.
— Obrigada, Endeavor… por estar bem — ela suspirou, se aproximando um pouco dele — Por ter aguentado tudo que aguentou. Por ter acreditado em mim desde o início.
Endeavor balançou a cabeça brevemente, desfazendo os braços cruzados.
— Não chegaríamos até aqui sem você, . Mesmo que eu tenha fraquejado sobre minhas decisões no meio do caminho, tenho certeza que você foi nossa melhor aquisição.
— Eu precisava estar aqui — abriu um sorrisinho tímido, que logo foi diminuindo à medida que continuava — Antes de tudo aquilo, você estava me pedindo desculpas sobre o Dabi. Mas agora sinto que eu tenho que te pedir desculpas. A todos vocês — ela se virou para olhar Shoto em suas costas, e também para Hawks — É muito difícil reconhecer e admitir que pessoas que conhecemos a vida inteira não sejam aquilo que pensamos. É terrível o sentimento de se perguntar onde errou, onde estava aquele sinal que não vimos, e como deixamos chegar onde chegou. Acho que posso entender como vocês, família do Toya, se sentiram. Mentiras e ego fracassam as relações há muito tempo, e posso dizer com orgulho e certeza que não aceito isso em nome da minha mãe. Que ela não gostaria que eu disseminasse ódio e vingança. Não gostaria que eu seguisse os mesmos passos que meu pai — ela bufou forte, baixando levemente as pálpebras — Então… É, eu sinto muito. Por ele. Por tudo isso.
Shoto abriu a boca para dizer algo, mas sabia que as palavras morreriam no meio do caminho. estava dizendo com certeza o suficiente para não deixar dúvidas que estava sendo sincera; que precisava colocar aquilo pra fora, pensamentos que provavelmente mal a deixariam dormir à noite. Shoto não conseguia pensar exatamente em como ela estava se sentindo naquele momento, mas se fosse parecido com o que ele já sentia em relação ao irmão, então os dois estavam formando ainda mais uma conexão.
E isso não era um motivo para se lamentar. Jamais.
Na frente dela, Endeavor parecia mais sereno e sem qualquer vontade de realmente dizer alguma coisa. Esperou que desse um sorrisinho tímido e suspirou, descruzando os braços rígidos e enormes para olhá-la.
— Não existe nada mais humano e mais heroico do que fazer a coisa certa sem distinções, — murmurou ele, com sua voz grave e pontual. — Fazemos a coisa certa independentemente de nossos próprios sentimentos e histórias. Fazemos a coisa certa porque é assim que salvamos vidas. Fazemos a coisa certa porque somos heróis — o homem se aproximou, depositando uma mão grande e poderosa em um dos ombros dela — E você com certeza se encaixa em todas as denominações. Você já faz parte do nosso Time Endeavor.
se manteve imóvel nos primeiros 2 minutos até entender o que ele dizia e arquear as sobrancelhas em surpresa. Seus pensamentos se chocavam explosivamente na cabeça, e ela pensou que os joelhos cederiam ao chão. Pensou em perguntar mais uma vez, só para se certificar que ele estava falando certo, mas Endeavor logo se empertigou e se virou para o herói de asas.
— Vamos nessa, Keigo. Você ainda precisa estar por perto caso eu tropece com essa porcaria de novo.
O heróis de asas resmungou brevemente sobre a ordem implícita que era simplesmente levado a obedecer e apressou os passos para dentro do hospital, despedindo-se de rapidamente e lançando um aceno de cabeça discreto para Shoto, discreto o bastante para que averiguasse por si mesmo o estado físico do garoto. Ele parecia bem; bem até demais, diria Hawks.
Atrás dele, Endeavor mancou um pouco até parar novamente ao chegar na frente do filho, que o encarou por um tempo prolongado ao mesmo tempo que sentia o ritmo do coração titubear com um nervosismo familiar.
Um nervosismo que significava ultimato. Hora certa. Tempo de conflito. Enfrentamento.
Tantas coisas que só quem presenciou a vida de Shoto Todoroki entenderia.
Em situações normais, ele poderia apenas murmurar um boa tarde, avisar que tiraria o dia de folga e caminhar para a caminhonete com sua namorada, decidindo-se o que fazer pelo resto do dia depois, deixando-se levar pela espontaneidade do “sem rumo” pela primeira vez na vida. Na verdade, Shoto pretendia mesmo fazer isso. Sabia até demais sobre experiências de quase morte, mas em nenhuma delas tinha ficado com tanto medo real de bater as botas como daquela última vez. Precisava comemorar.
Mas seu lado esquerdo gritou com ele; o lado herdado por aquela montanha de músculos e fogo, insistindo para que ele desse ouvidos ao velho pelo menos uma vez. Que o deixasse fazer um discurso que não fosse corporativo ou totalmente relacionado ao trabalho.
— Você está bem? — Foi a primeira pergunta que Shoto escutou, e reparou bem brevemente nas mãos do pai se escondendo em um dos bolsos da frente da calça. Ele podia apostar que estavam quentes e úmidas, ainda que seu olhar não demonstrasse qualquer nervosismo ou hesitação. Na verdade, era um olhar familiar. Shoto se lembrava dele.
Era o mesmo jeito que Enji olhou para o filho mais novo naquele corredor de espera do Festival Esportivo do 1º ano. O primeiro espetáculo público e oficial de Shoto Todoroki, onde mostrou suas habilidades já muito avançadas de qualquer outro estudante, um fato impressionante para todos e desgastante para ele.
Naquela época, aquele olhar o causou uma ira completa. Hoje, Shoto sentira apenas… indiferença.
— Eu estou bem — respondeu ele, sem a necessidade de mentir sobre isso — A Recovery Girl conseguiu me consertar direitinho. Disse que se ver a gente se metendo em mais uma confusão dessas de novo, vai deixar a gente morrendo na sarjeta.
— Eu não duvido disso — murmurou Endeavor, rindo levemente pelo nariz — Era mais do que óbvio que você iria ficar melhor. Enquanto aquele monstro rosnava, você continuava investindo fundo e mais fundo, ultrapassando seus limites, assumindo todas as suas individualidades e se entregando por completo na luta. Não sei o que dizer, Shoto. Você foi o melhor super-herói naquele dia — Endeavor desviou os olhos para o chão, sorvendo o ar em volta com – agora sim – um pouco de nervosismo — Sabe, Shoto, eu nunca te contei isso, mas quando pensei em te mandar pra U.A., achei que você não aceitaria. Claro que não te faltava preparação ou experiências, e você com certeza passaria com prova ou sem, e até cheguei a pensar em te dizer que ganhou uma bolsa de estudos pra ver se o fardo de entrar por recomendação não te fizesse recuar ou hesitar, mas então, no final, coloquei mais uma abordagem errada na lista e decidi não te perguntar nada. Decidi simplesmente te mandar pra lá, sob o título intimidante de recomendação e esperando apenas que você fizesse o que tinha que fazer. E eu não queria que ninguém me dissesse que você estava ganhando, porque pretendia estar presente em todos os momentos possíveis e ver por mim mesmo. Ainda que eu não tivesse nenhuma lembrança boa daquela escola e não me desse bem com a grande maioria do corpo docente — ele parou por tempo suficiente para tirar um pedaço de pena escarlate castigado do bolso da camisa, provavelmente de dividir o mesmo carro que Hawks — Mas então, à medida que eu ia te observando, que presenciava o crescimento e a evolução que teve em alguns meses, os amigos que fez, incluindo o All Might, as festas que foi, o engajamento com as mais de 18 mil pessoas do ramo de heróis do nosso país, vi que a pessoa que eu estava tentando criar… Nunca existiu. E nunca iria existir. Que eu tinha passado 18 anos correndo atrás de manter um ego firme que só ia me matando e, ao mesmo tempo, matando e destroçando a minha família. Sei que eu errei, Shoto. E sei que você não quer falar sobre isso. Mas saiba que estou orgulhoso de você — um sorrisinho pacato e tímido surgiu no canto dos lábios de Enji, o que deixou Shoto com vontade de desviar os olhos de constrangimento — Não apenas porque descobriu sua verdadeira vocação em ser um herói, independentemente dos milhares de ienes por ano ou porque eu disse para você ter essa vocação, mas porque ela veio exclusivamente das suas experiências. Da sua vida particular, bem longe de mim e de tudo que eu fiz. Mas também porque, ontem, vi uma das coisas que eu mais queria ver, uma que eu sei que você também queria. Seu fogo, Shoto. O seu fogo, que queima mais que o meu. E muito mais limpo do que o meu.
Shoto arfou uma resposta. Uma queimação contínua atacou suas narinas por um lapso, um descuido de alguém que tinha sido pego em flagrante. O olhar de Endeavor era caloroso e amoroso, paterno, cordial. Um olhar que, se Hawks estivesse vendo de longe, teria gritado imediatamente: como é que é? Aquilo na boca do grandão é um sorriso? Alguém me belisca!
Sem o que dizer, seu pai se aproximou novamente, posicionando uma das mãos no ombro dele, a mesma que usou em , mas que agora parecia conter uma enxurrada de mais sentimentos.
— Você usou seu fogo sem medo, e por isso ele foi tão forte. Ele te puxou pra cima, revelou um herói que eu sei que você sempre foi, o futuro herói número 1. É o que vai te levar até esse lugar, Shoto: coragem. Coragem de ser você, sem medo de ser alguém como eu.
Shoto esquadrinhou o rosto agora coberto de cicatrizes do pai, pescando a sinceridade e a honestidade sem oportunismo que tanto vinha esperando de Enji, as variadas e variadas formas com que ele pedia desculpas e agia como um cão abandonado sempre que Shoto escolhia pegar o caminho contrário ao seu. Aquela vontade de se acertar com ele voltou a todo vapor e, mesmo que Endeavor estivesse de pé com dificuldade, Shoto se aproximou do homem e o envolveu em um abraço.
O chão fugiu um pouco abaixo de suas solas quando sentiu Enji o apertar com uma força controlada, mas que deixava claro a satisfação e alívio interno que sentia com o gesto. Shoto ainda levaria algum tempo para se ver apto a falar tanto como o velho teve a coragem de falar, mas estava tudo bem. Ele tinha feito o que devia ter feito há muito tempo. Parou de tropeçar em suas desconfianças, seu medo e estava pronto para tirar os pesos invisíveis das costas. E não se tratava apenas do seu pai.
Shoto olhou para a frente, na direção do meio fio onde estava parada ao lado da porta do passageiro da caminhonete, sorrindo prazerosamente com a cena que via, e a imagem tomou o coração de Shoto com ainda mais sentimentos que antes. Só de olhar pra ela já sentia vontade de abraçar Endeavor com mais força. Só de olhar pra ela sabia o verdadeiro significado de coisa certa.
Ele teve de lutar para encontrar as palavras, mas, por fim, balbuciou para o pai:
— Agora eu entendo que o fogo é meu, velhote. Sem um único traço do que foi, sem um único traço do que nasceu pra ser. Não me deixa mais quebrado, e não abre mais nenhuma ferida. Porque vou concordar com você: esse fogo é limpo — ele se afastou lentamente, encarando firmemente Endeavor — É regenerado. E tô pronto para fazê-lo ainda mais meu.
O garoto abriu um sorriso zombador, quase desafiador para o pai, ousado em cada linha de expressão enquanto Enji, à sua frente, lutando para manter a carcaça bruta no mesmo lugar, abriu um sorriso que não era mais parcial, mas sim tranquilo e ainda mais contente. Orgulhoso. Feliz por ver seu grande plano de uma vida sendo definitivamente incinerado, de uma vez por todas.
— Muito bem, Shoto — ele deu um tapinha amigável nos ombros do filho, e os ouvidos comuns de Shoto não foram capazes de captar a dificuldade de Endeavor em respirar normalmente — Muito bem.
E então, o homem lhe lançou um último aceno antes de passar pelos seus ombros e se arrastar em direção à entrada do edifício de vidro, onde Hawks já andava de um lado para o outro e parecia parcialmente impaciente, ou era o que fingia estar para que Endeavor não se sentisse constrangido ao ver que seu amigo tinha presenciado toda aquela demonstração de carinho familiar.
Quando se virou de novo na direção da rua, Shoto viu já dentro da caminhonete, acomodada no banco do passageiro enquanto mantinha a cabeça abaixada em algum ponto perto do câmbio. Ele caminhou rápido até o outro lado, abrindo sua porta ao mesmo tempo em que ela apertava em um botão avulso da telinha HD ligada ao aparelho de som e enchia o carro com um berro estridente de um cantor qualquer, assustando tanto ela quanto Shoto.
— Cacete! — imediatamente achou o botão de volume, girando-o ao contrário o máximo que pode — Desculpa, o som do Volvo era mais fácil de mexer. O que é irônico, porque um carro de última geração deveria ter uns controles mais refinados que a gente não entende, mas uma caminhonete da década passada não deveria ter tantos comandos assim, ele não sabe sintonizar na…
não terminou a frase e seria capaz de imitar o grito que escapou da rádio se não tivesse sido interrompida por um beijo. Um beijo forte, intenso, quente e aterrador, tão quente quanto a mão esquerda dele estava quando tocou na base de sua orelha, descendo até a nuca até agarrar alguns fios de seu cabelo.
O mundo não existia mais. Não havia nada a não ser ruídos toscos e patéticos da natureza ao redor, oxigênio e fotossíntese e política e conversas paralelas, todas elas acontecendo bem longe da bolha que inchou e preencheu aquele Jeep Gladiator estacionado em frente ao Hospital Geral.
Shoto precisou soltá-la depois de tanto tempo ignorando a necessidade de oxigênio, e parecia tão atordoado quanto ela com o feito. A pele dele vibrava em energia pura, e conseguia apenas tentar manter o coração desordenado no lugar, os hormônios gritando em cada célula do corpo, o desejo por ele sendo ativado em qualquer mísero toque.
— Pra onde vamos agora? — ela perguntou com doçura, mas com sugestão. Shoto quase deixou um rosnado escapar da garganta, porque sabia o que queria, mas antes precisava fazer outra coisa.
— Vou te levar em um encontro, srta. — respondeu ele, acariciando levemente as maçãs do rosto dela — Um encontro de verdade. Sem usinas abandonadas.
riu com descrença, mas viu ele se afastar para colocar o cinto e indicar que ela fizesse o mesmo. Parecia confuso, mas também parecia divertido. E então, apenas deu de ombros e se acomodou, pronta para coisas de verdade.


Desfecho

Inexplicavelmente, estava naquele lugar de novo.
Desta vez, Hisashi mal se deu ao trabalho de desviar a cabeça de sua revista automotiva para olhar a filha do outro lado das grades. Talvez porque já estava cansado de gritar para que ela fosse embora, ou deixar claro que não a queria pisando naquele amontoado de mofo e metal enferrujado, ou talvez – mais provavelmente – não queria que ela o visse naquelas condições.
O que ele queria mesmo era nem estar naquelas condições, mas isso não dependia dele. Sofrer as consequências era o mínimo por tudo que tinha feito, o mínimo que Hisashi merecia. Afinal, tinha as mãos tão sujas quanto a de Rush.
No entanto, naquele dia em específico, parecia mais confiante para estar ali. Há meses o vinha visitando, ficando parada na frente daquela cela, esperando uma palavra. Um pedido de desculpas. Alguma explicação. Não era a hora de ela falar, e sim ele. Mas Hisashi parecia longe de fazer isso.
Depois de alguns segundos na mesma posição, o homem soltou um suspiro longo e pesado e disse, rispidamente:
— Você veio buscar o meu parabéns? — Ele passou uma página, encarando-a de soslaio — Se for me dizer que vai continuar trabalhando para aquela família, então não vai receber. Nem pela formatura e nem por essa beca de segunda mão.
desceu os olhos para si mesma, passando os dedos levemente pelo tecido fino da beca que ainda usava, mesmo que a cerimônia tenha acontecido há mais de 1 hora atrás. Ela segurou o capelo com um pouco mais de força, repetindo internamente para ter calma e lembrar que ele estava provocando. Era o que mais fazia desde que tinha aparecido ali pela primeira vez e vomitar tantos absurdos sobre e os Todoroki que, pela primeira vez, a garota quis acertar o punho no rosto do pai.
Era triste e um pouco revoltante pensar que ele sempre tinha sido esse tipo de pessoa detestável e ela não viu absolutamente nada disso.
— Eu não vim buscar nada. Na verdade, vim me despedir.
Os músculos das costas de Hisashi ficaram explicitamente trincados, e, muito devagar, o homem começou a se virar na cadeira, fitando a filha de pé com a testa vincada. Era a primeira vez que ouvia a voz dela em meses, ainda que a visse em todas essas vezes. Por um momento, ele olhou para atrás dela, procurando ver qualquer resquício do cabelo bicolor daquele desgraçado, mas aparentemente ela estava sozinha.
Agora com a sua atenção, se empertigou no lugar, tentando resumir suas próximas palavras o mais rápido possível, lembrando-se do BMW parado lá fora com um Shoto preocupado ao volante, aflito com a possibilidade de ela não conseguir.
— Vou me mudar para Yokohama depois da formatura. Consegui uma vaga na Universidade de Yokohama para estudar Biomedicina e ganhei um estágio no laboratório. Tive uma lista enorme pra escolher depois do estudo que publiquei sobre o antídoto de Paezoa, inclusive o Instituto Pasteur na França, mas tive tempo pra pensar e decidir sobre o que eu queria de verdade, e não o que você me levou a acreditar que queria — engoliu em seco, suspirando novamente — Sabe, eu… Passei todos esses meses muito chateada com você. Na verdade, depois do período de negação, comecei a sentir raiva de você, muita raiva, porque tinha motivos, mas daí me lembrei de que isso não adiantaria nada, então só… Deixei ir. Aceitei. Tentei entender — ela balançou levemente a cabeça, lembrando-se da primeira vez que se colocou naquela situação, saindo do apartamento de Shoto para fazer uma visita ao seu pai criminoso em busca de respostas. A tentativa terminou com várias lágrimas de no ombro de Shoto sentado ao banco do motorista, enquanto os faróis da caminhonete iluminavam nuvens de poeira na escuridão.
Existiram outras depois dessa, mas Hisashi não seria capaz de dizer o que ela queria ouvir. Porque em sua cabeça, tomou as atitudes certas e estava sendo injustiçado. Mantinha o mesmo pensamento odioso e assassino que manteve por 7 longos anos. Tal padrão não desaparecia de um dia para o outro, ou alguns meses na prisão.
E foi difícil para aceitar isso. Ou talvez pensou que deveria mesmo ser difícil, já que se tratava de seu pai, mas aquele homem… Aqueles olhos maldosos e cheios de vingança não eram seu pai. Ela não queria que fosse.
Hisashi ainda continuou sem uma resposta, e continuou:
— Eu tentei me colocar no seu lugar. Sabia que você estava sofrendo, sei como doeu, sei como foi difícil. Mas você se segurou na memória da mamãe da forma errada — disparou ela, engolindo em seco pela lembrança — Você reduziu Anne a uma tragédia. Justificou suas ações com base nessa raiva, sem considerar que mamãe foi feliz e nos amou em cada dia da sua vida. E ela nunca, jamais, concordaria com vingança, muito menos uma vingança em que você estende a uma família inteira. Não, ela não concordaria com isso. Você desonrou a memória dela.
Finalmente, Hisashi achou impulso para se colocar de pé, fazendo tão rápido que quase cambaleou sobre aqueles sapatos baratos. Aquela mesma fúria de antes salpicou seus olhos de modo horripilante, deixando inquieta mesmo que estivesse seguramente do lado de fora da cela. Ele trincou os dentes audivelmente e se aproximou daquelas grades, agarrando a gola da própria camisa como se segurasse o coração.
— Você não tem o menor direito de falar da sua mãe — resmungou Hisashi, destilando uma faísca de repulsa na voz — Não tem o menor direito. A partir do momento que escolheu se juntar com aquela corja, você não é mais a filha dela. Não é mais nada de Anne! — Gritou ele, aproximando ainda mais o rosto contorcido da margem do metal — Você era a minha filhinha, . Minha querida, meu orgulho. Eu tinha tantos planos pra você… Mas agora você está suja. Você se misturou com aqueles malditos e vai acabar sua vida morando em uma casa pré-fabricada e cuidando de filhos tão imundos e maus quanto eles. Todos eles são maus, . Você está perdendo seu tempo. E, quem sabe, quando decidir acordar pra vida, eu ainda esteja aqui e pense em te dar uma nova chance. Talvez eu dê. Talvez eu já esteja morto. Não deixe isso acontecer,
— Eu vim dizer tchau — a voz dela saiu com mais firmeza do que imaginou. A partir do momento em que ele tinha se levantado e tocou no nome da mãe com aquele mesmo delírio destrutivo, sentiu os joelhos tremerem e o nariz queimar, mas precisou de apenas um momento para voltar a ficar normal. Ele sempre jogava sujo. não cairia nessa — Deixei o banco tomar todas as suas coisas de muito bom grado. O dinheiro, a casa, os carros, seus títulos… Tudo é deles agora. Nada é meu. Estou me libertando de você. E não pense nem por um segundo que está sendo fácil — a garota se aproximou um pouco mais da grade, ficando tão perto de Hisashi como não ficava há meses que podia até mesmo fazer seu joelho encontrar a barriga do pai por entre os espaços de uma grade e outra — Você cuidou de mim como pode nos últimos anos e nunca vou deixar de ser grata por isso. Mas o homem que você é agora não seria capaz de me acompanhar, de ficar na minha vida. Sei que teve seus motivos, e não compactuo com nenhum deles, mas não vou embora carregando seus crimes e seu ódio comigo. Então… Não tenho raiva de você. Na verdade, posso até dizer que te perdoo. Mas não quero te ver nunca mais, Hisashi — e lutando para manter a compostura e as lágrimas no lugar, sussurrou um último: — Adeus, pai.
E assim, não perdeu tempo em virar as costas e seguir pelo corredor extenso, ouvindo resmungos furiosos crescendo até se transformarem em gritos de seu nome, enquanto Hisashi quase dobrava o corpo ao meio enquanto tentava encaixar o rosto nas grades e reiterava sentenças como: “Você vai se arrepender, ! Vai se arrepender de cada palavra que disse hoje! Vai se arrepender desse lado!
A garota lançou o braço no botão da última porta que a separa do passadiço de celas, e se afastou daquelas paredes gélidas e dos ecos de seu pai o mais rápido possível, sem olhar para trás.
Lá fora, finalmente soltou o ar preso nos pulmões, apertando o capelo sem perceber, sentindo-se sufocada, claustrofóbica só de lembrar daqueles olhos furiosos, caminhando em linha reta sem notar realmente o destino. Quando quase trombou em alguém, ela finalmente abriu os olhos e arfou.
— Ei, você tá bem? — Shoto, com seu timbre delicado e cauteloso ao mesmo tempo, segurou em seus dois ombros com preocupação.
balançou a cabeça um tanto confusa, engolindo em seco antes de responder.
— Tá sim. Tudo bem, eu só… Imaginei que fosse ser mais fácil.
— Não tem como uma coisa dessas ser fácil.
— Eu treinei muito na frente do espelho para parecer fácil — retrucou ela, raspando os dedos na linha do pulso de Shoto — Pelo menos consegui não chorar. Foi uma vitória. E se não chorei lá dentro, me recuso a fazer isso aqui fora.
Shoto assentiu em concordância, mesmo sabendo que com certeza choraria depois. Talvez no carro enquanto dirigiam para Yokohama, talvez na cama à noite, ou enquanto preparava o café no dia seguinte. Poderia até mesmo fazer isso enquanto carregava as caixas de mudança para o novo apartamento do campus, e Shoto não demoraria nem um segundo para recuar e deixá-la ter o seu momento. Apesar de tudo, aquele homem era seu pai e sempre teve certeza de que teria seu pai pelo resto da vida. Shoto Todoroki entendia mais do que ninguém sobre reviravoltas de realidade, e por isso era a melhor companhia que poderia ter agora.
— Vem, vamos almoçar.
Ele sorriu docemente e entrelaçou seus dedos até chegarem ao carro estacionado ao lado da placa, e quando se acomodaram com os cintos de segurança, encarou o capelo nas mãos e suspirou forte.
— Como se sentiu quando foi a sua vez?
Ele pensou por um instante. Tantas coisas tinham acontecido no dia da sua formatura do ensino médio. A começar pelo discurso caloroso e constrangedor de Endeavor no auditório, o choro escandaloso de Midoriya, a conversa tensa com Momo sobre um ponto final definitivo e uma saída secreta em grupo de garotos depois para um lugar bem longe e bem pouco decente para estudantes com cilindros de formandos há menos de 2 horas, onde Bakugo e Kirishima começaram a noite experimentando margaritas e terminaram em uma briga repentina onde Bakugo bateu a cabeça no rosto de um cidadão qualquer que ousou criticar a gestão de Best Jeanist.
Mas a resposta de estava mais óbvia do que ele pensou.
— Eu me senti perdido — respondeu ele, usando a mão direita para ativar o ar condicionado naquele dia quente de verão — Tinha uma pilha de cartas de recomendação, propostas de emprego e dinheiro o bastante da herança da minha mãe pra abrir minha própria agência, se quisesse. Já tinha decidido seguir meu próprio caminho quando acabasse tudo, mas… Perder a mesmice parecia errado. Ir embora parecia errado quando eu já tinha tudo perto. Mudanças sempre foram assustadoras pra mim — ele se virou para ela, com um olhar terno — Mas elas valem a pena. Ampliam a nossa visão e nos transformam em quem queremos ser. Você vai ficar bem — Shoto se aproximou até o meio do câmbio, e ergueu os dedos para tirar uma mecha caída de — E eu vou estar com você. Há menos de 40km de distância.
— Ainda é longe — disse ela, manhosa.
— Não pro meu novo BMW.
sorriu antes de beijá-lo, levando as mãos para sua nuca e permitindo a intensidade que o momento inevitavelmente teria. Shoto sempre dava um jeito de roubar um beijo dela em qualquer lugar, às vezes rápido como um piscar de olhos, às vezes lento como se a colocasse em sono profundo, e nesses ela precisava fazer um esforço e pedir para que ele parasse, mas quando ninguém estava olhando… O beijo tinha total passagem para se tornar incendiário.
No entanto, antes que as primeiras faíscas aparecessem, um toque alto seguido de vibrações surgiu entre os dois. Primeiro em um, depois no outro. imediatamente tremeu os ombros e se afastou, enquanto Shoto estalou a língua e revirou os olhos.
— É o bipper — disse ela, afastando a beca com agitação para procurar o aparelho nos bolsos. Shoto bufou forte mais uma vez.
— Esse nome é ridículo.
— Mas ele é único — ela finalmente puxou o celular em tamanho menor que o normal, segurando-na frente do rosto ao mesmo tempo em que Shoto puxava o seu próprio.
Os dois levaram menos de um minuto para suspirar e olharem um para o outro.
— É uma missão…
— Especial — completou ele, jogando o aparelho no colo e ligando a ignição — Vamos continuar isso depois, mocinha.
Ela mordeu o lábio discretamente, puxando o cabelo em um rabo de cavalo.
— Depois de salvarmos algumas vidas.


FIM


N/A FIXA 📌: Chegamos ao fim dessa aventura!
MUITO OBRIGADA todo mundo que acompanhou, que riu, que chorou, que surtou comigo nesse rolê insano. A gente se vê na próxima do mundo otaku! <3

OLÁ! DEIXE O SEU MELHOR COMENTÁRIO BEM AQUI.

Qualquer erro nessa fanfic ou reclamações, somente no e-mail.


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